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História Liberté - O Salvador


Escrita por: caulaty

Capítulo 28 - O Salvador


26 de maio de 3660

 

Ainda temos um encontro importante para cobrir essa noite antes de prosseguirmos com a história. Nós estamos chegando em um ponto crucial da nossa narrativa, você deve estar sentindo, e os momentos que agora conto revelam muito sobre o que aqueles jovens do passado estão prestes a viver. Ah, se nós pudéssemos ter feito algo de diferente… Bem, eu não mudaria coisa alguma. Os mortos não se lamentam.

Stan já foi embora. Sua aparição nesse jantar foi tão importante quanto objetiva, e ele não tinha intenção de ficar para a festa. A verdade é que ele sempre considerou vir, em todos os anos, e Gregory (o usual hospedeiro) nunca deixou de convidá-lo. Mas ele se sentiria muito fora de lugar. Assim como se sentiu fora de lugar essa noite, por mais que ame todas as pessoas presentes e elas o amem também. Falta de amor nunca foi o problema desse grupo. E só depois de ele ter ido embora, Kyle se lembrou do pacote de presente que Stan não soube como lhe entregar. Mas não o abriu. Sentiu que seria mais apropriado fazer isso sozinho. Certo ele, que odeia chorar na frente dos outros.

Ele também não quer chorar essa noite. Kyle está feliz. Feliz e bêbado. Nostálgico, emotivo e querendo dançar músicas de Bossa nova brasileira que sempre tocam na casa de Gregory. Kenny e Gregory estão de pé ao lado da caixa de som, conversando sobre astronomia; ambos são curiosos e ávidos leitores, famintos por todo tipo de conhecimento. Wendy, completamente sóbria, e Bebe, completamente bêbada, discutem amorosamente se é a hora de tirar a chupeta de Nala ou não. Enquanto isso, Kyle se levanta do sofá e estica as duas mãos para o Toupeira, que permanece sentado, e diz a ele:

-Dança comigo.

Kyle é um filho da puta, e eu digo isso com todo o meu carinho, porque ele tem um timbre e uns olhos e um jeito de falar que são sedutores sem que ele saiba o quanto, e se torna impossível negar qualquer coisa a ele. Christophe ri, eu juro, ele ri sem levar a sério, sem se mover, porque sabe que não tem chance alguma de resistir se ele estiver falando sério.

-Anda logo. - Kyle exige. - É meu aniversário, você tem que fazer o que eu mando.

Diante desse argumento inquestionável, com alguma hesitação, Christophe pega nas mãos dele e se levanta, surpreendentemente sem fazer cara feia. Em vez disso, ele tem um brilho embriagado no olhar e um sorriso muito sutil de entretenimento, como quem quer ver onde é que isso vai dar.

Ao mesmo tempo, Gregory continua falando sobre buracos negros em um monólogo empolgado ao qual Kenny já não presta mais atenção, não por falta de interesse, mas porque algo infinitamente mais curioso do que buracos negros está acontecendo a alguns metros deles. Gregory, de costas para a cena, franze a testa quando percebe que Kenny está olhando por cima do seu ombro. Ele se vira.

-Olha só, cara. - Kenny murmura, imerso nos próprios pensamentos, alheio a essa sombra que cai sobre o rosto de Gregory.

A cena é especialmente encantadora mesmo. Christophe não dança, mas também não solta as mãos de Kyle, que nem está de olhos abertos, de tão envolvido que ele está pela música gostosa de uma terra exótica e distante, onde faz calor de verdade. Ele não se importa se o Toupeira se mexe ou não, porque dança sozinho. Isso diz tanto sobre essa relação, é o que Kenny pensa, o fato de que Kyle dança de olhos fechados e não se preocupa se o Toupeira vai ou não acompanhar. Mas eu não estou aqui para fazer analogias. A coisa mais forte aqui é a maneira com que Christophe o olha. É isso que é mágico. É esse tipo de olhar que um ser humano dá ao outro que me faz sentir saudade de estar vivo. Que uma pessoa como ele, tão machucada e judiada pela vida, com tantos muros erguidos, ainda seja capaz de olhar para outra pessoa assim tão carregado de amor puro, incondicional, que é imune ao tempo e aos horrores do mundo. Kyle dança bem devagar perto dele, bêbado e despreocupado, e para Christophe, é a coisa mais linda que existe. Mas ele não demonstra isso tão escancaradamente quando Kyle tem os olhos abertos.

