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História Liberté - O Lar


Escrita por: caulaty

Capítulo 31 - O Lar


02 de janeiro de 3645

 

Nova York tinha um tipo de frio muito diferente do Colorado. Não particularmente melhor, porque continuava tão frio que você era capaz de sentir dor nos ossos, como se a sua carne fosse feita de papel, mas ainda assim, o ar era diferente. Eu ajeitei o gorro que aquecia minha cabeça usando as pontas dos dedos sem luva, que começavam a ficar roxos, então eu os enfiei nos bolsos do casaco e respirei fundo, observando o vapor se formar em frente ao meu rosto. Cruzei olhares com Pip Pirrup, que parou de lado à minha frente de braços cruzados, usando uma parca azul bebê apeluciada por dentro do capuz. Ele sorriu para mim e eu tentei sorrir de volta, mas meus lábios rachados doíam. Passei a língua para umedecê-los.

Já eram quase cinco horas da manhã. Ainda estava bastante escuro e assim continuaria por mais duas horas, talvez mais, visto que era inverno. Olhando o céu aberto sobre nossas cabeças, ainda não havia qualquer traço da luz alaranjada no horizonte. Estávamos parados no pátio de uma espécie de vila, com inúmeras casinhas idênticas coladas uma à outra, dividindo parede, cercando o pátio dos dois lados. Havia dois andares. Aquilo era imenso, eu mal podia ver o final das casas. Talvez chamá-las de “casas” seja um pouco forçado. O espaço era um antigo motel de beira de estrada caindo aos pedaços, relativamente afastado de qualquer civilização. A fachada do motel tinha um muro alto e não era de fácil acesso, o que tornava o lugar especialmente propício para abrigar um grupo de rebeldes.

O dono era um antigo veterano de guerra que lutou durante oito meses ao lado dos canadenses na guerra, apesar de ser inglês. Seu nome era Miles Standish. Ele foi enviado de volta para casa depois de perder um olho e sofrer uma lesão grave na perna, foi o que me contaram. Seu irmão deixou o motel para ele como herança ao morrer de câncer no fígado, e ninguém pode dizer que Standish não tentou levar uma vida normal sendo apenas um dono de estabelecimento respeitável, acreditando que estava velho demais para a guerra. Mas assim que os grupos de rebelião começaram a se fortalecer, ele não pensou duas vezes antes de fechar o negócio e ceder o espaço para abrigar os rebeldes. Claro que, no que diz respeito ao resto do mundo, o Red River Motel continua funcionando muito bem, obrigado. Tanto que, diante de qualquer rara tentativa de se hospedar nele, a resposta era sempre a mesma: “todos os quartos estão ocupados.”

Aquela não era a única unidade de rebeldes em Nova York, pelo que Gregory havia me dito. Tivemos nove horas e meia dentro de um minúsculo avião precário, que chacoalhava com tanta força que eu tive certeza de que morreríamos inúmeras vezes, mas aquele havia sido o estado padrão do meu cérebro durante toda a noite, então eu já havia desistido de ter medo. Porque Nova York não era uma promessa de vida mais longa, muito pelo contrário. Pessoas como eu não viviam durante muito tempo. Então, morrer em uma queda de avião ou fuzilado por um homem de branco, que diferença fazia?

O avião não tinha poltronas, com exceção das do piloto e copiloto. Era um avião de carga em estado precário, de cor escura como se faziam os aviões de guerra, e talvez tivesse servido a esse mesmo propósito em algum momento: carregar munição. Havia uma série de cintos de segurança instalados secundariamente na parte de trás, mas não o suficiente para todos nós. Fomos amontoados, agarrados uns aos outros. A maior parte do caminho foi em silêncio. Bem, a máquina fazia um barulho horrível e nunca havia silêncio de fato, mas ninguém sentia vontade de dizer nada. Porque lá estávamos eu, Stan, Gregory, Wendy, Bebe, Token, Craig, Clyde, Pip, Cartman. Ainda tínhamos Heidi, Jason, Annie, Lisa, Thomas e Patty, rostos bastante familiares. Nichole, Trent e Christophe. Kenny não apareceu no aeroporto como havia prometido. E era isso. Dezenove pessoas, das trinta ou quarenta que havíamos reunido.

