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História Liberté - A Cicatriz


Escrita por: caulaty

Capítulo 34 - A Cicatriz


Madrugada entre 05 e 06 de janeiro de 3645

 

-Abaixa a arma, Toupeira.

 

A resposta imediata de Christophe veio debaixo: seu punho colidiu direto com o meu queixo, com uma raiva que não havia antes. Ou pelo menos eu nunca percebi. Provavelmente a raiva sempre esteve nele.

O soco bastou para desnortear todos os meus sentidos. Eu cheguei a me agarrar ao braço dele para não cair, perdendo totalmente a função das pernas, esquecendo-me de como ficar de pé. Quando o soltei, levei minha mão ao meu próprio queixo e abaixei o rosto, tomado pela dor que se alastrava por toda a minha cabeça. Meu estômago se contraiu e eu curvei o tronco para baixo, achando por um segundo que iria vomitar.

 

A lembrança vívida do soco que Christophe havia me dado em novembro do ano passado era tudo o que preenchia a minha mente. Aquilo provavelmente havia sido a experiência mais dolorosa da minha vida, fisicamente falando, até então. Eu não sabia o que era dor.

Eu tive a impressão de ouvir uma voz, mas soava tão distante e, ao mesmo tempo, parecia estar ecoando dentro da minha própria cabeça. Os sons se misturavam a zumbidos estranhos, como se meus tímpanos estivessem prestes a explodir. Tentei cobrir minhas próprias orelhas, mas minhas mãos não queriam se mover. Tudo ao meu redor parecia envolto por uma neblina suave de sonho, eu não tinha certeza de se estava consciente ou não. O que eu sabia era que tudo latejava e eu não conseguia ver coisa alguma. Meu coração martelava tanto que poderia ter feito um buraco em meu peito, como se meu corpo tivesse entrado em estado de choque. Respirei fundo para ter certeza de que ainda estava vivo. Deu certo. Foi aí que a dor veio. Eu não sabia dizer aonde, porque absolutamente tudo latejava.

-Abaixa essa porra dessa arma agora!

-Kyle?!

-Calma, rapaz. Calma, ninguém aqui quer encrenca.

-Kyle, você tá me ouvindo?

-Abaixa. A arma. Agora.

-Eu não vou abaixar merda nenhuma enquanto eu não souber que ele tá vivo.

Todas aquelas vozes se misturavam, pessoas falando umas sobre as outras, todas expressando tipos muito semelhantes de sentimentos. Eram vozes assustadas, trêmulas, tensas, esperando algo acontecer. O que exatamente tinha acontecido? Onde é que eu tava?

Tentei abrir os olhos, mas eles ardiam demais, então eu apertei as pálpebras e deixei escapar um grunhido quase sem fôlego. Até meus pulmões doíam ao se encherem de ar. Eu pude sentir uma mão gelada em meu rosto, mas recuei com força porque o toque era insuportável. Eu não enxergava quem era, mas reconhecia a voz de Stan bem próxima de mim.

-Kyle, fala comigo.

Ele parecia tão assustado. Meu cérebro repetia inúmeras vezes: você precisa levantar, tem algo acontecendo, você tem que sair daqui, mas meu corpo não era capaz de responder. Pouco a pouco, eu consegui realizar a impossível tarefa de abrir os meus olhos; não completamente, o bastante para que imagens borradas começassem a se formar à minha frente. Pés. Pareciam pés. O mundo continuava girando ao meu redor. O rosto pálido de Stan apareceu de repente, bem próximo de mim, falando coisas que eu não podia entender. Eu não o enxergava direito também.

Durante os próximos segundos, a única coisa na qual eu pude me concentrar era a dor. A sensação era de que eu não tinha mais rosto. Eu havia perdido a consciência durante alguns segundos, disso eu tinha certeza. A lembrança do que havia acabado de acontecer começava a voltar, a imagem do homem segurando a garrafa de vodka na minha direção, como se ali o tempo tivesse congelado. Agora, tudo acontecia na velocidade da luz. Abri os olhos movido por desespero, mais do que qualquer outra coisa. Uma mão me puxava para cima pelo ombro, que não pertencia a Stan. Quando virei o rosto, enxerguei Cartman debruçado sobre mim.