-Aquilo ali é um homem apaixonado. - Kenny diz, mais para si mesmo do que para Gregory.

A verdade é que, nesse momento, Kenny não está aqui. Ele está em uma noite muito chuvosa de quinze anos atrás, quando Christophe o carregou escada acima para um apartamentozinho abandonado e imundo de Nova York, na mesma noite em que Kyle ganhou a cicatriz no olho. Kyle tinha o rosto completamente banhado de sangue e não parava de chorar, porque naquela noite, todos achavam que Kenny não sobreviveria – e, de fato, não sobreviveu - mas ninguém estava disposto a deixá-lo morrer tão cedo. Kyle não se lembra disso. Ninguém se lembra, apenas Kenny McCormick. Ele morreu diversas vezes durante a guerrilha, mas essa ficou muito crava em sua memória porque foi longa e excruciante, e doeu, doeu por horas, porque suas entranhas estavam expostas e tudo o que ele queria era morrer. Mesmo que Kenny não tivesse o poder de se levantar dos mortos, tudo o que ele desejaria era morrer. Mas não podia explicar para todos que tudo voltaria ao normal se eles apenas o deixassem ir.

Kyle contará mais sobre essa noite quando a hora chegar, mas eu vou contar o que Kyle nunca soube. Eles estavam escondidos no apartamento que invadiram para escapar de um confronto civil. Com o conflito, a rua ficou tomada por sapadores tentando manter a “ordem” e eles não podiam levar Kenny a lugar nenhum. Precisaram passar a noite lá. Quando todos estavam adormecidos, Kenny pediu algo inimaginável à única pessoa que entenderia o quanto a morte era a única opção naquele momento. O Toupeira enxergava a vida de uma forma diferente. O Toupeira não amava. O Toupeira era um guerreiro, o Forte, alguém que fazia o que precisava ser feito sem piscar. O Toupeira já havia tirado a vida de sabe-se lá quantas pessoas. Parecia lógico, portanto, que ele atendesse à súplica de Kenny quando sua mão fraca e moribunda agarrou a camisa ensanguentada de Christophe para pedir que ele acabasse com tudo. Kenny foi bastante lúcido em seu pedido. Até aquele momento, acreditava na casca grossa a ponto de acreditar que ele não hesitaria quando Kenny lhe pedisse “por favor, me mata, eu não aguento mais”. Porque Kenny não achava que aquele homem tivesse muitos sentimentos dentro dele. Mas a expressão do Toupeira diante daquele pedido fez com que Kenny entendesse o quanto aquele homem amava Kyle, acima de todas as coisas, a ponto de duvidar de suas próprias convicções. Em outras circunstâncias, o guerreiro viria antes do humano, e Christophe tiraria sua vida com a consciência limpa, sem se preocupar com a reação dos outros. Não era insensibilidade, era apenas a maneira como as coisas funcionavam no mundo dele.

Mas as coisas não eram mais preto no branco para ele. Quem fazia o pedido era o melhor amigo do homem que ele amava, e só de vislumbrar a dor arrebatadora que aquilo traria para Kyle, e ainda por cima, assumir a responsabilidade por isso…

Kenny se sentiu terrível por tê-lo escolhido para esse pedido, mas também garantiu que tudo ficaria bem, mesmo que isso não valesse coisa alguma para Christophe. Ele nem sequer se lembraria daquela conversa, e isso fez com que Kenny morresse com a consciência tranquila. Durante sólidos cinco minutos, Christophe esfregou o rosto, transtornado, sem saber o que fazer. Mas quando se decidiu, deu a Kenny um longo gole de rum, segurando sua cabeça com a gentileza que não tinha, depois perguntou se havia alguma mensagem que Kenny gostaria que ele passasse a alguém, pergunta para a qual Kenny respondeu “tem alguma mensagem que você quer que eu dê à sua mãe?”. Christophe achou que ele estivesse alucinando. Por fim, sufocou-o com um travesseiro silenciosamente.