O rapaz que pilotava o avião parecia mais jovem do que nós. Devia ter dezenove anos, não mais do que isso. Seu nome era Casey Miller, uma das pessoas mais feias que já vi em toda a minha vida, mas tinha uma voz deliciosamente macia que, por algum motivo, me fez acreditar que ele era capaz de nos levar a Nova York com algum nível de segurança. Ele era um falador, pelo menos enquanto estávamos em terra firme. “Aviões de carga são fortes”, ele dizia diante dos olhares de preocupação, embora alguém – não me lembro quem – tivesse jogado a informação de que o limite era de quinze passageiros. De qualquer forma, não tínhamos um número suficiente para que duas viagens valessem a pena. Deveríamos ter partido às cinco da tarde, mas esperamos até quase sete e meia na esperança de que outras pessoas chegassem a tempo. Cartman foi uma dessas pessoas, e eu não vou mentir, colocar os olhos nele aliviou um pouco do aperto no meu coração. Ele apertou meu ombro com a mão gorda e me encarou com dor profunda nos olhos ao perceber que Kenny não estava ali.

Foram as nove horas mais longas da minha vida. Eu me agarrava ao hálito quente de Stan perto de mim, seu braço em volta da minha cintura, o calor dos corpos ao meu redor no escuro daquele avião, o choro baixinho das pessoas que pensavam nos que perderam. Gregory, como sempre, era como uma rocha. Eu podia ver o pavor em seus olhos quando ele viu o estado de Christophe, mas sua expressão não mudou. Ele continuava se certificando de que todos estavam fortes e sãos e prontos para o que viesse. Me contou um pouco sobre como seria, sobre Standish, mas foi vago em quase todos os aspectos. Pensando sobre, eu percebo que ele também não sabia exatamente o que iríamos encontrar.

Christophe não melhorou durante a viagem e precisou ir deitado a maior parte do tempo. Ele resistiu diversas vezes, até o ponto de perder a consciência. Foi apagado quase a viagem inteira. Trent ficou perto dele para garantir que o chacoalhar do avião não o machucaria. Mas sua febre não era tão grave quanto havia sido de madrugada e ele não teve mais alucinações, o que me deixou bastante grato. Quando aterrizamos, havia duas vans esperando por nós. Uma só teria sido suficiente. A garota dirigindo a van tinha cabelos longos e ruivos, amarrados em um coque mal feito que parecia prestes a despencar a qualquer segundo. Ela mascava chiclete e usava muita maquiagem, mas seu batom vermelho estava desgastado como se ela tivesse acabado de comer alguma coisa ou chupar alguém. Chamava-se Lexus. Ela virou para nos cumprimentar com um sorriso muito mais caloroso do que eu esperava, mas sua expressão mudou quando Trent e Gregory carregaram Christophe para dentro do carro. Sua consciência ainda escorregava; ele tentou andar sozinho, mas não conseguiu.

-Meu Deus, é o Toupeira?! Eu estava mesmo me perguntando por onde andava essa gracinha. Nós sentimos sua falta.

Ele respondeu com um grunhido.

E agora nós estávamos, enfim, conhecendo o lugar onde passaríamos os próximos anos. Nossa nova casa, de alguma forma. Quem nos guiava era o próprio Standish; ele devia ter entre quarenta e quarenta e cinco anos, mas preservava um ar bastante jovial, um sorriso fácil que quase me lembrava o de Kenny. Meu estômago se revirou e eu tentei não pensar muito sobre ele e meu irmão, não ainda. De qualquer forma, talvez fosse a barba farta e os cabelos longos de Standish que o fizessem parecer mais novo, embora as rugas de uma pele maltratada pela vida difícil já fossem visíveis. Ele tinha os fios loiro-escuros presos em um rabo de cavalo baixo e malfeito, os fios rebeldes escapando pelos lados, um ar de quem preferia estar na cama. Mesmo assim, ele não parecia mal-humorado. Usava um tapa-olho ridículo.

-É aqui que vocês vão ficar. - Ele apontou para a construção à esquerda, abrindo os braços como se mostrasse uma limitação imaginária. - No bloco C, escolham os apartamentos por si mesmos. Estão disponíveis do 502 ao 508. Temos acomodações de uma, duas e três pessoas. Na falta de espaço, avisem, nós damos um jeito. Eu sei que vocês devem estar famintos, mas nós só servimos o café às sete. Se quiserem dormir, tudo bem, mas eu não recomendo que pulem refeições. Nós temos horários fixos. - Ele colocou as duas mãos no quadril e deixou o ar escapar pela boca, enchendo as bochechas, então coçou a barba como se pensasse. - Bom, o almoço é ao meio dia e meia e o jantar é às oito. No jantar, também são as reuniões, onde vocês vão entender melhor como as coisas funcionam. Agora, se preocupem em descansar.

