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História Liberté - O Fantasma


Escrita por: caulaty

Capítulo 3 - O Fantasma


12 de maio de 3660

 

Christophe pega a tigela de sopa com as duas mãos e bebe de maneira barulhenta, sem usar talher algum, largando-a sobre a mesa grosseiramente logo em seguida. Despedaça também um pedaço de pão como um mendigo que não vê alimento há semanas, chupando os dedos úmidos cheios de migalhas, sujando os lábios e o queixo, sem fazer muita questão de secar a barba. Kyle o observa de braços cruzados, apoiado contra a geladeira. Apesar de o Toupeira não fazer uma refeição decente há meses, continua robusto, sem o aspecto de uma pessoa doente. Kyle quer perguntar como isso é possível, quer saber onde ele estava e como viveu nos últimos anos, mas não vai bombardeá-lo de perguntas essa noite. Já estão em silêncio há dez minutos, quando Christophe termina de comer, soltando um gemido satisfeito. Finalmente limpa a boca, ainda que usando as próprias mãos, erguendo os olhos para Kyle com suas pupilas dilatadas, uma expressão doce em seu rosto, como se fosse um menino.

-Como está o Stan?

Kyle mantém o contato visual por alguns instantes, mas acaba se virando para começar a lavar a louça acumulada na pia, fugindo daquele olhar sereno. Não há julgamento na maneira com que os olhos amendoados o observam, mas acredito que seja justamente isso o que machuca mais. Ele liga a torneira e arregaça as mangas, separando os pratos dos talheres em uma pilha pequena, esfregando o nariz úmido com o pulso.

-Eu não saberia dizer.

-Mas ele... - Christophe diz, mas segura as palavras, voltando a tomar as tigelas nas mãos, levantando-se da cadeira. Dá uma batidinha na superfície de madeira, afastando as migalhas que deixou sobre a mesa da toalha, jogando-as no chão. - Ele fez a cirurgia?

Aproxima-se da pia, arrepiando os pelos da nuca de Kyle com o calor do seu corpo. Eles não chegam a se tocar, mas o Toupeira chega terrivelmente perto dele para deixar a tigela suja sobre o mármore da pia, deixando sua respiração bater contra a orelha pequena dele, de forma quente e intensa. Logo, Christophe se afasta.

-Fez. Mas...

Seu silêncio basta para preencher aquele incômodo vazio na mente de Christophe; vazio este que ele reserva para uma pontinha de esperança, algo com o qual ele não está habituado. Não gosta de sentir esperança justamente por momentos como este, em que a realidade não está mais coberta pela bênção da ignorância.

O homem francês esfrega a cara com a mão que não está apoiada no balcão, encarando Kyle um pouco de lado. O som da água corrente é a única coisa que se pode ouvir durante um bom tempo.

-Merde. - Resmunga em voz baixa.

-Bem, ele sabia que as chances eram muito pequenas. Pelo menos aqui em South Park. - Kyle justifica, forçando um equilíbrio infundado em sua voz. Christophe permanece em silêncio, encarando o assoalho de madeira da cozinha, sem abosrver o que escuta. Kyle fecha a torneira, levando a mão molhada ao braço dele. - Pare com isso.

Christophe apenas o encara, com o mesmo semblante vazio. Seus olhos tintilam, mais esverdeados do que castanhos. Ou pelo menos essa era uma teoria que Kyle desenvolveu durante os anos acerca dos olhos do Toupeira, teoria essa de que aquela cor dúbia da íris dele mudava de acordo com a luz e com o humor dele. Curioso, não? Acho que me deixei convencer, pois os olhos dele realmente pareciam mais verdes quando ele olhava daquela forma repleta de compaixão, de dor. E quando ficava puto da vida, realmente fora de si, os olhos escureciam até não sobrar quase nada de esverdeado. Kyle nunca chegou a compartilhar com Christophe essa teoria, acredito que porque não queria entregar os segredos que usava para desvendar aquela criatura exótica.

-Você salvou a vida dele, Christophe. - Prossegue, mais irritado, apertando os dedos em torno dos músculos daquele braço.