Quando Kenny se aproximava da morte, ele podia ver pessoas como eu. Não podia explicar para Christophe que sua mãe estava logo atrás dele, com lágrimas nos olhos.

Quando Kenny acordou, estava bem e ninguém se lembrava da gravidade do seu ferimento. Christophe se lembrava de ter ficado bêbado – o que nem aconteceu – e dormido a noite inteira, coisa bastante incomum para ele. Pensou que fosse a exaustão. Por mais que ele não soubesse que teve esse momento íntimo com Kenny, sentiu a mudança na relação que ocorreu depois disso. Kenny, que antes tinha tantas preocupações com a relação de Kyle e Christophe, agora sentia profunda compaixão por aquele homem. Kenny era incapaz de desgostar de alguém que amasse Kyle Broflovski de tal forma que levaria um tiro por ele. Isso sempre foi visível e sempre tranquilizou um pouco o coração de Kenny, mas naquela noite, ele viu um lado escondido do Toupeira. Foi tratado com respeito e dignidade em sua morte, coisa que já parecia tão banal naquele mundo, para Kenny mais ainda. Sua relação com Christophe não podia ser a mesma depois de presenciar um relance da fragilidade daquele homem que tão facilmente poderia ser confundido com uma máquina ou um bicho.

Arrancado de seu transe, Kenny olha para Gregory, só então se dando conta da sombra dúbia que toma conta de seus olhos. Na sua expressão, há uma ruga entre as sobrancelhas quase brancas; é o que mais revela seu estado de preocupação.

-O que foi?

Gregory muda o seu rosto imediatamente, como se tivesse sido pego fazendo algo errado. Ele é muito bom em não deixar que os outros saibam o que está pensando, é verdade, mas Kenny tem um olhar muito mais aguçado.

-Não foi nada. - Responde, cruzando os braços em frente ao tronco. Kenny continua a encará-lo, o que faz Gregory sentir que deve continuar falando. - Eu só… Faz muito tempo, entende? Muita coisa mudou. Eu me preocupo com eles. - Fez uma pausa. - Eles não conseguem pensar quando estão perto um do outro.

Kenny entende de imediato que Gregory está falando de alguma coisa concreta, e não genérica, mas não pergunta do que se trata. Coça a orelha, pensando um pouco.

-É, mas… Você se lembra como é estar perto de alguém que te faz parar de pensar? - Kenny pergunta com um sorriso sugestivo.

Os olhos de Gregory se fixam em Christophe. Percorrem a mão rude dele que toca o cabelo de Kyle, o sorriso modesto que quase some quando Kyle abre os olhos, sem parar de dançar. Christophe continua parado, passando a língua pelo canto do lábio, erguendo um pouco o queixo, tentando não rir da cara que Kyle faz pra ele.

-Lembro sim.

Encerrando o assunto com um tapinha nas costas de Gregory, Kenny foi andando até os dois.

-Ei, Toupeira. Se você não vai dançar com esse menino bonito, eu vou.

Christophe quase ri e se desprende de Kyle, erguendo as mãos como quem diz “à vontade”, indo buscar mais um copo de uísque. Ele passa por Gregory sem dizer nada, e Gregory dá um gole no seu vinho em resposta.