-Você consegue andar? - Ele perguntou, a mão grosseira ainda segurando meu braço.

Eu rolei de lado no concreto e cuspi sangue no chão. Meu rosto estava quente, o líquido viscoso escorrendo pelo meu pescoço, pingando na calçada. Apoiado em um cotovelo, eu ouvia o som dos caquinhos de vidro que eu esmagava com meu peso. Eles cortariam minha pele se não fosse pelo tecido do casaco.

-Dá pra gente conversar sobre isso?!

-Stan! - Alguém gritou. Eu tinha quase certeza de que era a voz de Christophe. - Ele tá bem?!

-Eu não acho que ele esteja ouvindo.

Eu segurei pulso de Stan. Era tudo o que eu podia fazer para que ele entendesse que eu estava minimamente são. Ele apertou minha mão, depois me segurou pelo outro braço para levantar meu corpo com a ajuda de Cartman. Minhas pernas estavam moles demais para sustentar meu próprio peso.

-Tá tudo bem. - Ele me dizia. É, claro. Estava tudo ótimo.

Agora, de cima, eu tinha uma visão mais clara das coisas. Eu enxergava Christophe com o cano do revólver pressionado bem na têmpora do homem que havia me atacado, ou pelo menos eu achei que fosse o mesmo, Eu reconhecia aquele brilho animalesco nos olhos de Christophe, o mesmo que havia quando ele assassinou um dos sapadores que tentou nos matar, esmagando seu crânio no asfalto. Aquele brilho parecia potencializar tudo que ele era, como se todos os seus demônios estivessem expostos e ele já não respondesse mais por si. O homem tremia feito uma criança, chorando. Eu tinha quase certeza de que ele havia se mijado, literalmente. Seus sapatos estavam molhados. Aquilo não me causou comoção nenhuma.

Porra, como eu tava puto.

Quem repetia para que Christophe abaixasse a arma era Gregory. E ele o fez. Muito lentamente, os olhos reluzindo a ameaça pro desgraçado. E ele não devia ter abaixado. Parte dele sabia disso. Porque nós estávamos expostos demais, porque o filho da puta havia gritado para quem quisesse ouvir que nós éramos traidores, que eu era um traidor, e tudo que veio em seguida aconteceu muito rápido.

Houve um tiro. Stan e Cartman me soltaram. E eu me escorei contra a parede de tijolos, minha mão ensanguentada manchando a superfície, olhando para os lados para entender o que acontecia, mas não houve tempo. Havia muito sangue escorrendo pelo meu rosto, cobrindo meus olhos, eu não conseguia enxergar porra nenhuma direito. Mas eu senti o cheiro familiar de cigarro mesclado ao cheiro da pele de Christophe, eu sabia exatamente quem era quando ele passou um braço por cima dos meus ombros e me cobriu com seu corpo que parecia tão, tão grande. E ele me puxava, sussurrando baixo em meu ouvido:

-Corre.

Não era como se eu tivesse escolha, ele abraçou meu corpo de um jeito e me carregou com ele, sabendo que eu não tinha a mínima ideia de que porra acontecia ao meu redor. Eu queria perguntar sobre Stan, sobre os outros, mas todas essas coisas se passavam pela minha cabeça em segundo plano. Eu corria, sabe-se lá de quê, mas corria. Minhas pernas entendiam que era uma questão de vida ou morte àquele ponto, já estavam acostumadas a esse tipo de caçada. Eu escondia o rosto ensanguentado contra o peito dele e apertava os olhos, ouvindo outros disparos ecoando pelos céus. Ele estava literalmente me protegendo com o corpo dele, e eu odiava isso, mas estava assustado demais para fazer qualquer coisa que não fosse obedecê-lo.