Mas o Toupeira recua bruscamente.

-Eu também o coloquei lá dentro.

-Você não o forçou a nada. Estávamos naquilo juntos, todos nós tivemos perdas.

Deixe eu te explicar; Eles estão se referindo a um episódio de muitos anos atrás e não serei eu a narrar tal episódio, mas posso dar alguns vislumbres do que está por vir. Acho que não fará mal. Como você já sabe, Stan Marsh perdeu a visão. E o ser humano tem o terrível hábito de reviver o passado repetidamente para buscar, nas entranhas dos acontecimentos, a razão pela qual tal coisa aconteceu e como poderia ter sido diferente. É uma tremenda bobagem, você se dá conta disso depois de desapega da carne, mas não posso julgá-los por tentar encontrar um sentido nas desgraças. É curioso que não se tenta encontrar um sentido na alegria, na felicidade, pois são auto-explicativas. A desgraça também é. O que aconteceu com Stan Marsh foi uma desgraça que não poderia ter sido prevista por ninguém, mas uma série de atitudes implicam culpa nos dois homens de pé nessa cozinha. Por motivos bastante diferentes, vale ressaltar.

Houve uma época em que o Toupeira não sabia se calar. Ele teria dado uma porrada no mármore do balcão e vomitado suas opiniões na cara de Kyle, era a única forma que ele conhecia para se expressar. O homem diante de Kyle, hoje, é diferente. Continua não sendo muito bom com palavras, verdade seja dita, ele ainda fala muito mais com os olhos e com o corpo. Mas apenas encara o outro com uma serenidade melancólica, como um muro de tijolos que não reage aos socos que leva. Um silêncio esquisito se instala diante da falta de argumento, pois Christophe se recolhe dessa discussão desviando o olhar para os ladrilhos beges da parede. Há um desenho antigo de uma casa e uma criança em azul, centrada a cada tantos azulejos, que prende sua atenção durante alguns segundos.

-Você quer tomar banho? - Kyle pergunta um tanto impaciente, incomodado com a ausência de barulho.

-Você ainda tem água quente? Eu não quero gastar.

Kyle responde com as sobrancelhas, algo que ele sempre fez e eu sempre achei hilário. Ele ergue as sobrancelhas com tanta naturalidade, mas a expressão resultante sempre te dá a impressão de que você acabou de dizer que porcos voam. Há uma arrogância tão intrínseca a ele, que é ao mesmo tempo tão cuidadosa, tão gentil. Ele descarta o comentário de Christophe com um aceno, a mão ainda molhada, a manga dobrada até a metade do braço.

-Vou pegar uma toalha pra você.

 

Christophe aproveita o tempo no chuveiro. Ele não sentia água quente contra a pele há muito tempo, você pode imaginar. Ele não contou a Kyle em que condições ele viveu nos anos em que esteve fora do país e como estas condições pioraram nos últimos meses. Eles não o chamam de Toupeira de graça, sabia? Ele gosta de viver debaixo da terra, literalmente, além da sua paixão por cavar buracos como eu nunca vi em um ser humano. É quase um fetiche, se você me perguntar. Ele passou os dois últimos anos mudando de localidade a cada dois meses, mas os lugares que ele alugava eram sempre muito bem escondidos – porões em lojas clandestinas, casas de armazenamento, mas nunca apartamentos. Ele gostava de estar perto do chão caso precisasse correr por qualquer motivo. Não costumava ter água corrente ou calefação, às vezes nem eletricidade. Ele aprendeu a trabalhar com o que tinha, decidiu esquecer sobre confortos dispensáveis como tomar banho. A maioria da população mundial não tem mais esse tipo de luxo, de qualquer forma (água, refeições quentes, uma boa cama, um teto sobre suas cabeças). Para ser honesto, Christophe também não tem um teto sobre sua cabeça.

Kyle o lembra disso.