Kenny pega Kyle pela cintura com a intimidade de um irmão, puxando-o contra o seu corpo, e os dois riem e cambaleiam um pouco, perdendo o equilíbrio, mas Kenny o segura com firmeza e o abraça com vontade, o que faz com que Kyle leve os braços ao pescoço dele. A dança é sem ritmo, num tempo só dos dois, que não faria sentido pra mais ninguém. É uma característica marcando desse relacionamento. Mas Kenny, ao contrário de Christophe, se mexe bastante. Ele nunca teve vergonha de parecer ridículo.

-Tudo bem com você? - Kenny pergunta, sorrindo pra ele.

-Tudo ótimo comigo. - Ele responde sem hesitação, entretido demais com a dança e com a cabeça leve pelo álcool. - É meu aniversário.

Kenny riu.

-Eu sei.

Wendy começa a rir, observando a cena de perto. Kyle não se vira para olhar as duas, mas dança com mais entusiasmo, pisando no pé de Kenny de vez em quando. Ele se joga pra trás nos braços dele com uma certeza incondicional de que Kenny nunca o deixaria cair, e é verdade. Em dado momento, Kenny o tira do chão e gira uma vez, e Kyle ri, apertando os braços em volta do pescoço de Kenny.

-Eu sempre te disse pra largar esses dois bocós e fugir comigo. - Kenny sussurra no ouvido dele.

E é verdade, ele sempre disse. Sempre flertou com Kyle quando precisava fazê-lo rir, e até quando não precisava. Como eu disse, os dois têm ainda mais intimidade do que teriam dois irmãos. Kyle ri, escondendo o rosto no ombro dele, aconchegando-se ali por um minuto ou dois, porque é esse lugar seguro e incondicional de um amigo. É interessante comparar a relação que Kyle cultiva com Kenny à relação que ele cultiva com Gregory, mas poderemos falar mais sobre isso daqui a certa de dez minutos, quando a dança tiver terminado e Kyle for até a cozinha para nosso último encontro relevante da noite.

 

Kyle e Gregory

 

Kyle entra na cozinha ainda dançando com os ombros e com as mãos, e Gregory acompanha com a cabeça enquanto corta um bolo branco de confeitaria com suspiros e morangos por cima, tão bonito quanto delicioso. Quando Kyle vê o bolo, para de dançar e estreita os olhos, aproximando-se da bancada. Ele coloca uma mão sobre a superfície gelada de mármore, a outra na cintura, como se não tivesse acreditado quando Gregory disse que haveria um bolo. Enquanto isso, Gregory pressiona duas velas sobre a superfície cremosa do bolo, afundando-as na massa fofa para que fiquem de pé. Ele abre a gaveta a procura de um isqueiro ou fósforo.

As velas não representam números, pois ele não quis ser deselegante.

Gregory cantarola a melodia da música que toca na sala, dançando com uma das mãos e vasculhando a gaveta com a outra. Ele demora algum tempo para reparar que Kyle se encostou na bancada e cruzou os braços, engolindo um pouco de saliva pela garganta seca, os olhos levemente avermelhados. Ele fica assim, parado, encarando o bolo. Quando Gregory levanta a cabeça e se depara com a cena, diz:

-Você achou que eu estivesse brincando?

-Claro que não. - Kyle responde com um sorriso distante, deitando a cabeça um pouco de lado. - Você nunca deixou faltar um bolo no meu aniversário.- E é aí que a voz de Kyle fica incrivelmente triste.

-Mas é claro. Um aniversário precisa de um bolo.

Ele umedece os lábios, desviando o olhar para a geladeira ou qualquer outro canto da cozinha, trazendo uma das mãos ao rosto para secar os olhos com o dedo indicador antes que alguma lágrima resolvesse escorrer sem permissão. Pode ser porque ele está um pouco bêbado, um pouco mexido pela presença de Stan naquela noite, um pouco mais sensível do que de costume. Mas o que faz Kyle sentir vontade de chorar é uma memória muito clara, muito viva dentro do seu peito.

-Ei, ei. - Gregory diz, gesticulando na direção dele com a espátula para ter sua atenção. - Eu não comprei um bolo pra você ficar chorando em cima.

