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História Liberté - O Ébrio


Escrita por: caulaty

Capítulo 33 - O Ébrio


05 de janeiro de 3645

 

Eu estava sonhando.

Sonhei que eu estava dentro de uma miniatura de barco, do tipo que meu pai construía dentro de garrafas. Eu podia ver todos os detalhes da construção, o leme e as velas, as pequenas nuances entalhadas na madeira, como se aquele barco fosse capaz de navegar. Mas, ao olhar em volta, eu via o vidro grosso da garrafa me envolvendo, deformando o mundo gigante que havia em volta. De repente, um assobio invadiu meu sonho. Eu olhava para todos os lados, e podia identificar a mesa do quarto de Ike, o quarto de cima, não o do porão. Ike não estava lá. O assobio veio de novo. Eu chamei pelo meu irmão, mas nada aconteceu. E então, o assobio ficou mais forte.

-Kyle? - Ouvi uma voz distante.

O barco desapareceu, a garrafa desapareceu, tudo… Tudo em volta de mim começou a se dissolver. Era a consciência que retomava o controle, meu corpo queria acordar. Eu apertei meus olhos, meus olhos de verdade, não aqueles do sonho.

-Kyle. - Stan repetiu.

Ele me abraçava por trás debaixo dos cobertores que nos aqueciam. O mundo debaixo daqueles cobertores parecia o mais seguro, e nós nunca gostávamos de ter que acordar. Mas o assobio continuava a invadir meus ouvidos, e não era Stan que o produzia. Eu me espreguicei, gemendo baixo, liberando o ar dos pulmões ao abrir os olhos.

-Você tá ouvindo isso? - Ele perguntou com uma voz preguiçosa, sem me soltar ou fazer qualquer menção de levantar da cama. Ele nem estava de olhos abertos ainda.

-Acho que tem alguém chamando. - Resmunguei, esfregando os olhos para tentar abri-los propriamente. Bocejei enquanto me desenroscava do corpo quente de Stan, uma das coisas mais difíceis que já tive que fazer em vida, e arrastei meus pés até a janela para abri-la com certa dificuldade. - Mas que porra.

O assobio ficou mais forte.

Quando a paisagem da janela se revelou diante dos meus olhos, todo sono desapareceu. Meus olhos se arregalaram, e eu os esfreguei novamente para ter certeza de que não estava sonhando ainda. Porque o rosto sorridente de Kenny McCormick assobiando bem na nossa janela parecia surreal demais para acreditar. E ele trazia boas notícias de uma terra distante, boas notícias sobre meu irmão que chegou são e salvo em casa. Mas antes de nos abraçarmos, antes de ele me contar todas essas coisas, Kenny apenas sorriu e disse:

-Eu já quebrei uma promessa?

-Stan! - Eu gritei. - Acorda, caralho!

 

 

Nova York era incrível visualmente. Eu ainda não tinha tido a chance de enxergar a cidade em si, de entender que eu estava em um lugar que não era South Park. Eu nunca tinha saído do Colorado antes, nunca havia me deparado com uma cidade tão grande que pudesse te comer vivo. A miséria atingia Nova York de uma forma diferente. A ilha da antiga Manhattan era um antro de elite onde pessoas como nós nem tinham permissão de entrar.

A onda de violência já fazia parte daquela sociedade novaiorquina, as notícias viviam reportando avisos sobre a animosidade da população fora da ilha, fazendo alegações sobre como a baixa sociedade não sabia se portar, que eram todos selvagens cujo único objetivo era aterrorizar a população de bem. Às margens de Nova York vivia a população trabalhadora e omissa, esmagada tanto pelas ações violentas de quem não tem comida na mesa quanto pela exploração da elite. Esses eram os que não queriam lutar, e eram maioria. Quanto aos outros, não havia escolha. Os atos de rebeldia não era exclusividade dos Monarcas, é claro, a própria população civil faminta reagia com punhos cerrados, mas sem recurso, sem armas, sem preparo. Era difícil dizer como um povo sem alimento podia ter tanta força.

Por conta disso, havia bairros que reagiam furiosamente contra a patrulha de sapadores, isolando-se da mão pesada do governo, criando terras onde praticamente não havia lei. Era por esses lugares que nós andávamos, onde os sapadores quase temiam entrar. Aparentemente, era fácil ser um rato em uma cidade tão grande. Era ali, entre os errantes e a escória, que nós nos sentíamos e estávamos mais seguros. Mesmo assim, essas fronteiras são ideológicas, não físicas. Existia todo tipo de mentalidade em todo tipo de lugar.