Quando ele sai do chuveiro e veste a última calça que trouxe, Christophe desce as escadas para encontrar um lençol recém-lavado e um travesseiro sobre o sofá. Ah, o toque de lençol limpinho. Eu sinto falta disso em estar vivo. Christophe também sente falta e aproveita cada segundo sentindo o toque macio com seus dedos levemente enrugados pelo banho, abrindo um sorriso distante, sentando-se no sofá com o cabelo pingando sobre o peito nu. Ele suspira, exausto, o que é mais do que compreensível. Homens como o Toupeira já não sabem mais o que é estar verdadeiramente seguro, pois reconhecem que não existe lugar em que os militares não possam encontrá-lo. É um dos clandestinos que ainda sobrevivem em militância, diferente dos seus ex-companheiros de guerrilha que se filiaram ao partido e hoje têm a possibilidade de viver vidas normais. Christophe nunca quis isso. Eu até enxergo algo de romântico nessa ideia de liberdade, mas é muito fácil para mim. Ele vive dessa maneira justamente porque continua sendo um prisioneiro.

É uma mente difícil de entender, a desse homem. Houve um tempo em que ele era diferente. Eu não o conheci nessa época, mas na minha condição, você percebe o tempo como algo não linear, simultâneo, então em algum ponto da história eu posso enxergar a época em que Christophe tinha um sorriso sacana que transparecia com uma impressionante facilidade.

Logo, Kyle aparece na sala. Está descalço, vestindo uma camisa branca que vai até a metade das coxas. Esfrega os olhos como um garotinho que pede pelo urso de pelúcia antes de se deitar. Está pronto para dormir, com exceção dos óculos de leitura de haste preta e grossa que ele colocou para verificar as mensagens no computador. Seu rosto continua sério enquanto se aproxima, como um prelúdio da frase que sai da sua boca:

-Acho que precisamos conversar.

Christophe não gosta dessa frase porque nada bom jamais vem depois dela. Mas ele encara Kyle como se seu estômago não tivesse acabado de se revirar do avesso de repente, esperando pelo que quer que estivesse prestes a ser desenterrado entre eles. Não faltam cadáveres entre esses dois homens, tenha certeza. Tenho que admirar esse rapaz, Christophe, porque ele é um filho da puta muito forte por se manter são quando Kyle se senta ao seu lado no sofá, muito próximo a ele. Por dentro, eu sei que ele está completamente fodido. É tão óbvio no rosto dele, sob as linhas grosseiras da expressão, por mais fria e dura que seja. Ele mudou e isso assusta Kyle.

-Eu estou muito feliz que você esteja aqui. Você não faz ideia. - Kyle diz a ele com essa risada nervosa e inevitável, ajeitando os óculos que deslizam pelo nariz hebraico. - Mas eu preciso saber o que você está planejando. Vai ficar em South Park?

O Toupeira projeta o lábio inferior, enrugando-o um pouco enquanto pensa a respeito. Não é a primeira vez que ele encara essa pergunta grotesca, é claro, mas parece diferente agora que Kyle está perguntando. A coisa toda parecia bem menos intimidadora dentro da sua cabeça. Há alguns anos, ele se habituou a ir se deitar sem saber ao certo onde estará no dia seguinte, até mesmo se terá onde dormir. Ele não podia planejar nada quando não havia estabilidade, se é que ele ainda podia se lembrar do significado de “estabilidade”. Tais coisas nem pareciam importantes até aquele momento. Então ele encolhe os ombros.

-Não pensei nisso ainda. - Enfim responde num murmuro carregado de sotaque, mesmo que não seja uma resposta totalmente verdadeira.

-Eu só... Não tenho certeza de que é uma boa ideia você ficar aqui.

Essas palavras ardem na garganta de Kyle, mas ao mesmo tempo, elas oferecem um alívio estranho de alguma natureza. Aquele pensamento inquieto o perturbou desde o momento em que o êxtase de rever Christophe se diluiu um pouco. Aquilo veio de meses e meses construindo uma expectativa sobre o retorno dele, por mais utópico que parecesse. Para entender essa agonia de Kyle, você precisaria conhecer as circunstâncias do fim. Vou adiantar: não foi belo. Não foi nada, nada belo. O fato de esses dois homens estarem sentados, juntos, conversando com esse afeto incondicional e uma dose violenta de saudade, é uma demonstração muito clara de que o tempo cura todas as coisas. Eles não tocaram nessa ferida para saber até que ponto realmente está curado, mas existem coisas maiores, mais fortes.