Ninguém esboçou o desejo de responder ou perguntar nada, assim como Standish não parecia interessado em saber sobre as preocupações individuais de cada um. Ele já devia ter feito esse mesmo discurso tantas vezes.

De repente, um garoto gritou de cima, e todos os olhares se voltaram para ele:

-Ei, Standish!

Era um rapaz baixo e magro, branco como se nunca tivesse visto a luz do sol na vida, com orelhas escuras embaixo dos olhos e o cabelo dividido em duas cores; eu não sabia dizer se a raiz do seu cabelo era vermelha e ele havia tingido as pontas de preto ou se sua cor natural era preto e ele tingiu a raiz de vermelho sangue. Aquele tom de vermelho não parecia natural, mas o meu também não, então quem era eu para falar? Eu não podia imaginar porque alguém usaria lápis de olho às cinco da manhã, mas o garoto não parecia ter ido dormir ainda. Ele vestia uma jaqueta de couro rasgada e calças roxas. Havia luzes acesas no pátio, mas ele estava na penumbra do andar de cima, na varanda.

-O que é? Eu estou ocupado.

-Te falaram? O Toupeira voltou. - O garoto disse em um tom desinteressado, mas havia um brilho em seus olhos.

Por algum motivo, franzi o cenho e voltei minha atenção ao homem de tapa-olho à minha frente. Ele parecia completamente diferente daquela figura leve e paternal de poucos segundos atrás, que falava com gentileza para reconfortar um bando de jovens assustados. Agora, sua expressão revelava sua verdadeira idade. Ele parecia atingido por alguma coisa, seu olho estreito e nublado por alguma lembrança. Ele nos encarou.

-Vocês conhecem o Toupeira?

Ele fez contato visual com Token para perguntar, mas o desgraçado desviou a atenção para mim, como se eu devesse responder a pergunta no lugar dele. Então, assenti com a cabeça. Standish me encarou como se fosse a primeira vez que me olhava realmente, seus lábios separando para dizer alguma coisa, mas tudo o que saiu de sua boca foi o calor da respiração encontrando o ar gelado.

-Ele… Sim, ele passou o ano inteiro com a gente. Antes de viajar, nós… Nós tivemos um problema. Ele foi direto pra ala médica quando chegou aqui.

-Problema? - Standish encolheu as sobrancelhas grossas, coçando o pescoço. Ele usava um casaco marrom volumoso e luvas pretas, mas nenhum cachecol. Parecia aflito, pressionando os lábios. - O que ele tem?

A entonação da pergunta me pegou um pouco de surpresa. Não é que ele parecesse irritado, mas, mesmo assim, havia algo de acusatório em seu tom porque ele parecia nervoso.

-Ahn. Um cachorro mordeu o braço dele. Ele teve febre, mas eu acho que vai ficar tudo bem. Ele só precisa tratar a ferida direito e tomar antibiótico.

Christophe não era o único na ala médica, naturalmente. Heidi Turner também foi mordida no rosto, o que a deixou com uma cicatriz gigantesca na bochecha, mas ela não teve febre porque não foi idiota de negar tratamento como Christophe. Clyde disse que havia quebrado o pulso, mas Trent deu uma boa olhada durante a viagem e disse que estava apenas deslocado. Mesmo assim, ele também estava lá. O restante de nós tinha arranhões, hematomas e cortes que poderiam esperar. Gregory também não estava presente, preferiu ficar lá para supervisioná-los. No fundo, eu sabia que ele só não queria sair do lado de Christophe.

Standish pressionou a língua por dentro da bochecha e balançou a cabeça em compreensão.

-Ele odeia cachorro. - O homem disse, reforçando a impressão de que ele conhecia o Toupeira com certa profundidade. Havia história aqui, era muito claro.