Os góticos nos levaram a um lugar muito pequeno, espremido entre uma lavanderia e um restaurante indiano, ambos funcionando até tarde da noite. As luzes de Nova York eram intoxicantes. A rua estreita estava cheia de todo tipo de gente, mas o que reinava naquele lugar era um estilo gótico-punk-underground-qualquer-porra-do-gênero. Eu esbarrei em um cara que parecia ter cinco metros, com a cabeça raspada à exceção de um tufo longo e verde que caía por um lado da cabeça. Ele não devia ter mais de vinte e oito anos, mas seu rosto tinha cinquenta.

-Desculpa. - Eu disse, com as minhas boas maneiras de menino de cidade pequena.

O cara virou para mim e me encarou sem expressão, abaixando um pouco como se quisesse chegar mais perto de mim. O meu estômago revirou do avesso com aquele olhar estático. Henrietta segurou com força no meu braço, encarando o estranho de volta antes de me puxar e sussurrar no meu ouvido:

-Não fala com ninguém que você não conhece.

Ela não precisava me falar duas vezes.

A rua tinha vários bares com pouco lugar pra sentar, o que resultava no acúmulo de gente em pé no meio da rua. Parecia que toda a juventude novaiorquina saía em horários muito próximos do toque de recolher como um pequeno ato de rebeldia. Eu começava a entender, olhando ao redor, que continuar vivendo da maneira que se quer viver também é um ato de resistência. Aqueles garotos que estávamos conhecendo ainda pareciam muito mais entregues à luta, pois já faziam aquilo há muito mais tempo e já haviam pago preços terríveis, mas mesmo assim, eles não pareciam dispostos a parar de viver. Talvez tivesse noção de que seu tempo seria curto na terra. Não pensávamos em morte naquela noite.

Nós entramos no pequeno bar, Michael e Pete caminhando na frente. Quando digo “nós”, refiro-me aos quatro góticos (era assim que Standish se referia a eles), Stan e eu, Kenny e Cartman. Gregory e Christophe também estavam conosco, mas não entraram conosco porque Christophe queria terminar o cigarro e eles conversavam alguma coisa que parecia particular. Eu virei para olhar por cima do ombro e fitei o rosto preocupado de Gregory durante alguns segundos, a pequena ruga entre suas sobrancelhas que o dava uma aparência tão paternal. Ele tinha que olhar para cima para falar com Christophe. Desviei a atenção deles para dar uma olhada em torno daquele bar abafado, cheio de gente. As luzes do lugar eram muito azuis, mas havia um pequeno lustre avermelhado no centro, cortinas de veludo vermelho penduradas na parede, sem janelas. O piso parecia um grande tabuleiro de xadrez. As mesas eram de mármore preto. Tocava uma música alta que eu não conhecia, bastante audível, mesmo com todos os sons do estabelecimento cheio.

Michael cumprimentou o homem no balcão, um senhor de cabelos grisalhos muito longos, forte como um cavalo, os braços cheios de tatuagem, usando delineador. Expressão pessoal através da aparência também parecia ser um conceito forte naquele lugar.

-O que vocês querem beber? - Michael virou para nos perguntas, os dois braços apoiados sobre o balcão, um pé cruzado sobre o outro, a calça de couro que ele usava abraçando suas pernas com força.

-Qualquer coisa que me faça esquecer que eu estou viva, por favor. - Henrietta respondeu com a voz apática de sempre, com a qual eu já estava começando a me acostumar, fazendo o homem atrás do balcão soltar uma gargalhada. Ela fez sinal para que nós a seguíssemos por uma porta de arco que eu não havia notado antes, o que abria espaço para uma outra área mais ampla dentro do bar.

As paredes eram de um roxo escuro e aveludado, as únicas fontes de iluminação eram luzes de parede e havia espelhos cercando o lugar. Ali sim, havia mesas vagas e espaço suficiente para transitar. Havia pequenas janelas e uma porta que dava para algum beco nos fundos, também cheio de gente. As janelas pareciam vitrais de uma igreja.

-Que bar de viado. - Cartman comentou, e a única pessoa que riu foi Kenny, aquele tipo de risada que diz “eu estava pensando exatamente a mesma coisa, mas não diria em voz alta”. Os dois tinham um humor mais parecido do que Kenny gostava de admitir.

Henrietta não reagiu ao comentário dos dois. Quando nós nos sentamos, ela largou os antebraços na mesa de madeira escura e me olhou como se estivesse pensando em alguma coisa, enquanto eu me sentava à sua frente em um banco de estofado bordô. Eu franzi a testa.

-Que foi? - Perguntei.

-Você vai mesmo descolorir o cabelo? - Ela respondeu com a pergunta, o que me fez presumir que Standish tivesse comentado com ela sobre a sua sugestão, mas o olhar de Henrietta indicava que ela achava a ideia um tanto quanto ridícula. Eu era incapaz de entender porque aquela gente gostava tanto de falar sobre o meu cabelo. Conforme ela movia o rosto, seus brincos grandes faziam barulho.