Quando Christophe DeLorne foi embora, Kyle tinha certeza absoluta de que ele não voltaria nunca mais e que não gostaria de vê-lo de novo, mas é importante deixar claro que isso não era culpa de Christophe, pelo menos não aos olhos de Kyle.

A coisa toda aconteceu há catorze anos. Christophe pegou um trem para o aeroporto com uma pequena maleta de madeira com um ou outro pertence importante e algumas mudas de roupa, sozinho. O dia estava ridiculamente frio, gelando seu rosto ensanguentado. Foi o primeiro dia em que o Toupeira chorou depois de seis anos encrostando as coisas mais feias dentro dele; é difícil acreditar nisso, pois nesses seis anos ele foi preso mais de uma vez, não apanhou pouco, perdeu companheiros de guerrilha, viu a cara da morte e escapou por muito, mas muito pouco. Não sabia se sua família estava viva ou morta, acompanhava de longe o caos em seu país – para o qual retornaria naquela noite -, mas nada disso fez esse homem chorar. O que fez Christophe se encolher como um feto no assento do trem, ao lado de um senhor de idade negro que guardava um instrumento musical de sopro em seu estojo, foi a vulnerabilidade em carne viva que é amar outro ser humano.

Eu poderia gastar tantas páginas falando sobre o momento em que Christophe cobriu o rosto e se contorceu de dor no banco, deixando escorrer pelos olhos aquele demônio sem tamanho que estava mastigando há meses. Foi um choro barulhento, mesmo que contido, tão desesperado e sem fôlego, doloroso de assistir. Mas precisamos seguir em frente. Voltaremos a isso no futuro.

-Você sabe do que eu estou falando. - Kyle prossegue, desconfortável com o olhar terrivelmente firme do outro sobre ele, pois é a única resposta que recebeu até então. - Você poderia ter ido até o Gregory. No entanto, está aqui.

-Eu já disse que vim porque hoje é dia doze.

-Sim, mas ano passado também teve o dia doze de maio e você nem fez questão de dar sinal de vida. O que mudou?

Christophe ergue a mão em protesto com o indicador e o polegar unidos, como se fosse um italiano. O detalhe é muito sutil, mas me lembra a única vez em que ele ergueu o dedo no rosto de Kyle. Nem preciso explicar que o tal dedo quase foi quebrado naquela ocasião. Esse foi um erro que o Toupeira nunca mais cometeu.

-Eu não estava de férias na Europa, Kyle.

Kyle tem um impulso imediato, abrindo a boca para responder, mas segura as palavras na garganta por um instante e deixa o ar escapar pelas narinas com certa impaciência, deitando a cabeça para o lado. Ele tira os óculos em um gesto quase dramático, massageando as têmporas com a mão livre.

-Eu sei disso. Não estou te cobrando nada.

Há um momento longo de silêncio em que o propósito daquela conversa se dissipa no ar e os dois mergulham na realização do que a distância e o tempo pode ter feito com eles. Christophe finalmente abaixa os olhos, depois de uma encarada longa na cicatriz de Kyle, absorvendo cada pequena mudança naquele rosto que costumava ser o seu preferido no mundo inteiro. Quando jovem, Kyle costumava ter aquele rubor natural na tez que só a juventude e os sonhos proporcionam. Agora, ele parece tão cansado. Há algo muito áspero nele, algo ríspido que sempre esteve ali e que foi a força de Kyle durante todos os anos de escuridão que eles precisaram encarar, ainda muito jovens.

Kyle larga os óculos sobre o colo e esfrega o rosto.

-Você fez o que você tinha que fazer, eu também. - Ele diz. - Não estou te culpando por isso.

-Então qual é o problema?

-Você sabe qual é o problema.

