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História Liberté - A Presença


Escrita por: caulaty

Capítulo 36 - A Presença


08 de janeiro de 3645

 

O banheiro era muito apertado para que coubessem mais de três pessoas lá dentro. Apesar do frio que fazia lá fora, e do sistema de aquecimento não ser lá grandes coisas, dentro do banheiro estava bastante abafado. Eu usava um suéter de lã cinza e, por cima, Christophe havia coberto meu tronco com um lençol branco manchado para que os meus fios de cabelo não grudassem na minha roupa ou me pinicassem demais, amarrando as duas pontas atrás da minha nuca. Eu tinha a cabeça levemente caída para frente, o queixo encostando em meu peito, enxergando os meus cachos vermelhos caindo na pia branca, alguns ainda grandes pelos fios unidos, outros menores se desprendendo, espalhados pela porcelana úmida. Eu estava sentado em um banquinho em frente a bancada de madeira da pia, enxergando Christophe atrás de mim através do espelho.

O barulhinho constante da máquina de barbear ecoava pelos azulejos das paredes, preenchendo todo aquele espaço claustrofóbico e abafado. Christophe já havia começado há cinco minutos, mas parecia uma tarefa muito mais complicada do que eu havia previamente imaginado. Eu não fazia ideia de quanto cabelo eu tinha.

Stan estava sentado sobre a tampa fechada do vaso, as pernas bem abertas e os cotovelos apoiados nas coxas, observando em silêncio. Eu não podia enxergá-lo muito bem, mas conseguia sentir o quão curioso era o jeito que ele me olhava, contendo um sorriso de estranheza. Havia uma banheira bem ao lado do vaso, comprimida entre as paredes, que continuava tendo uma aparência imunda não importando o quanto nós tentássemos limpar. Kenny estava dentro dela, os braços descansando sobre a beirada, a cabeça deitada sobre os antebraços como se ele fosse um menino, uma criança. Ele estava completamente vestido e a banheira estava seca, vale apontar, mas era o espaço disponível naquele momento. Gregory estava apoiado contra o batente da porta, de braços cruzados, era quem eu melhor conseguia enxergar através do espelho.

Christophe, por qualquer motivo, tinha um cigarro apagado entre os lábios, as duas mãos livres para fazer o serviço; seus dedos grosseiros deslizavam pelo meu couro cabeludo no lado onde ainda havia cabelo de sobra, sentindo a superfície, repuxando alguns fios por acidente. Eu apenas fazia caretas que ele provavelmente não enxergava, concentrado demais em passar a máquina de forma rente, ou algo próximo a isso. Depois do incidente na rua, raspar meu cabelo já não era mais uma questão de escolha. Eu tinha a marca em meu próprio rosto para me lembrar disso todos os dias.

Ergui um pouco a cabeça, meus olhos encontrando minha própria imagem refletida no espelho manchado daquele banheiro de má iluminação. Christophe deslizou a palma pela minha testa para puxar os fios de cabelo para trás, e nesse exato momento, nossos olhares se cruzaram pelo espelho. Ele ergueu as sobrancelhas para mim, o que eu entendi como sua forma de quase demonstrar um sorriso, mas não chegou a tanto. Ele ergueu um pouco o cigarro com os lábios, brincando com ele na boca enquanto raspava próximo à minha orelha. O som era muito forte.

-Meu Deus, Kyle. - Kenny disse com uma gargalhada incrédula. Nós nos conhecíamos a vida inteira e ele nunca me vira sem cabelo. Eu nunca me vira sem cabelo.

-O quê? - Perguntei, esperando não soar muito irritado quando as palavras deixaram meus lábios, porque eu não estava. A coisa toda só me deixava bastante apreensivo.

Kenny encolheu os ombros, ainda sorrindo – pelo que eu conseguia enxergar da visão periférica.

-Nada, cara. Só é… É meio esquisito.