-Kyle, homens adultos não podem ser loiros. - Cartman se intrometeu antes que eu pudesse responder. - Olha só pro Kenny.

-Vai se foder, seu cuzão. - Kenny complementou sem raiva alguma, sem direcionar os olhos ao Cartman, puxando o menu disposto à mesa para olhar as bebidas. Ele apenas respondia, como todos nós, por força de hábito.

-A única coisa pior do que o seu cabelo do jeito que ele já é seria você descolorir essa merda. Vai ficar igualzinho a um prato de miojo. É isso mesmo que você quer?

-Ele tem razão. - Henrietta disse. - Não faz isso, cara.

-Não é exatamente como se eu quisesse, mas o Standish disse que eu sou muito fácil de reconhecer desse jeito. - Respondi, tentando não parecer tão frustrado quanto eu realmente estava com relação a esse assunto. - E isso é verdade, eu acho.

Michael e Pete se aproximavam da mesa com uma garrafa de tequila e uma bandeja cheia de pequenos copinhos de cristal com sal na borda e limões. Puta merda, há quanto tempo eu não bebia tequila. Os dois começaram a distribuir um copo para cada pessoa, e nesse meio tempo, Christophe e Gregory vinham logo atrás dos dois, ainda envolvidos por uma conversa que interromperam ao chegar perto da mesa.

-O que é verdade? - Michael perguntou, começando a servir os shots de tequila enquanto os outros três se sentavam.

-O Kyle vai descolorir o cabelo. - Henrietta respondeu.

Naquele momento, eu entendi o quanto eu precisava de álcool no meu organismo. Gregory ergueu o tronco para frente e me encarou como se eu tivesse acabado de dizer que daria um tiro na minha própria mãe. Na verdade, talvez isso o chocasse bem menos. Christophe apenas franziu as sobrancelhas grossas, sem fazer contato visual comigo, provavelmente tentando imaginar como seria isso. Ele observava a tequila escorrendo até encher os copos, mas Michael parou de repente e me encarou com a boca levemente aberta, apesar de sua expressão não se alterar muito. Ele parecia incapaz de expressar sentimentos através do rosto.

-Isso ainda não foi decidido. - Eu respondi em defensiva. - É ideia do amigo de vocês.

-Quem te diria pra fazer uma coisa dessas?! - Michael perguntou, parecendo pessoalmente ofendido, terminando de servir os copos.

-O Standish. - Stan respondeu, um sorrisinho brotando em seus lábios como se ele achasse toda a movimentação engraçada, e isso me fez querer dar uma cotovelada no braço dele. Eu me contive.

-Kyle, você vai ficar igual a um poodle. - Gregory disse terrivelmente sério, como se aquilo devesse soar como um conselho de amigo. Christophe e Cartman soltaram uma gargalhada que ecoou pelas paredes do lugar e continuou circulando dentro dos meus ouvidos. Eu nem consegui mandar eles tomarem no cu, porque era verdade. As poucas vezes que Christophe ria, era de escárnio. Ele parou muito antes que Cartman, que continuou socando a mesa em empolgação.

-Tá bom, Cartman, já chega. - Stan disse, embora ele também quisesse sorrir um pouco, mas era gentil demais pra isso. - É só uma ideia.

Sem esperar pelos outros, eu estiquei o braço para a bandeja posta no centro da mesa para espalhar o sal nas costas da minha mão, lambi e entornei o shot, chupando a fatia de limão com força em seguida, apertando os olhos. A ardência era horrível, mas era exatamente disso que eu precisava. Franzi um pouco o nariz, sacudindo a cabeça instintivamente, grunhindo baixo. Mas quando o gosto diminuiu em minha boca, eu já me senti pelo menos um pouquinho melhor.

-Por que exatamente o Standish quer foder a sua vida? - Pete perguntou, erguendo uma sobrancelha.

-Ele acha que eu já me pareço o suficiente com a minha mãe. - Respondi com certa amargura na língua.

-Por que você não raspa? - Christophe perguntou. Ele estava sentado no nosso banco, Stan no meio de nós dois. Inclinou-se um pouco para frente, buscando enxergar meu rosto enquanto falava. - Eu tenho máquina.

As reações foram muito distintas agora. Cartman continuava entretido demais pela ideia do meu cabelo parecer um poodle, não dando muita atenção a mais nada, rindo sozinho. Henrietta abriu um sorriso com a boca fechada, alisando o queixo, comentando em voz baixa:

-Isso vai ficar do caralho.

Enquanto Michael parecia ainda mais ofendido por essa ideia, como se nós estivéssemos debatendo a ideia de assassinar o cachorro dele ou coisa parecida.