Christophe relaxa as sobrancelhas e o encara com a honestidade de quem não faz ideia, especialmente porque Kyle parece um muro encarando-o de volta. O francês estica o braço musculoso para apoiá-lo no encosto do sofá e recosta para trás, respirando fundo. Demora um momento para falar.

-Você não me quer aqui?

A pergunta parece desmontar Kyle um pouco mais do que ele esperava. Leva os dedos longos aos olhos de forma agitada, transparecendo o estresse daquela discussão. Ele não quer reclamar. Não quer dar atenção demais a coisas que não deveriam importar no quadro geral, mas que o congelam agora, que latejam de dor toda vez que ocorrem à mente dele.

-Foi difícil, Christophe. Quando você foi embora, foi muito foda continuar aqui. Mas eu me acostumei, eu só não quero me desacostumar a...

“Eu não quero me desacostumar a ficar sem você”, é o que ele gostaria de ter dito. As palavras não saíram, Kyle apenas encolhe o ombro e sacode a cabeça de forma torta, estranha, recuando como um animal quando Christophe lê nas entrelinhas e se aproxima devagar, envolvendo o corpo arredio de Kyle para puxá-lo contra o seu peito nu e úmido, abraçando-o com uma delicadeza incomum, descansando o queixo no topo da cabeça ruiva. Houve um tempo em que acontecia o contrário: Kyle não tinha medo de se fragilizar, enquanto esse era o maior pavor do Toupeira.

Mas as coisas mudaram.

Eles ainda não faziam ideia do quanto.

 

Na manhã seguinte, Kyle acorda mais cedo para passar o café e colocar a mesa. É algo que ele adora fazer, mas nunca há companhia para isso. Ele não tem mais um jogo de louça, apenas peças diferentes de cores e tamanhos diversos que sobreviveram ao longo dos anos, desde que ele comprou a casa. Kyle serve o suco de caju, o iogurte e faz um omelete. Não há muita coisa na geladeira, ele precisa fazer compras. Mas Christophe acaba nem se sentando, come uma manga de pé encostado no balcão. Eles compartilham um momento em que o suco da manga suja a barba de Christophe e Kyle solta a primeira risada desde que ele voltou. A cozinha é bastante silenciosa no restante do tempo.

Eles também não têm muito tempo para conversar antes de irem para a Câmara. No carro, Christophe recosta o banco para trás e coloca um dos pés sobre o painel, a bota imunda sujando a superfície e Kyle apenas reprova com o olhar, uma faísca naqueles olhos verdes tão familiar que chega a ser um alívio vê-la de novo. O Toupeira delicadamente recolhe a perna e bufa. Kyle agradece silenciosamente.

Agora vamos falar de outra figura.

Gregory é um homem interessante. Eu nunca gostei muito dele em vida, particularmente, porque eu não compreendia o motivo de ele ser como é. Olhando de fora, eu não culparia você por pensar que ele não passa de um pirralho mimado (bem, hoje ele é um homem, mas na época em que eu era vivo e o conheci, ele era quase um pirralho; todos eles eram), um desses meninos ricos que gostam de brincar de revolução com seus amiguinhos pobres. Mas eu estava equivocado na época. Alguém pode me culpar? Os olhos vivos são tão limitados. Talvez eu também fosse jovem demais para olhar através de toda aquela arrogância e perceber que Gregory poderia muito facilmente ter voltado para a Inglaterra, onde não seria tratado como um forasteiro criminoso. A xenofobia era terrível, mas ele ficou na América e lutou com o resto de nós, e mais do que isso, foi um líder em uma revolução que nem era pela terra dele. E meu Deus, ele não perdeu pouca coisa por conta disso.

Um bom exemplo do que estou dizendo é a maneiríssima perna mecânica dele. Devo eu te contar como isso aconteceu? Bem, não, vou deixar que Kyle conte quando chegar a hora. Ele estava muito próximo de Gregory quando ele teve sua perna amputada. Vamos nos focar agora, isso é muito importante.