Não sei ao certo durante quanto tempo nós corremos, não pode ter sido mais do que cinco ou dez minutos, e logo, os sons ensurdecedores de disparos ficaram para trás. Eu ainda ouvia passos próximos da gente, mas não sabia dizer se eram dos nossos amigos ou se estavam nos perseguindo. Ouve um momento em que Christophe chegou a cobrir minha orelha com a mão, melando toda a sua palma com o meu sangue. Comecei a sentir pingos de chuva. Eu olhava para o chão, minha visão turva identificava nossos sapatos correndo pelo asfalto, enxergando os pingos da chuva escurecendo a cor sob nossos pés, raios de luz dos postes passando em alta velocidade conforme nós corríamos.

Ele me puxou pela calçada e aliviou o aperto em torno do meu corpo, mas seu braço ainda me ajudava a ficar de pé quando ele diminuiu a velocidade. Eu sentia outras presenças ao nosso redor, também parando aos poucos. Quando ergui a cabeça, enxerguei um caixa eletrônico destruído, antes de qualquer outra coisa. A lua aparecia gigantesca no céu, o brilho verde banhando nossas cabeças, mas um tanto ofuscada pelas luzes neon das placas distribuídas pela rua comercial, quase todas as lojas fechadas. Havia uma drogaria na esquina com as luzes acesas. Eu enxerguei um prédio abandonado. Christophe arrancou o casaco depressa, enrolou-o no próprio punho e socou um vidro que já estava quebrado para que nós tivéssemos espaço suficiente para passar. Henrietta estava bem ao seu lado. Olhei em volta, tentando conter o desespero antes que ele fosse necessário, mas então eu me dei conta do que realmente havia acontecido.

Gregory e Stan carregavam o corpo pesado de Kenny, que tinha o tronco caído para a frente, um braço em torno dos ombros de cada um deles, a camiseta branca ensanguentada na região do peito. Aquela mancha de vermelho vívido só crescia. A única reação que eu tive tempo de esboçar foi sacudir a cabeça negativamente, porque logo em seguida, Christophe já esbravejava:

-Entra, porra!

Ele me puxou primeiro. Meus sentidos continuavam completamente inebriados, eu não apresentava resistência alguma. Minhas pernas estavam moles. Eu não sabia se era pelo impacto da porrada que levei ou se foi a visão do meu melhor amigo de infância naquele estado, mas de uma forma ou de outra, eu obedeci. Talvez o som da garrafa quebrando tivesse afetado os meus ouvidos, porque eu não conseguia escutar direito. Ou eu só estava assustado demais. Escalei por aquela janela estreita da melhor forma que pude, adentrando um espaço escuro e com cheiro de mofo. Gregory agora estava parado do lado de fora da janela, uma expressão lívida no rosto. Michael pulou logo em seguida e segurou meu braço.

-Cara, você tá legal? - Ele perguntou. Eu assenti com a cabeça, mas era mentira.

-Como é que a gente vai…? - Eu ouvi Stan perguntar, mas Christophe nem permitiu que ele terminasse a sentença, recolhendo o corpo mole de Kenny dos seus braços como se ele fosse um boneco.

-Eu carrego ele, só entra. Anda, caralho, entra.

Um por um, eles pularam a janela. Eu tive tempo de reconhecer o espaço ao redor, recuperando minha visão ao mesmo tempo que as pupilas se acostumavam ao escuro. Havia uma escada longa e duas portas trancadas ao nosso redor. Christophe foi o último a entrar, passando Kenny pela janela primeiro, e ele se movia de forma lenta, mas consciente. Cartman o recebeu nos braços do lado de dentro. Pela minha contagem, estávamos todos ali, com exceção de Pete. E isso era melhor pra ele.

Stan tentava enxergar a minha ferida, e pela expressão no rosto dele, devia estar medonho. Mas ele tentava disfarçar. Assim como tentava disfarçar o pavor em seus olhos diante do fato de que Kenny tinha uma bala dentro do peito e tossia sangue enquanto Christophe o carregava no colo escada acima. Os degraus rangiam sob nosso peso, dando a impressão de que poderiam ceder a qualquer instante. Isso não aconteceu.