-Se você fizer isso, - ele disse. - eu vou recolher os seus cachos do chão e fazer uma peruca com eles.

Eu não achei que ele estivesse brincando.

Enquanto Henrietta fazia algum comentário sobre Michael ser uma aberração quando falava esse tipo de coisa, eu voltei minha atenção ao Stan, sorrindo fraco quando os olhos dele encontraram os meus. Toquei meu ombro no dele de leve, inclinando-me de lado para chegar mais perto do seu ouvido.

-O que você acha? - Perguntei.

-Não sei, o cabelo é seu. - Ele respondeu encolhendo os ombros, lambendo o sal da borda do copo e entornando a bebida direto.

-Você vai me amar se eu for careca? - Perguntei com um sorriso de provocação enquanto ele chupava o limão. Ao terminar, ele virou o rosto para mim e retribuiu o sorriso com uma expressão mais suave.

-Eu vou aprender a viver com isso.

Eu beijei a bochecha dele, pressionando a ponta do meu nariz contra a sua pele até que ele soltasse uma risada fraca, cobrindo a parte de trás da minha cabeça com sua mão. Foi então que Christophe começou a beber.


 

Para pessoas que se diziam cínicas e deprimidas, os góticos eram surpreendentemente divertidos depois que ficavam bêbados. Ou talvez eles tenham ficado mais divertidos depois que eu comecei a ficar bêbado e passei a entender melhor o humor sádico deles. Eu tive a chance de conversar melhor com Pete, que pouco falava de sua vida antes de se unir aos monarcas, mas não parecia tímido e era bastante sociável se você conversasse diretamente com ele. Michael era uma das pessoas mais engraçadas que eu já conhecera, mesmo que ele nunca tentasse fazer ninguém rir. Era aquele tipo de humor agressivo e pessimista de quem apenas sempre sabe o que dizer e está pouco se fodendo para o resto do mundo. Ele e Henrietta discutiam muito, com aquela mesma intimidade garantida com que eu brigava com Cartman. Michael, aliás, também era uma companhia excelente para encher a cara. Mas eu jamais diria isso a ele.

Firkle, ao contrário, bebia bastante e quase não falava com ninguém. Mas não havia nada em sua postura ou expressão que delatasse desconforto. Eu começava a entender que esse era apenas o jeito dele.

Nós estávamos em meio a uma história de Gregory na Inglaterra, sobre um garoto com quem ele dividiu apartamento, que havia roubado um abajur dele. Eu demorei pra entender que “roubar um abajur” significava literalmente roubar um abajur. Uma porra de um abajur, cara, não valia nem cinco libras, ele apenas levou para o quarto dele sem pedir permissão. Eu achei que literalmente me mijaria nas calças de tanto rir com ele contando a história, porque Gregory conseguia fazer uma coisa tão simples soar como algo tão, mas tão dramático. O sotaque britânico dele e o tom arrogante de quem achava aquilo a coisa mais absurda que já fizeram com ele… Cartman deu uma porrada tão forte na mesa, soltando uma gargalhada que ecoava pelo espaço, fazendo todos os copos vibrarem quando Gregory disse:

-Eu juro por Deus, eu liguei pro Toupeira aquela noite e pedi pra ele me ajudar a comprar cinquenta abajures e socar o quarto daquele merdinha de abajur, mas eu ia colar abajur até no teto. Era meu sonho que ele abrisse o armário e caísse uma enxurrada de abajur em cima dele. Mas esse lixo não quis me ajudar. - Aquilo era especialmente hilário porque ele estava falando seríssimo.

-Por que não?! - Kenny perguntou, horrorizado.

Christophe, em vez de responder, revirou os olhos de forma tão exagerada, com uma expressão tão forte de desdém, que foi impossível não rir mais. Especialmente porque ele nunca fazia esse tipo de cara, tirando sarro tão abertamente de alguém, mas ainda de forma fraternal, aquela implicação que só se tem com os irmãos ou amigos íntimos. Christophe e Gregory tinham uma linguagem particular que apenas eles eram capazes de compreender.

-Porque ele é um imbecil. - Gregory disse de forma maliciosa, um sorriso infantil, virando mais um shot de tequila, batendo com o copo na mesa em seguida de forma muito mais grosseira do que de costume, esquecendo-se de chupar o limão. Porra, eu nunca o tinha visto tão bêbado.

-Gregory. - Christophe disse, impaciente, cuspindo ao falar. -Larga a merda do osso, caralho, faz cinco anos. Foda-se a porra do seu abajur.

Ele conseguia falar uma quantidade extraordinária de palavrões na mesma frase quando ficava bêbado.