Quando eu olhei para cima, o garoto que havia dado a notícia não estava mais lá. Era curioso observar a reação das pessoas diante do codinome de Christophe. Standish tinha um olhar melancólico, mas um sorriso queria brotar em seus lábios. A garota que dirigia a van, Lexus, se iluminou completamente quando o viu. O garoto que nos recebeu na entrada, David, fez questão de ajudá-lo a andar, deu dois tapas em suas costas e disse “bom te ter de volta, soldado”. Não foram imensas demonstrações de afeto, mas era curioso mesmo assim. Christophe nunca pareceu particularmente empolgado para voltar pra cá, embora nós não estivéssemos falando enquanto essa viagem era planejada. Mas independente disso, ele sempre pareceu não pertencer a lugar nenhum. Até então.

Troquei um olhar demorado com Stan, que mordia o lábio inferior e esfregava as mãos, parecendo ansioso para acabar logo com essa conversa para que pudéssemos entrar de uma vez. Mas quando me percebeu olhando para ele, esticou a mão para acariciar meu antebraço num gesto breve. Enquanto isso, duas das meninas falavam baixinho atrás de nós. Eu não me virei para ver quem.

-Tá frio pra caralho. - Cartman resmungou. - Vocês vão ficar falando do francês viado ou a gente pode entrar logo? Eu não quero dividir quarto com nenhum de vocês, já tô avisando.

-Podem ir. Vocês não são crianças, ninguém aqui vai mandar vocês fazerem nada. - Standish respondeu com um sorriso mais gentil do que Cartman merecia. - Já terminamos.

Uma parte do grupo se dispersou; Craig foi o primeiro a se afastar, seguido por Token, os dois provavelmente a procura de um apartamento triplo para dividir com Clyde. Era natural que eles não quisessem se separar depois de tudo o que passaram juntos. Cartman também saiu andando, repetindo que queria ficar sozinho e que não dividiria quarto com nenhum hippie fedido. Jason também foi procurar uma acomodação para garantir que ele e Heidi ficariam no mesmo quarto. Bebe e Wendy não se moveram, mas perguntaram a Annie se ela não gostaria de ficar com elas. Thomas continuou parado com as mãos nos bolsos, encarando o chão, os ombros caídos, como se não ouvisse nada do que acontecia ao seu redor. Não era preciso ser um gênio para enxergar que ele estava pensando em uma perda. Aquele olhar era comum para todos nós. Pip parecia apenas perdido, sem saber o que fazer em seguida, então Stan se voltou para ele e disse alguma coisa que eu não pude escutar, porque ao mesmo tempo, senti uma mão firme segurando meu braço.

-Ei, me diz uma coisa. - A voz de Standish me chamou. Eu estranhei o toque, recolhendo o braço instintivamente, mas dei a ele minha atenção de qualquer forma. - Quem é o médico que veio com vocês?

Eu apontei na direção de Token, visto que ele continuava em nosso campo de visão, alheio à nossa conversa a seu respeito.

-Ele é veterinário, na verdade. Mas fez muito, não só por nós. Ele aprende rápido. - Eu não sabia porque exatamente estava tentando convencer aquele homem de que Token era uma adesão valiosa, mas pareceu a coisa certa a se fazer. Estar em um lugar novo me fazia sentir que era mais importante do que nunca que nos mantivéssemos unidos.

Quando voltei a encontrar os olhos de Standish, ele me encarava muito de perto. Franzi o cenho imediatamente, dando um passo para trás.

-Desculpe. - Ele respondeu, percebendo a inconveniência. - Você… Você é o garoto Broflovski, não é?

Stan estava perto o suficiente para observar a interação, um olhar cauteloso tomando conta de seu rosto, ignorando o que Pip lhe dizia sem perceber. Quando Pip se deu conta, virou a cabeça em nossa direção.

Eu passei a língua pelo lábio superior, hesitante. Não fazia ideia de porque não queria simplesmente confirmar, porque era a verdade, mas até então eu havia me agarrado à certeza de que eu seria outra pessoa fora de South Park. Que as pessoas não veriam mais o filho de Sheila Broflovski ao olhar para mim, porque ela deveria ser irrelevante fora do Colorado. Aparentemente, o raio nacionalista de minha mãe era vasto o bastante para atingir o outro lado do país.

-Te contaram? - Perguntei, confuso.

Ele riu.

-Garoto, ninguém precisa me contar. A sua cara apareceu em todo telejornal do país depois do discurso que sua mãe fez. Mulher de fibra, aquela lá. E mesmo que não tivesse, é só olhar pra você.

Cada palavra que ele dizia era um aperto mais forte no meu estômago, mas eu não queria que ele percebesse. Pressionei os ombros para trás e levantei um pouco o queixo, apertando o maxilar com força.