O andar de cima era uma sala ampla, as janelas bloqueadas por tábuas de madeira, como era comum com os edifícios abandonados. Stan me segurava pelo braço, mas apertava a mão com força demais em torno da minha carne, quase machucando. Ele não percebeu que o fazia, estava assustado demais para isso. Apesar disso, eu desabei no chão. Stan permitiu somente porque percebeu que eu realmente queria me sentar, ajoelhando-se à minha frente.

-Deixa eu ver. - Ele disse com carinho, trazendo as mãos trêmulas ao meu maxilar. Havia tanta dor em seus olhos. Ele murmurou baixo. - Aquele filho da puta.

Eu ainda não conseguia falar. O tempo só piorava a ardência. Havia lágrimas escorrendo espontaneamente dos meus olhos, uma defesa do meu corpo, muito mais do que um choro de verdade.

Henrietta e Michael eram extraordinariamente bem treinados. Enquanto Christophe repousava Kenny no chão, próximo à janela, Gregory erguia a camiseta dele para verificar a ferida e Michael chutava as portas dos quartos com o canivete na mão, Henrietta logo atrás dele, garantindo que aquele apartamento velho estava mesmo vazio. Não havia móveis na sala, pelo menos de onde eu conseguia enxergar. As órbitas dos meus olhos continuavam se voltando ao corpo de Kenny no canto da minha vista, os gemidos fracos dele enchendo meus ouvidos.

Logo, Christophe se aproximou de nós.

-Kenny?! - Eu ouvia a voz trêmula de Cartman. - Tá me ouvindo, viado?

-Vai se foder. - Kenny disse a ele, eu podia ouvir o sorriso em seus lábios, mesmo sem enxergá-lo.

E por alguns segundos, eu fui grato por Cartman estar ali.

Christophe colocou uma mão firme no ombro de Stan, abaixando-se ao lado dele.

-Você quer…? - Ele não finalizou a pergunta, apenas acenou com a cabeça em direção ao Kenny. Era direcionada ao Stan, não a mim, mas eu tive vontade de rastejar até ele, deitar a cabeça em seu peito e esquecer o resto do mundo. Meu cérebro ainda não aceitava a possibilidade de que ele poderia morrer. - Eu posso limpar a ferida dele.

Stan pareceu hesitante. Sua mão repousava sobre minha coxa e se fechou em um punho, seu olhar caindo para o chão. Ele parecia dividido.

-Eu tô bem, Stan. - Eu me obriguei a dizer, sentindo gosto de sangue na boca. - Fica com ele, me fala o que tá acontecendo.

Ele assentiu com a cabeça e respirou fundo, levantando-se devagar.

-Tá bom. Me chama se você precisar. - E, voltando-se ao Christophe brevemente. - Obrigado.

As coisas aconteciam simultaneamente. Eu ouvia muitas palavras sendo trocadas do outro lado da sala, a voz de Gregory com uma alteração ainda embriagada repetindo inúmeras vezes “faz pressão” enquanto eles tentavam estancar o sangue que transbordava do peito de Kenny. A respiração dele era irregular, como a de um cachorro. Stan limpava o sangue que saía da boca dele enquanto Cartman apertava com força o peito dele. Aquilo me trazia flashbacks aterrorizantes. Meu coração batia forte nas minhas orelhas, meu rosto latejava, eu tinha muita dificuldade de respirar. Minhas mãos tremiam. Enquanto eu observava a cena do outro lado da sala, os três em cima de Kenny enquanto Michael e Henrietta davam espaço, senti duas mãos grandes e quentes em meus pulsos. Voltei minha atenção ao homem à minha frente. Christophe deslizou as palmas pelas minhas mãos, segurando-as com firmeza porque elas tremiam. Tremiam mais do que eu havia percebido. A expressão em seu rosto era tão calma. Meu coração começou a desacelerar.