-A questão não é o abajur, Christophe. - Gregory disse o nome dele como se fosse um xingamento, e foi a porra mais engraçada do mundo, porque ele jamais usava o nome verdadeiro do Toupeira. Ele imitou um sotaque francês ridículo que foi a cereja no topo do bolo.

-Eles são um casal? - Henrietta me perguntou baixinho, passando os dedos rechonchudos pelo queixo. A pergunta me fez sorrir. Stan também riu ao meu lado.

-Quase isso. - Ele respondeu por mim.

Stan tinha uma mão em torno da minha nuca, os dedos trabalhando algo entre carinho e massagem, subindo a palma para brincar com meus cachos de vez em quando. Eu deitei a cabeça preguiçosamente em seu ombro, deixando minhas pálpebras pesarem até que tudo ficasse escuro, a embriaguez deixando tudo mais macio. Pela primeira vez em muito tempo, eu me sentia bem de verdade. Intoxicado pela leveza das risadas, pelas conversas que meu cérebro bloqueou, como se as palavras não fizessem sentido algum.

De repente, veio o estouro.

Eu já começava a entender naquela época que os momentos felizes seriam sempre fugazes. Sempre. E isso me impulsionava a vivê-los com toda a intensidade possível.

O estouro não foi como o da bomba, não foi como os rojões dos sapadores. Era um som que eu jamais ouvira antes. Parecia vir do céu, quase como fogos de artifício, só que muito mais alto, muito mais estremecedor. Como se aquilo tivesse acontecido a diversos quilômetros de distância, e mesmo assim, fosse tão audível que as paredes chegavam a tremer de verdade. Assim que o som veio, eu abri os olhos e ergui a cabeça. Ninguém no bar parecia em desespero, mas o ar mudou completamente de uma hora para a outra. Michael, em meu campo de visão, ficou ainda mais pálido do que já era.

-Que merda foi essa?! - Cartman perguntou.

Pete se virou no banco, os olhos fixos na televisão sem som presa na parede atrás dele, apoiando um braço sobre o encosto. Henrietta segurava o copo de vidro com tanta força que poderia tê-lo estourado, mas sua expressão parecia perfeitamente calma. Gregory esfregou o rosto como se tivesse uma noção concreta do que aquilo significava, parecendo muito mais sóbrio de uma hora para a outra. Meus olhos vagaram pelos rostos da mesa até a televisão. Stan fez a mesma coisa.

-Caralho. - Michael soltou, apoiando os cotovelos no tampo da mesa para correr os dedos pelas entradas do cabelo crespo. - Algum dos nossos tinha missão hoje?

-Não que eu saiba. - Henrietta respondeu, esperando algo aparecer na TV que eu não fazia ideia do que era, mas a expectativa me dominava do mesmo jeito.

Na tela, rolava uma propaganda de perfume francês com seis marinheiros em preto e branco, mas em poucos segundos, a imagem foi substituída pela tela de um pronunciamento extraordinário. A foto de um garoto surgiu na televisão, mas eu nunca o tinha visto antes. Ele tinha um rosto cheio de piercings, nos lábios, sobrancelhas, nariz, orelhas, onde coubesse. O cabelo era bem preto, com uma mecha verde por baixo, olhos fundos e rosto comprido. A foto parecia do tipo que se colocava em documentos. Havia o nome “Michael Makowski” escrito embaixo da imagem. A tensão no ar podia ser cortada com uma faca. Michael, o nosso Michael, abaixou a cabeça e cobriu o rosto com as mãos, respirando fundo.

-Merda. - Christophe murmurou, segurando o próprio copo, levantando-se do banco. Não foi a lugar nenhum, continuou ali de pé, uma mão apoiada na mesa com círculos úmidos na superfície. Ele bebia algo que não era tequila, o copo cheio até a metade.

-Alguém vai explicar o que tá rolando? - Cartman perguntou, impaciente.

-É um sinal. - Gregory disse.

Eu franzi a testa, mas não perguntei nada. Depois de alguns segundos, Henrietta tomou fôlego e começou a encher seu copo de shot novamente.

-Toda vez que os militares pegam alguém, eles dão o aviso. E soltam a identificação no noticiário. É um jeito de assustar a gente.

E pelo jeito, funcionava.

-Vocês… - Stan começou, mas parou de falar por um segundo, seus olhos presos em Pete. De todos os rostos pálidos, ele era o que mais parecia perturbado com a imagem congelada do garoto na tela. - Vocês conheciam ele?

-Merda, Mike. - Christophe repetiu, cobriu os olhos com a mão que antes estava sobre a mesa, entornando um gole demorado do líquido amarelo em seu copo.

Michael assentiu com a cabeça. Esses garotos realmente não eram muito bons em demonstrar expressões faciais, mas havia algo nos olhos deles que delatava um buraco dentro do peito, por mais que eles tivessem sido treinados a esconder.