-Desculpa. - Ele responde com uma risada igualmente triste, sacudindo a cabeça para voltar à realidade. - É difícil não lembrar.

Eu queria poder explicar o carinho com que Gregory o olha nesse momento. Ele tem as sobrancelhas um pouco franzidas de preocupação, a boca enrugada em uma careta de quem quer dizer alguma coisa, mas não sabe exatamente o quê. Ele engole a dor, bota a espátula sobre a bancada e se aproxima de Kyle com as duas mãos erguidas para segurar seu rosto, olhando-o fixamente durante quase dez segundos. Os dois têm quase a mesma altura, Gregory com dois ou três centímetros a mais.

-Kyle. - Ele fala em uma voz doce. - Nós não falamos sobre aquele tempo, lembra?

-Eu sei, Gregory. Eu sei… - Ele não quer encará-lo, mas é difícil fugir dos olhos terrivelmente azuis de Gregory de Yardale. - Eu só…

As palavras morrem na boca de Kyle, porque Gregory tem razão, eles não falam sobre aquele tempo. E há uma razão para isso. Há coisas que ele não consegue dizer para Gregory, porque violaria muitos acordos dessa relação. Talvez seja a hora de falar um pouco sobre Gregory e Kyle, para que você entenda plenamente o que acontece aqui. Foi Gregory quem ensinou Kyle como sobreviver. Quando ele perdeu a perna, Kyle jamais se esqueceria, ele se ergueu emocionalmente como um gigante em vez de afundar em uma profunda depressão como a que Kyle vivia exatamente na mesma época. É sobre aqueles tempos obscuros que eles não falam, não falam porque essa é a única maneira que Gregory consegue deslizar pela vida com tanta graça, como se fosse intocável. Aceitando as coisas da maneira que foram, não tentando mudá-las, seguindo em frente, nunca olhando para trás. Com isso, Kyle aprendeu também a sobreviver sem Christophe DeLorne, sem Stan Marsh.

É engraçado como esses dois moraram juntos durante tanto tempo, mas não foi na banalidade do dia a dia que eles se encontraram como amigos tão íntimos, e sim vivendo meses de terror juntos com nada para se apoiar além de um ao outro. E, depois, quando Christophe foi embora, eles buscaram um no outro uma conexão em comum. Uma conexão saudosa, nostálgica, forte. Hoje, o laço entre eles não têm mais a ver com o Toupeira, como também não é mais resultado de dor e sofrimento. Eles construíram um tipo de relação que transcende todas as coisas da guerra.

Gregory é a pessoa de Kyle. Kyle é a pessoa de Gregory.

Por mais que Kyle ame Kenny de forma tão plena e tão pura, ele nunca se apoiou demais em alguém que também era o melhor amigo de Stan. Foi assim que Gregory se tornou sua rocha, seu porto seguro, a pessoa que garante bolos de aniversário todos os anos.

-Muito obrigado. - É tudo o que Kyle diz, sorrindo, agora um sorriso de verdade. E ele não se refere somente ao bolo, nem ao jantar. É um agradecimento muito mais amplo, que volta anos e mais anos no passado, para uma mesma noite que acontece quinze anos atrás, no dia 26 de maio.

Gregory beija seu rosto e volta sua atenção para o bolo.

 

A contragosto de Kyle, eles cantam parabéns. Vou te dizer, o Toupeira comendo bolo cheio de glacê usando apenas as mãos é uma das melhores cenas que eu já vi na minha vida. Bem, não “vida”. Terminologias à parte, o relógio dá quase meia noite e Wendy e Bebe precisam voltar para casa para liberar a babá. Kenny aproveita a carona com elas. Logo em seguida, Kyle e Christophe também se despedem. Kyle dá um abraço demorado em Gregory e vai direto para a porta, sem se dar conta de que Christophe e Gregory trocam apenas um longo olhar, mas nenhum toque ou palavra.