Ele não disse nada durante um tempo, apenas ficou parado assim, transferindo um pouco do seu calor. Então, ele soltou minhas mãos e tirou o suéter preto que usava por baixo do casaco (que devia estar jogado em algum canto) revelando a regata cinza por baixo. Ele a tirou também, revelando o peito nu coberto por cicatrizes. Eu franzi as sobrancelhas, mas não perguntei nada, apenas o observando. Acho que eu nunca havia tido a oportunidade de olhá-lo completamente sem camisa, e o que me surpreendeu não foram as nuances dos músculos dele que eu já conhecia tão bem, mas sim a quantidade de cicatrizes pela sua pele. Cuspi sangue no chão. Christophe vestiu o suéter novamente antes de envolver a regata em sua mão e aproximá-la do meu rosto. Tocou minha pele com aquela sua delicadeza rude. Eu afastei um pouco pela dor, mas sabia que era inevitável. Apertei os olhos, franzindo o nariz, sentindo vontade de real de chorar porque aquilo ardia tanto. Porque Kenny sangrava e gemia de dor e ria sem fôlego a poucos metros de mim. Porque de alguma forma, era culpa minha.

-Shhh. - Christophe sussurrou pra mim, acalentando o meu medo. - Pronto. - Ele disse, começando a limpar o sangue do meu rosto.

-Kyle? - Kenny me chamou. Eu tentei virar o rosto na direção dele, mas os dedos grossos de Christophe seguraram meu queixo. - Como…. Como é que você tá?

Ouvir a voz fraca dele foi o que me empurrou para que as lágrimas começassem, de fato, a descer e se misturar ao sangue. Eu tentava sugar o ar com a boca, quase soluçando.

-Ele tá ótimo. - Christophe respondeu por mim, quase sorrindo. - Foi só um arranhãozinho.

-Porque não foi na sua cara. - Respondi baixo, fechando os olhos, não tentando esconder a irritação.

-Olha aqui. - Ele disse, a mão em torno do meu maxilar. - Olha pra cima um pouco.

Eu obedeci, separando as pálpebras e deixando as órbitas rolarem para cima, sentindo o rosto dele muito perto. Ele examinava meu rosto, maneando com as pontas dos dedos para que eu virasse na direção que ele melhor pudesse enxergar.

-Eu acho que não tem caco de vidro no seu olho. Você sente alguma coisa?

-Não tenho certeza. - Respondi, piscando algumas vezes. Endireitei o pescoço, voltando a olhar pra frente. Meu lábio estava cortado também, eu podia sentir com a língua. - Tá muito feio?

-Que nada. - Ele respondeu de forma leve, como se tratasse o ralado do joelho de uma criança. Voltou a pressionar parte do tecido macio da regata contra a minha pele, uma região limpa, tentando estancar o sangue. Qualquer cortezinho de merda no rosto demorava anos pra parar de sangrar, eu sabia disso. Ele umedeceu os lábios, me olhando de forma quase lasciva enquanto dizia. - É a sua primeira cicatriz de menino grande. Vai ficar linda pra caralho.

Então, eu fiz algo que não pensei que conseguiria fazer naquele momento. Eu sorri. Podia sentir meus dentes ensanguentados, e deveria ter sido o sorriso mais esquisito do mundo, com meus olhos vermelhos e minha bochecha dilacerada sobre o pano coberto de sangue que ele pressionava em meu rosto, mas ele piscou para mim com um sorriso muito sutil nos lábios, satisfeito por ter conseguido me acalmar pelo menos um pouco. E eu me dei conta do quanto sentia saudade dele.