-A gente não se via há um tempo. Ele era da nossa base no começo, mas foi transferido pra uma unidade no Bronx. - Ele esticou as mãos para girar a garrafa de tequila quase vazia algumas vezes, encarando o rótulo, não olhando os olhos de ninguém. - Agora é que a gente nunca mais se vê.

-Mas… Talvez não. - Kenny disse, hesitante, como se quisesse perguntar alguma coisa. - Quer dizer, você voltou da prisão. - Ele direcionou o olhar a Henrietta. - Quando alguém é pego, fazem o possível pra trazê-los de volta, né?

Pete soltou uma risada amarga, como se a inocência da pergunta de Kenny fosse ofensiva para ele. Mas não respondeu nada. Ninguém parecia muito interessado em falar no assunto, até que uma voz fina respondeu:

-Cinco.

Os rostos todos se voltaram para a figura pequena de Firkle. Ele nos encarou de volta como se não tivesse dito nada, indiferente, segurando o copo com as duas mãos. Sua boca de batom preto era uma linha reta. Ele parecia tão sério para uma pessoa tão jovem.

-O quê? - Stan perguntou, estreitando os olhos.

-Dezessete, essa era a nossa exigência. Que eles soltassem dezessete dos nossos. - Firkle explicou sem alterar a voz. - Cinco foi o que nós conseguimos. - E com isso, ele bebeu do copo e se calou novamente.

-Puta merda. - Eu soltei, cobrindo a testa com a mão e fechando os olhos por um segundo, sentindo dificuldade de respirar. Minha cabeça começava a doer.

-A maioria deles foi mandada pro Texas. - Pete disse. - Você… Você não volta do Texas. Ninguém nunca volta do Texas.

Gregory estreitou as duas sobrancelhas terrivelmente claras, erguendo um pouco o queixo, um brilho embriagado em seus olhos que não condizia com a sobriedade de toda a sua expressão.

-Isso são só rumores. - Ele disse em uma voz firme.

-Tá bom, cara. - Pete respondeu, levantando-se, passando por cima das pernas de Michael sem pedir licença para sair do banco. - Acredita no que você quiser.

Sem que Pete precisasse dizer nada, Christophe começou a tatear os bolsos da calça para encontrar o maço de cigarros, puxando um com os dedos para entregar a ele. Pete o tomou sem agradecer, afastando-se três passos da mesa.

-Foda-se. - Ele disse novamente, em um tom que me lembrou muito Craig Tucker. Christophe encontrou o isqueiro no bolso e o lançou para que Pete o pegasse no ar. - Ele já era. É o que é.

Com isso, Pete saiu pela porta dos fundos para fumar lá fora. Uma parte de sua cabeça vermelha ainda era visível através do vitral da janela. Durante alguns instantes, ninguém disse nada. A imagem de Mike Mokowski desapareceu da televisão, dando lugar à programação normal; uma propaganda de margarina em cores vibrantes e perfeitamente felizes. Eu quase soltei um riso baixo, mas talvez fosse culpa do álcool.

-O que deu nele? - Cartman foi o primeiro a quebrar o silêncio. - Ele e o cara faziam amor com o bumbum?

-Cala a boca, Cartman. - Kenny e Stan falaram quase que simultaneamente.

-Bom. - Michael disse, soltando a garrafa de tequila, levantando-se também. - Vamos dançar.

Kenny soltou uma gargalhada como se ele estivesse brincando, mas a verdade é que Michael se afastou da mesa para chegar mais perto da caixa de som que produzia uma música arrastada, não exatamente lenta, mas de tom muito grave, que eu jamais teria imaginado como algo dançante. Apesar disso, a batida era forte. Henrietta virou mais um shot antes de segui-lo, segurando no braço de Christophe para puxá-lo junto com ela, mas ele recuou com algo muito semelhante a um riso.

-Eu não danço. - Ele disse a ela. - Você sabe disso.

-Você é um cuzão. - Ela respondeu já balançando o corpo da forma mais esquisita que eu já vi, mas dentro de um senso de ritmo muito particular que funcionava com aquela música. Era tudo muito estranho e, com o sem álcool, também era maravilhoso. Porque era assim que eles sobreviviam às coisas. Eles nunca se lamentavam. Nunca sofriam pelo que não podiam mudar, não mais do que o suficiente. Ela nos chamava com os braços, andando para trás, sem parar de dançar.