-Então você nem tinha que perguntar.

O olho de Standish reluziu no escuro como se ele estivesse se divertindo com isso, embora o sorriso em seu rosto fosse muito vago.

-Ouça. Nós temos que fazer algo com o seu cabelo.

Isso me pegou totalmente despreparado. Agora, Stan estava ao meu lado novamente.

-O quê?

-É muito perigoso você ir pra rua assim. Mesmo que você cubra, na correria, nunca se sabe o que pode acontecer. Talvez te reconheçam de qualquer forma, mas sair com um poodle vermelho na cabeça vai te dar problema. Pros outros também.

Em outras circunstâncias, talvez isso tivesse me ofendido profundamente. Mas eu estava mais intrigado do que qualquer outra coisa. A comunicação com os outros estados era precária, o acesso à mídia também, não era exatamente fácil descobrir o que estava acontecendo no resto do país. Eu não imaginava que o alcance do discurso de ódio da minha mãe fosse tão poderoso.

-As pessoas sabem quem ela é aqui? - Perguntei.

-Em que planeta você vive? - Standish disse com um sorriso que revelava que ele tinha um dente de ouro. Esse cara realmente tinha como objetivo de vida se parecer com um pirata. Ele cruzou os braços, me estudando dos pés à cabeça. - Sheila Broflovski é um nome bem alto na nossa lista de pessoas a serem enforcadas. Você não está mais no holofote principal como estaria em casa, mas mesmo assim. Nós ouvimos boatos de que você havia se juntado à resistência, foi um dos motivos para aceitarmos receber o núcleo de South Park aqui. Tem muita gente do seu lado, Kyle.

-Isso é loucura. - Stan disse em um tom preocupado, passando as duas mãos pelas entradas do cabelo.

-Não tô dizendo que você é um Messias contemporâneo ou merda do tipo. De qualquer forma, você é um nome. Isso é bom e ruim, sabe? Por isso a gente tem que dar um jeito nesse cabelo. Você já pensou em ser loiro? Ficaria bonitinho.

Eu pisquei algumas vezes, sem fazer ideia de como responder a essa pergunta casual. Levei minha mão à nuca e tentei aquecê-la, estremecendo de frio com uma brisa fraca que soprou sobre nós. De fato, o frio das montanhas era muito diferente do frio do litoral. Por fim, eu encolhi os ombros, balançando a cabeça sem dizer que sim ou que não.

-Sei lá, eu não faço ideia.

Pela primeira vez durante toda essa conversa, eu vi um semblante em Standish que não era nada além de paternal; ele se calou por um segundo e, talvez, tenha se dado conta de que tudo isso era um pouco demais. Nós estávamos há vinte horas sem dormir, quarenta horas sem dormir direito, sem comer direito, com nosso grupo reduzido pela metade e nossos amigos (meu coração quase parou quando o rosto de Kenny voltou à minha mente) desaparecidos. Viemos de uma fuga cega pela floresta, uma semi-hipotermia, uma caminhada de um dia inteiro, uma viagem de quase dez horas em uma máquina assassina que voa. Mesmo que Standish não soubesse de todos os detalhes, seu olho revelava que de uma coisa, pelo menos, ele tinha certeza: não era hora de discutir determinados assuntos.

Ele repousou uma mão quente em meu ombro.

-Não se preocupe. Vocês devem estar exaustos, vão descansar. Tomem um banho, logo vão ter comida quente na mesa e vocês podem dormir o dia inteiro. - Ele voltou seu olhar a Stan, balançando a cabeça como forma de assegurá-lo que não havia com o que se preocupar. O que era uma mentira deslavada. - Vocês vão precisar de toda a força que tiverem daqui pra frente.

 

“Daqui pra frente”. Na época em que eu ouvi essas palavras, mal conhecendo Standish e sem nunca ter pisado em um confronto nas ruas de Nova York, a escolha do termo me incomodou profundamente. Eu acreditava, de verdade, que nós já havíamos passado por todo tipo de teste de força necessário e já conhecíamos o território em que estávamos pisando. Céus, eu não poderia estar mais errado.