Ele está trabalhando em sua mesa, chique como sempre. Os ternos de Gregory sempre caem com perfeição em seu corpo, alternando entre cores e tons pasteis, jamais combinando a calça com o paletó. Por baixo, como sempre, ele usa uma camisa estampada – de seda, normalmente – em um tom neutro. A perna mecânica está sempre exposta, especialmente porque ele gosta do visual, não tanto por ter orgulho dela.

Kyle bate na porta dele.

-Entre.

Ele timidamente abre a porta, colocando a cabeça para dentro pela fenda e esperando que Gregory terminasse a frase que estava escrevendo. Quando o loiro finalmente olha para ele, colocando a caneta sobre o papel, Kyle anuncia que há alguém ali que gostaria de vê-lo.

Gregory quase nunca fica sem palavras. Mas ver um fantasma costuma fazer isso com qualquer um. Afinal de contas, mesmo com o aspecto de cyborg e a construção excepcional de um caráter de rei, ele ainda é apenas um ser humano. Quando a porta se abre um pouco mais e Christophe surge bem à sua frente, a poucos metros dele, Gregory prende a respiração pelo que parece ser uma eternidade. Em termos de cronologia, passam-se apenas dois segundos. E ele se levanta, empurrando a cadeira para trás com violência.

Essa é uma relação curiosa e improvavelmente bela. No começo, a única coisa que eles tinham em comum era a sua causa. A urgência de lutar por um país que não era o seu e a coragem, acima de qualquer coisa, foi o que os uniu. Eles se compreendiam porque não desperdiçavam energia com sentimentalismo barato, ou com sentimentalismo de qualquer natureza. Eram duas pessoas que pareciam tão frias, eu jamais teria adivinhado o quão profundo o laço entre eles poderia ser, e de fato, seria.

Não houve choro quando Christophe foi embora, é claro, Gregory compreendia que as coisas eram como eram. E o conhecia bem o suficiente para não se desesperar quando o Toupeira parou de mandar mensagens da França. Não significava que ele estava morto, ele tentou dizer isso ao Kyle – em vão - na época. Foi somente depois do primeiro ano inteiro sem notícias que ele começou a absorver a possibilidade de que nunca mais veria o Toupeira de novo. E essa foi uma amputação infinitamente pior do que a de sua perna. Mas não fazia sentido. Christophe já tinha sobrevivido a coisas muito piores em South Park, ele não poderia ter caído tão fácil assim. Gregory sabia que ele estava vivo. Ele não o disse em voz alta, pois seria cruel demais com Kyle, que havia aceitado a morte de Christophe porque ter esperança era difícil demais. Insuportável, até.

Ambos amavam Christophe de formas muito distintas. Eu acho que posso afirmar que o amor de Gregory era mais puro. Ainda é. É o amor de família.

O abraço é apertado, quase violento. Os corpos colidem quase com raiva, embora não seja essa a melhor palavra para descrever o que se passa no peito de Gregory enquanto ele envolve o tronco de Christophe em seus braços e desmonta a pose imaculada, superior. O abraço é muito, muito demorado. Dolorosamente demorado. Mas não há melodrama; Assim que eles se afastam, Gregory dá uma boa olhada nele, analisando os poucos fios grisalhos que começam a aparecer na barba, as linhas sinuosas do rosto. Gregory leva a mão ao rosto dele e acaricia a bochecha, segurando qualquer lágrima que se atrevesse a umedecer seus olhos azuis, e diz:

-Bem, você está velho.

-E você está ficando careca.

Kyle solta uma gargalhada da porta, cobrindo a boca com a mão.

A palma que está na bochecha de Christophe serve para dar um tapa amigável, antes que Gregory volte a puxá-lo contra si, escondendo o rosto em seu ombro, o corpo inteiro desfeito, agarrando-se a ele com o desespero de quem não aguentava mais esperar um segundo sequer. Ele murmura apertado:

-Eu sabia que você ia voltar, filho da puta.

Os três estão tão mergulhados no momento que nenhum deles se lembra do homem cego que se aproxima pelo corredor, iluminando o caminho com sua bengala.



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