Eu não sabia se era o álcool, se era a eminência da morte que nos cercava a todo momento, se era o fato de que nós estávamos tão distantes dos anos quase despreocupados da adolescência, mas aquela noite, nós dançamos. E bebemos mais. E dançamos mais. E quanto mais bebíamos, mais dançávamos. Foi tão esquisito no começo, Stan e eu passamos a maior parte das primeiras músicas apenas nos abraçando e rindo da situação, aquele riso delicioso que só se dá bêbado, mas Kenny entrou muito rápido no clima de Henrietta e Michael, que não tinham vergonha de coisa nenhuma. O desgraçado do Kenny tinha um senso de ritmo tão forte que poderia dançar qualquer coisa, funcionava pra ele. Era um tipo lento de dança, individual demais, chapada demais. As luzes escuras daquele lugar também ajudavam. Às vezes, parecia que elas mudavam de cor. Talvez fosse eu.

Quando Gregory se juntou a nós, eu e ele quase precisamos sentar no chão de tanto rir. Eu já tinha visto algumas coisas absurdas naquele ponto da minha vida, coisas que eu nunca pensei que veria, mas Gregory dançando foi a mais absurda de todas elas. Ele não tinha senso de ritmo algum e sabia disso, mas não importava, porque ele estava bêbado e vivo aquela noite. Eu sentia isso emanando de todas as pessoas ao meu redor, dos companheiros antigos e novos. Nós ainda estávamos vivos. E amanhã era outro dia.

Stan me segurava firme pela cintura e encostava a testa contra a minha, fechando os olhos, a cabeça pesando como a de um cachorro cansado. Ele balançava quase sem perceber, os pés mal saindo do lugar, seu hálito de álcool e hortelã invadindo minhas narinas. Eu o beijei tanto aquela noite, como nós não tínhamos chance de fazer há tanto tempo, com aquele fervor adolescente tomando conta de todos os nossos sentidos.

Quando olhei em direção à mesa, Cartman estava lá sentado olhando para o chão, bebendo sozinho. Não soube dizer porque exatamente, mas meu peito doeu um pouco, embora ele não parecesse particularmente deprimido. Christophe não estava mais lá com ele.

Eu me desenrosquei de Stan um pouco, sentindo meus pés dormentes, bem na hora em que começou uma música muito mais agitada e Michael e Henrietta perderam a linha, enquanto Kenny segurava o próprio abdômen e soltava uma gargalhada alta sob a música, mas sem parar de dançar. Ele se aproximou de Stan assim que eu me afastei. Olhei por cima do ombro. Kenny, Stan e Gregory estavam próximos, parecendo tão empolgados, pulando no mesmo lugar. Eu sorri, simplesmente porque os amava muito mais do que era capaz de explicar.

Quando voltei a me aproximar da mesa, agora vazia com todos os copos e três garrafas esquecidas ali, Cartman levantou o queixo para mim, erguendo uma sobrancelha.

-Cadê o Christophe? - Perguntei a ele, apoiando as mãos na beirada do tampo.

-Quem? O seu amante francês?

Eu tombei a cabeça para trás e fechei os olhos, cansado demais para lidar com ele no estado em que estava. Cartman bêbado falava uma quantidade exorbitante de merda, mais do que de costume. Ele riu ao perceber que havia conseguido me irritar.

-É, Cartman. O meu amante francês. Cadê ele?

-Sabe. - Ele disse em um tom tão embriagado, dando um soluço enquanto erguia a mão para mim, segurando o copo, esticando o dedo indicador em minha direção. - É só um palpite. Talvez ele tenha cansado de ver você e o seu namorado se esfregando na cara dele.

-Ah, sim, porque você tá muito preocupado com os sentimentos dele.

-Você tá?

Eu o encarei com os olhos estreitos, sentindo o brilho violento nos meus olhos ganhar força, mas eu realmente não queria dar essa satisfação a ele.

-Isso não é da sua conta, Cartman.

-Longe de mim me meter, Kyle. Mas eu tenho uma perguntinha, viu? Será que perguntar ofende? - Quando eu me desencostei da mesa para andar em direção à porta, ele ergueu o volume da voz. - Até quando você vai fazer malabarismo com as bolas dos caras, hein?

Desde que eu tinha três anos de idade, ignorar Eric Cartman sempre foi um problema pra mim. Eu tentava. De verdade, eu tentava, e depois de adulto, eu cheguei a conseguir diversas vezes. Mas naquelas condições, bêbado daquele jeito, vulnerável como eu estava, meus calcanhares giraram de volta para encará-lo contra a minha própria vontade.

-Você não sabe de que merda você tá falando.

-Eu vou te dizer uma coisa, Kyle. - Ele murmurou num tom baixo que me forçou a me aproximar dele para poder escutá-lo. Eu não sabia porque queria escutá-lo para começo de conversa, mas lá estava eu. Aproximei-me com uma expressão desafiadora, mas nós dois estávamos bêbados demais para intimidar alguém. - Se fosse eu…

-Se fosse você o quê, Cartman?!