Quando já respiram o ar gelado da madrugada que se aproxima, andando pela calçada silenciosa até o carro estacionado duas casas para a esquerda, Christophe coloca o braço sobre os ombros de Kyle discretamente.

-Me dá a chave. - Ele diz, a frase grosseira contrastando com o gesto de carinho.

Kyle franze a testa.

-Por quê?

-Você tá bêbado. Eu dirijo.

-Você bebeu mais do que eu.

-É, mas eu consigo andar em linha reta. - Ele diz, parando de caminhar, estendendo a mão.

Kyle o estuda durante um momento, mas alcança a chave no bolso traseiro da calça, resignado. Quando o Toupeira tenta pegá-la, ele afasta a chave como uma criança faria, sorrindo de canto.

-O que você vai me dar em troca? - Ele pergunta.

Christophe não ri da brincadeira. Continua com o braço envolvendo os ombros de Kyle de forma protetora, o rosto já bastante perto, os olhos reluzindo sob a iluminação ruim do poste, tão sérios. Ele se aproxima o suficiente, mas não o beija, apenas para assim um instante para que Kyle sinta a respiração quente dele, o álcool misturado com algum aroma doce, e isso faz os joelhos de Kyle estremecerem. A mão do Toupeira sobe pelo cabelo ruivo dele e alisa um pouco atrás da orelha com o polegar, mas a outra alcança a chave com toda facilidade do mundo, porque Kyle estava distraído demais o encarando com as pupilas dilatadas, enfeitiçado. Depois de conseguir o que queria, ele se afasta, mas o braço continua ali.

-Seu filho duma puta. - Kyle diz, rindo, empurrando-o de leve. Está realmente bêbado demais pra conseguir andar sem aquele braço o segurando. - Eu ia te dar de qualquer forma.

-Eu sei.

Ele abre o carro e os dois entram. A temperatura está consideravelmente mais agradável quando fecham as portas, o som estridente ecoando naquela rua silenciosa. Kyle passa um instante observando os vaga-lumes no quintal de um desconhecido, mas sua mente continua nebulosa por lembranças de um tempo distante, e o olhar melancólico dele não passa despercebido pelo Toupeira.

-O que você tem?

-O quê? - Kyle pergunta, virando-se para ele enquanto coloca o cinto.

-Essa sua cara esquisita.

-Ah. - Ele recosta a cabeça no banco e fecha os olhos enquanto ouve Christophe colocar a chave na ignição, mas ele não a vira de imediato. Kyle sente uma tontura leve, o que o leva a abrir os olhos. - Não é nada. Eu só tô me lembrando…

Christophe espera alguns segundos para ver se ele continua a frase ou não. Diante do silêncio que se segue, ele não insiste. Coloca a mão na chave para girá-la, quando Kyle volta a falar, ainda olhando os vaga-lumes.

-O Gregory já te contou porque ele nunca me deixa em paz no meu aniversário?

Ele não entende a pergunta. Encolhe as sobrancelhas grossas, o rosto virado para Kyle, que não o olha de volta. O Toupeira descansa uma não no volante e faz que não com a cabeça, e mesmo que Kyle não o esteja olhando, ele sente a resposta. Pisca devagar algumas vezes.

-Quando nós fomos presos… - Kyle explica, desencostando a cabeça do banco para pendê-la um pouco para frente, pensativo. - Era difícil manter a contagem dos dias, sabe? Eu me dei conta de que o meu aniversário seria no dia seguinte na noite do dia 25. Eu fui pra cama chorando, sem saber se já era meia-noite ou não, eu não conseguia parar de chorar. Nessa época eles ainda mantinham a gente na mesma cela, foram os dias mais fáceis. Era um beliche horroroso, eu ficava na cama de cima. Aí… - Ele sorriu ao se lembrar, fechando os olhos, sacudindo um pouco a cabeça. - O Gregory juntou uns restos de bolinho de carne… Nós não tínhamos comido bolo de carne, eu não faço ideia de como ele conseguiu aquilo, era tão nojento. Mas ele veio segurando aquilo… - Ele uniu as mãos como que para imitar o gesto e voltou a olhar Christophe. - E tinha um fósforo espetado em cima, aceso. Ele disse que foi a coisa mais próxima de um bolo que ele conseguiu… “Um aniversário precisa de um bolo”, ele me disse…

O carro está muito mal iluminado, só se enxerga contornos e sombras dos rostos dos dois homens aqui sentados, mas Christophe tem algo semelhante a um sorriso no rosto. Ele assente com a cabeça porque isso se parece muito com algo que Gregory faria.