 

Enfim, com uma despedida breve do nosso novo companheiro, fomos encontrar um apartamento. Ficamos no 505, ao lado de Wendy, Bebe e Annie no 504. Eu não sabia exatamente o que esperar quando Stan abriu a porta de madeira e tateou a parede para acender a luz do teto. Nos deparamos com um quarto amplo, o chão de carpete e um papel de parede azul-claro listrado que poderia ter sido muito mais feio do que era realmente. Era muito maior do que eu esperava. No centro do quarto, com a cabeceira encostada na parede, havia uma cama de casal com uma colcha marrom xadrez. A textura era horrível, eu podia perceber apenas de olhar, e ainda havia mais um cobertor de lã creme dobrado sobre a cama. Havia duas mesas de cabeceira, mas apenas uma tinha um abajur branco em cima. A outra, um telefone que provavelmente estava desconectado. Havia também uma pequena área de azulejos com um balcão, uma pia de alumínio, um frigobar e um micro-ondas. Uma pequena mesa de plástico com duas cadeiras, uma cômoda com uma pequena televisão em cima que provavelmente também não funcionava, e por fim, um sofá de estampa amarela florida que combinava com as cortinas.

Eu mal podia acreditar. Uma cama de verdade. Eu pensei que fosse chorar de alívio quando me dei conta de que nós havíamos sobrevivido e estávamos ali de verdade, prontos para começar uma coisa nova, transformar aquele muquifo em nossa casa.

Stan despencou no sofá primeiro, arrancando as botas dos pés sem desamarrá-las, mal prestando atenção no que fazia. Quando estava só de meia, ele firmou os pés afastados no chão, apoiou os cotovelos nas coxas e abaixou a cabeça, escondendo o rosto nas palmas. Eu fechei a porta antes de encará-lo durante alguns segundos, sem me mover, mas ele não fez menção de erguer o rosto.

-Stan? - Chamei baixinho, desencostando-me da porta, esperando um pouco antes de andar até ele, na ausência de uma reação.

Ao sentir minha presença ao seu lado, ele levantou a cabeça com uma expressão resignada, balançando-a, levando a mão ao meu joelho quando me sentei ao seu lado.

-Tá tudo bem. - Assegurou. - É só… É muita coisa.

E era. Era muita coisa de uma vez só. Eu tinha certeza de que nós cairíamos direto na cama ao entrar no quarto, mas nenhum de nós fez menção de levantar. A mão dele escorregou pela minha coxa, preguiçosa, enquanto ele bocejava e apoiava a cabeça no encosto do sofá. Passamos alguns instantes assim, olhando para o chão, teto ou parede, na companhia silenciosa um do outro. Ele afastou a mão de mim para coçar o próprio nariz e não me tocou novamente, mas por algum motivo, isso já não me causava mais tanta insegurança. Eu olhei para ele.

-Você acha que o Kenny vai voltar?

Os lábios dele estremeceram em resposta, mesmo que ele não tenha me olhado de volta, os olhos firmes no teto do quarto. Sua língua passou por cima dos dentes enquanto ele pensava a respeito, mas tudo em seu rosto dizia que ele estava exausto demais para saber qual era a coisa certa a ser dita.

-Eu acho que vai. - Ele respondeu, enfim, endireitando as costas para tirar o casaco grosso. Estava gostoso dentro do quarto, protegido do frio agressivo lá de fora.

-Stan. - Chamei baixinho.

Seus olhos azuis rolaram na minha direção antes que ele virasse seu rosto de menino para me encarar, o corte em sua bochecha protegido por um esparadrapo manchado de sangue velho. Encarando aquele rosto, um sorriso espontâneo – ainda que fraco – nasceu nos meus olhos. Eu escorreguei o corpo pelo sofá e me apoiei no tronco dele, deitando a cabeça em seu ombro. Ele me recebeu com o braço, envolvendo meu corpo com ele, puxando-me para mais perto.

-Hm? - Ele questionou com um gemido, os lábios enterrados nos meus cabelos, pressionados sobre o meu couro cabeludo.

-Você ainda vai me amar se eu for loiro?

Ele riu fraco. Foi aquele tipo de riso que não passa do ar escapando pelos lábios, mas ainda assim, foi gostoso de ouvir.

-Será? - Foi a resposta.

Mas logo em seguida, seus lábios se arrastaram até minha testa e ele plantou um beijo demorado ali, inalando o cheiro do meu cabelo em seguida. Não podia ser um cheiro bom, não depois de tudo que nós passamos, mas não importava. Ele continuou roçando o nariz pelo topo da minha cabeça, sussurrando:

-Eu vou te amar mesmo que você não tenha mais cabeça.

Eu gargalhei.



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