E ele não disse nada. Seus olhos castanhos bem claros reluziam sob aquela luz azulada, o maxilar apertado e estremecendo, mas ele não terminou o que pretendia dizer. E foi melhor assim, eu não tenho dúvida. De qualquer forma, ele me comunicava o suficiente com o olhar.

-Desde a primeira vez que você viu esse merda, você tá arriscando o seu pescoço por ele. Ele te deixa retardado. - Foi o que ele me respondeu.

Eu apenas balancei a cabeça e me afastei sem olhar para trás, sentindo que aquela pausa foi o suficiente para que eu me desenroscasse desse envolvimento que Cartman sempre tinha sobre mim. Eu empurrei a porta com força desnecessária, apenas para descarregar a raiva acumulada em meus punhos, e ele gargalhou enquanto me assistia.

Do lado de fora, fazia um frio da porra contra a minha pele suada de tanto dançar. Encontrar Christophe não foi uma tarefa muito difícil. Ele estava de pé a alguns metros, próximo ao final da parede de tijolos, terminando um cigarro. Pete não estava com ele, o que me deixou preocupado por um segundo. Ao me aproximar dele, havia um frio na boca do meu estômago porque talvez houvesse alguma verdade nas coisas que Cartman havia dito. Mas quando ele virou o rosto para mim, apesar de não haver sorriso, seus olhos pareceram tão gentis. O medo se dissipou.

-Cansou de agir que nem retardado? - Ele me perguntou quando eu me aproximei, jogando o cigarro no chão e pisando. Sua voz não era agressiva, era muito mais para me fazer rir. E deu certo.

Eu apoiei meu ombro contra a parede gelada e o encarei durante alguns instantes, precisando olhar para cima. Meu rosto estava próximo do ombro dele. Ele tinha um dos pés apoiados na parede, as mãos agora nos bolsos para tentar se aquecer, virado para frente, apenas o rosto voltado para mim. O beco era muito mal iluminado, mas eu podia ver os contornos do seu rosto muito bem.

-Cadê o Pete? - Perguntei, mas não havia interesse em minha voz. Meus olhos continuavam fixos nele.

Christophe sorriu um pouco agora, como se enxergasse através de mim. Mas não me provocou por isso. Não me provocou pelo fato de que eu estava bêbado demais para conter o quanto olhar para ele me fazia bem. Ele desviou o olhar do meu, engolindo o acúmulo de saliva na boca, encolhendo os ombros.

-Sei lá.

-Eu gosto dos seus amigos. - Comentei sem pensar, apoiando a lateral da cabeça na parede e fechando os olhos, o sorriso ainda dançando em meus lábios.

-Eu também.

-Eles são legais. - Murmurei, praticamente falando sozinho. - Eles dançam.

Christophe também estava bêbado o suficiente pra rir, mas rir do seu jeito contido e esquisito, que mostrava só um pouco os dentes e criava umas covinhas engraçadas em seu rosto. Fiz questão de abrir os olhos para vê-lo rir.

Mas então, aconteceu algo. Algo que, olhando em respectiva, não mudou somente o rumo daquela noite, mas também o rumo de todas as coisas que aconteceriam comigo enquanto eu fizesse parte da resistência. Um estranho se aproximou de nós. A postura de Christophe mudou imediatamente, antes mesmo que eu percebesse o estranho. Ele endireitou as costas e tirou as mãos dos bolsos, naquele estado que ele sempre ficava quando precisava estar em alerta. Eu não entendi porquê. Não havia nada de particularmente estranho no homem que se aproximava de nós, pelo contrário. Parecia um cidadão muito mais comum do que todos os outros naquela ruela estreita. Ele não tinha cabelo colorido, não tinha o rosto cheio de piercing, era apenas um rapaz de quase 25 anos bebendo de uma garrafa de vodka barata, de cabelo raspado e olhos muito azuis, bonito até.

-Com licença. - Ele disse, como se fosse pedir pelo isqueiro de Christophe emprestado. Eu virei meu rosto para ele. Meu coração afundou dentro do peito pela maneira com que ele olhou para mim, um sorriso fraco nos lábios, como se estudasse meu rosto.

Christophe deu um passo à frente, sem se colocar entre nós.

-O que você quer? - Ele perguntou.

-Kyle Broflovski? - O homem sussurrou para mim, ignorando a pergunta, e antes que eu tivesse tempo de responder, ele dobrou o braço para pegar impulso e deu com aquela merda daquela garrafa de vodka com toda a força que havia em seu braço, estourando-a bem na minha cara. Tudo ficou escuro. A última coisa que eu pude ouvir antes de cair no chão foi um berro esganiçado. - Morte aos traidores da nação!



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