-Foi… Sabe, nós tínhamos morado juntos, eu sabia que o aniversário dele era em agosto, mas eu não conseguia me lembrar do dia. Eu achava que era… Entre o dia 10 e o dia 15, mas eu não tinha certeza. Eu nunca seria capaz de fazer a mesma coisa por ele. Ele disse que eu nem podia imaginar o que ele precisou fazer em troca de um fósforo naquele lugar. E ele veio com isso, com esse bolinho tão nojento só pra que eu me sentisse pelo menos um pouco em casa.

É tão difícil fazer Kyle chorar quando sóbrio, mas depois de cinco taças de vinho, todas as coisas da sua juventude reemergem na memória. Diante das coisas tão feias que ele viveu, especialmente naquela época, algo bonito parecia muito mais especial do que seria em circunstâncias normais. As lágrimas escorrem agora como se fossem naturais, ele não tenta reprimi-las e o choro não o afeta a ponto de afetar a fala.

Christophe apenas escuta.

-Chegou num ponto… Lá dentro, chegou num ponto que eu simplesmente desisti de que você fosse conseguir fazer qualquer coisa pra nos tirar de lá. Eu aceitei que era lá que eu ia morrer, entende? E eu só queria que isso acontecesse logo, porque eu já me sentia morto. Não fazia sentido continuar respirando. Eu olhei aquela pia de porcelana grotesca tantas vezes pensando se eu conseguiria me matar dando com a cabeça nela várias vezes. Cada canto, cada lençol parecia uma oportunidade de acabar com aquilo. Eu sabia que eles não iam me deixar morrer. Quando eles me pegavam, faziam questão de só cortar e queimar onde não tinha nenhum órgão vital.

Agora, a mão do Toupeira aperta o volante com força e faz algum barulho. Ele tem os olhos fixos na rua, em um ângulo onde a luz do poste banha metade de seu rosto, revelando uma expressão tão perturbada debaixo de uma camada grossa de auto-controle. Ouvir esse tipo de coisa é muito pior pra ele do que levar um tiro, e ele não levou poucos.

-Se não fosse o Gregory… Eu tenho certeza de que eu não estaria vivo quando você finalmente apareceu. Eu teria dado um jeito de terminar tudo muito antes. Mas com ele… Com ele lá, prometendo o tempo inteiro que você daria um jeito de nos soltar, me dizendo que eu era sim forte o suficiente pra sobreviver a qualquer coisa… Que ele me manteria seguro… Isso parecia tão importante pra ele. Ele tinha tanta certeza de que tudo ficaria bem, eu não podia entender como.

-Kyle… - Ele murmura baixinho, voltando seu rosto para encontrar com o de Kyle, e a única resposta possível que ele encontra é se inclinar para frente e deslizar uma mão pelo pescoço do outro, subindo os dedos pela bochecha, segurando firme antes de beijá-lo. É um beijo abafado e úmido, aflito, quase desesperado, mas oferece todo o alívio de que os dois precisam.

Ainda muito perto, com os lábios roçando nos dele, Christophe seca o rosto de Kyle usando os polegares e pressiona o nariz contra o seu, deixando os lábios encaixarem novamente, saboreando essa textura quente, reconfortante. O cheiro do hálito de Christophe, de tabaco e almíscar, de alguma outra coisa gostosa que está sempre lá, tudo isso deixa Kyle anestesiado. Ele para de chorar.



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