Eu pude sentir Stan nos observando, dividindo a atenção entre Kenny e nós dois. Eu não desviei o olhar na direção dele porque mover meu rosto em carne viva não parecia uma boa ideia com aquela mão grosseira estancando o corte. Os cortes. Pareciam tantos, como se não houvesse parte da minha pele que não estivesse cortada. Ficamos algum tempo assim, a atenção dele completamente voltada ao meu ferimento. Ele estava bem perto, o suficiente para eu sentir o cheiro de seu hálito, o ar quente deixando suas narinas e acariciando minha pele. Meus olhos se acostumavam à escuridão, revelando os contornos do rosto dele, que eu já conhecia tão bem e, mesmo assim, sempre surgiam nuances diferentes. Era um rosto tão forte, marcado por pequenas cicatrizes; a região onde a barba começava a crescer era escurecida, revelando uma textura mais grossa que me dava vontade de sentir com as pontas dos dedos. A proximidade me conforta. O cheiro dele também.

Seus olhos se voltaram aos meus, e brilhavam em tanta amorosidade, por mais que todos os músculos de sua face revelassem uma profunda seriedade. Ele tinha aquelas manchas cor de mel pincelando em torno das pupilas dilatadas no escuro. Não me perguntou se eu estava bem, não me deu chance de perder o controle e desabar. Conviver com ele me ensinou tanto sobre como sobreviver.

Mesmo quando eu estava à beira das lágrimas, murmurando em uma voz espremida:

-Eu devia ter descolorido o cabelo.

-Não fala merda. - Foi a resposta dele.

Passei algum tempo em silêncio, de olhos fechados, absorvendo a resposta dele, tirando força daquilo para não me desfazer. Acho que eu estava realmente ficando mais resiliente.

-Você atirou nele? - Perguntei baixinho. - No cara que… - “que fez isso comigo”, mas não precisei continuar para que ele entendesse. Christophe me olhou com curiosidade.

-Isso te incomodaria?

-Agora não.

-”Agora”? - Ele perguntou quase rindo, sem responder minha pergunta. Eu sabia que ele tinha atirado, mas não sabia aonde. Não sabia se havia sido em alguma parte do corpo que o mataria ou não. E perdi a vontade de saber.

Ele não tinha com o que limpar a ferida para que não infeccionasse, tampouco tinha bandagens para cobri-la, mas lavar com um pouco da água que ele tinha em uma garrafa na mochila pareceu suficiente. Meu rosto já não estava mais besuntado, isso já era um alívio. Eu estava ansioso para que ele terminasse logo, ansioso para estar ao lado de Kenny, para participar da discussão calorosa que ocorria entre Stan, Cartman, Michael e Henrietta sobre o que fazer em seguida, tudo isso enquanto Gregory tratava a ferida de Kenny sem recurso nenhum. Eles monitoravam o movimento da rua abaixo, porque a briga no bar invocou uma quantidade desproporcional de sapadores, o que gerava uma alusão a guerra civil na rua e nós não podíamos ir a lugar nenhum. Cartman havia bloqueado a porta com uma cômoda que havia em um dos quartos, com alguns cacarecos inúteis nas gavetas deixados para trás por quem havia morado ali um dia. Na verdade, pelos colchões e cobertores nos quartos, parecia que pessoas sem teto ocupavam o lugar, mas não estavam ali naquela noite.

Falaram sobre mover Kenny para um dos colchões, mas quando tentaram erguê-lo, ele gritou de dor e pediu, pelo amor de Deus, para que o deixassem ali. Ele estava são o tempo todo, tirando sarro de algumas coisas, então ouvi-lo gritar era insuportável. Henrietta buscou cobertores para fazer uma espécie de cama em torno dele, deixando-o no estado mais confortável possível.

-O pulmão dele está perfurado. - Gregory disse.

-Quanto tempo ele aguenta sem ajuda médica? - Stan perguntou ofegante, mas o que se seguiu foi um silêncio horrível. A expressão dele era de quem estava prestes a vomitar. - Então… Então eu vou buscar alguém.

-Você nem conhece a cidade, Marsh. - Christophe respondeu. - Deixa que eu vou.

-Ninguém vai a lugar nenhum. - Henrietta disse, de pé, próxima à janela. - A rua tá infestada. Ninguém mais vai tomar tiro, ninguém vai ser pego hoje. Vamos esperar.

-Ele não pode ficar assim! - Eu gritei, ou quase gritei, agora já próximo de Kenny.

-Não, não, ela tá certa. - Kenny disse com a voz grogue e os olhos pesados. - Tá todo mundo bêbado. Vão dormir, cara. Tá… - Ele interrompeu a frase para começar a tossir sangue, que Stan limpou com a manga de imediato. - Tá tudo bem.

-Cala a boca. - Respondi.

-Ele não tá errado. - Michael disse, soando extremamente cansado, esfregando os olhos. - A gente pode se revesar com ele, dormir um pouco, ficar sóbrio. Em umas duas horas, a rua deve estar limpa.

-Duas horas?! - Stan perguntou. - Te parece que ele tem duas horas?

-Cara, o que você quer fazer? - Michael retrucou, pegando um cigarro do bolso, gesticulando com ele preso entre o indicador e o dedo médio, sem acendê-lo. - Eu sei que é uma merda. O Pete também pode estar sangrando no asfalto por aí, você acha que eu não queria ir atrás dele? Mas não dá, cara. Não dá pra ser idiota.

Nós não respondemos, nem Stan, nem Cartman, nem eu. Porque no fim das contas, ele estava certo. E nós estávamos vulneráveis demais, assustados demais para tomar decisões sãs. A próxima hora foi muito mais silenciosa, e é difícil de acreditar, mas quando as pessoas ao seu redor agem como se não estivesse acontecendo algo terrível, você se acalma; Michael e Christophe fumaram juntos, Cartman foi o primeiro a ir se deitar, acho que para não socar uma parede. Ele não sabia lidar com impotência. Depois que Henrietta e Michael foram para o quarto também, Gregory se aproximou de nós e disse em um sussurro:

-Eles não querem ser frios. É só… Eles já viram muita gente levar tiro. Já perderam muitos amigos assim.

Eu não respondi nada, não estava irritado com eles. Não havia espaço para nada que não fosse Kenny na minha cabeça. Eu sabia que carregá-lo para fora seria o mesmo que matá-lo e também sabia que voltar ao motel em busca de um dos médicos seria suicídio. Eu fiz a única coisa que poderia para ajudá-lo: eu fiquei ali. Continuava extremamente embriagado, ou talvez fosse a pancada que fodeu todos os meus sentidos, ou ainda, o fato de que nós estávamos acordados há quase vinte horas e os Monarcas tinham horários de treinamento muito bem regulados, bastante exaustivos. Meu corpo começava a ceder. Eu segurava a mão de Kenny, que parecia bizarramente calmo diante da coisa toda. Talvez tenha sido isso que me tranquilizou o bastante para eu apagar, deitado no chão ao seu lado, minha cabeça encostada em seu ombro.

 

-Ei. - Ouvi uma voz distante me chamar. Acordei assustado, os olhos ardendo, meu rosto muito mais dolorido do que quando eu havia adormecido. Eu não sabia que horas eram, quanto tempo havia passado. A primeira coisa que fiz ao erguer a cabeça foi me virar para checar o pulso de Kenny, logo reconhecendo que a voz me chamando era de Christophe. Eu sentia uma pulsação fraca. O rosto de Kenny parecia tranquilo, os olhos fechados e a boca entreaberta, apagado. - Kyle.

-O quê? - Resmunguei cansado, sentindo uma dor de cabeça medonha latejando dentro do meu crânio. Esfreguei um dos olhos com o punho, tentando me orientar no espaço. Stan, que estava sentado com as costas apoiadas na parede, também acordava. Talvez ele nem tivesse chegado a adormecer.

-Vão deitar um pouco, vocês dois. Eu fico aqui com ele.

Umedeci um pouco os lábios, lançando um olhar indeciso a Stan, que parecia assustado por ter pegado no sono pra começo de conversa.

-Não, eu quero ficar aqui.

-Kyle, ele tá apagado. Ele nem sabe que vocês tão aqui. Vai dormir, eu não tô com sono.

Fiquei em silêncio durante alguns segundos, endireitando meu tronco, apoiando a mão no chão de madeira. Aquela sala parecia tão abafada de repente, havia uma camada fina de suor por dentro da minha roupa. Eu podia ver Christophe verificando o ferimento no meu rosto de forma discreta, sem querer que eu percebesse. Stan já estava se levantando, respirando fundo, alongando os braços e o pescoço de doía devido à posição. Havia um gosto amargo na minha boca. Quando meus olhos encontraram Christophe novamente, eu engoli seco.

-Se acontecer qualquer coisa… Qualquer coisa. Você me chama?

Ele me olhou com uma dor no olhar de quem sabia exatamente como aquilo ia terminar. Mas não me disse a verdade. Parecia que todos naquele apartamento tiveram certeza, a noite toda, de que Kenny não veria o sol amanhecer. Eu me recusava a acreditar.

Por fim, ele assentiu com a cabeça, me assegurando de que, se o pior acontecesse, pelo menos eu estaria presente.

-Claro que chamo.

Ele botou a mão no meu ombro e apertou de leve. E nós, Stan e eu, fomos dormir.

 

Acordamos por volta das seis da manhã, os raios de luz da manhã invadindo as frestas das tábuas bloqueando as janelas. Quando abri os olhos, Stan ainda dormia. Nós dividíamos um colchão de solteiro, nossos corpos enroscados no espaço pequeno. Eu me assustei com a luz do dia. Ergui o tronco rápido, mesmo com a cabeça pesada e latejando de dor, uma pressão terrível por trás dos olhos. Passei as pontas dos dedos pela minha bochecha, sentindo algo úmido escorrer. Meus dedos saíram manchados de sangue vermelho. O colchão também estava, um pouquinho. O corte devia estar sangrando de novo. Eu nem queria imaginar as bactérias que habitavam aquele colchão e haviam entrado diretamente na minha corrente sanguínea. Enfim. Eu teria tempo para pensar nisso antes.

Tentei me lembrar de porque eu precisaria ter acordado antes, mas não consegui. Meu coração batia acelerado, como se tentasse me dizer alguma coisa, mas… Eu não sabia o quê. Stan grunhiu baixo, sentindo a dor da ressaca, virando para o outro lado no colchão. Gregory dormia próximo a nós. Havia outros corpos no quarto, talvez Henrietta ou Cartman, eu não consegui identificar enquanto me levantava completamente grogue, tonto, enjoado. Havia tirado os sapatos para dormir e me esqueci de colocá-los de volta enquanto pisava na madeira fria do chão, em passos leves, tentando não acordar ninguém.

Onde é que o Kenny estava? O nome dele invadiu a minha mente, como se eu devesse estar preocupado com alguma coisa, mas não sabia o que era.

Ao chegar na sala, encontrei Christophe adormecido. Foi a primeira coisa que vi. Estava muito mais claro ali, e a luz violentava meus olhos, mas eu fiz sombra com a mão e caminhei até o meio, observando a figura estranha dele sentado no chão. Era tão raro vê-lo dormindo. Ele segurava uma garrafa de rum que não estava ali na noite anterior, sua mochila aberta muito perto dele, as pernas esticadas e a cabeça caída para o lado, os lábios carnudos levemente separados, os olhos apertados demais, como se ele sonhasse algo ruim.

-Bom dia. - Ouvi aquela voz familiar me dizer.

Virei a cabeça e abaixei a mão para encontrar Kenny de pé próximo à janela, observando o movimento lá debaixo, um sorriso fraco em seu rosto. Então, eu me lembrei de que ele estava ferido. Mas não conseguia me lembrar aonde, tampouco qual era a extensão do ferimento. Olhando-o de cima abaixo, suas roupas limpas e nenhum arranhão em vista, imaginei que aquilo fosse coisa da minha cabeça. Eu devia ter sonhado.

-Bom dia. - Respondi com um sorriso que fez o corte em meu rosto arder mais, seguido por uma expressão de dor.

À luz do dia, era seguro voltar pra casa.



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