Tentei virar o rosto em direção a ele, franzindo a testa, mas Christophe usou a mão para que eu voltasse a endireitar a cabeça.

-Não mexe. - Ele disse junto com o gesto, iniciando o trabalho no topo da minha cabeça agora. Meu coração batia um pouco apertado, mas isso não fazia sentido. Era só cabelo. Talvez fosse aquela cor vermelha caindo pelo chão, pelo meu tronco, pela pia. - É óbvio que tá esquisito, é sempre esquisito quando você raspa só metade. Esse cabelo é grosso pra caralho. - Ele adicionou o comentário ao final enquanto desligava a máquina por um segundo. Era difícil de entendê-lo com o cigarro na boca, visto que a sua dicção e sotaque já eram uma barreira. Sua mão grosseira começou a pegar nos meus cachos quase como se os acariciasse, sentindo a textura antes de levar a mão à boca e tirar o cigarro, colocando-o na orelha.

-Eu nunca ia imaginar que você entende de cabelo. - Stan comentou, parecendo surpreso com o fato de que Christophe sabia o que estava fazendo, o que era um alívio. Ele só encolheu os ombros como se disse “eu não entendo”.

-São as vantagens de não pagar por serviço nenhum. Você aprende a fazer essas coisas sozinho. - Gregory nos informou, e pelo que eu entendi, isso se referia somente ao Christophe, não a si mesmo.

Eu encarei meu próprio reflexo no espelho, assistindo a mais um chumaço grosso de cabelo cair sobre meu ombro. Mas minha atenção não estava tanto em meus cachos, e sim, na cicatriz profunda abaixo do meu olho, atravessando um bom pedaço da minha bochecha. Se o desgraçado tivesse batido com a garrafa um pouquinho mais para a esquerda, eu teria ficado cego daquele olho, muito possivelmente. Não sei como não fiquei. Havia outros cortes menores, como um logo acima da minha sobrancelha, mas estes eram mais superficiais. Já a cicatriz grande, que deformava o meu rosto, continuava avermelhada e dolorida como se tivesse sido feita ontem. Ainda não era tanto uma cicatriz quanto um corte fechado por seis pontos, feitos da forma mais meticulosa possível diante das condições que tínhamos. O médico que tomou conta do meu rosto se chamava Damien, uma das figuras mais estranhas que conheci em Nova York. Ele era um médico, mas não havia nada de caloroso a seu respeito, pelo contrário. Damien tinha cabelos pretos e usava roupas ainda mais pretas que contrastavam com aquela pele branca como se ele nunca tivesse visto sol em toda a sua vida. Ele tinha olheiras profundas e olhos de um castanho avermelhado que eu nunca vi em seres humanos, nariz fino, sobrancelhas grossas, os lábios quase não podiam ser vistos. Havia algo sinistro nele. Não era exatamente como os góticos, era um outro tipo de energia. Ele não falava, não sorria, guardava vidros em seu consultório com cadáveres de animais imersos em algum líquido amarelo conservante. Eu não gostaria de ter que visitá-lo de novo, estar próximo daquele homem com aquelas ferramentas cortantes me dava arrepios, mas Standish e Christophe disseram que ele era o melhor que tinham a oferecer em termos de prática medicinal. Henrietta contou que ele trabalhava com algum tipo de ocultismo também.

Passei alguns instantes tão imerso nas memórias da visita ao consultório de Damien que levei um susto ao encarar o espelho novamente. Era difícil oferecer expressões faciais quando meu rosto doía a cada pequeno movimento, mas fiquei assustado com a quantidade de cabelo que Christophe já havia raspado. Passei uma das mãos por fora do lençol para alisar minha própria cabeça, a superfície raspada quase que completamente, mas ainda com uma fina camada de cabelo novo que era incrivelmente macio de tocar.

-Meu caralho, eu pareço um alienígena. - Comentei, estudando o formato da minha própria cabeça.

-Cala a boca, tá um tesão. - Christophe respondeu de imediato, correndo sua mão grande pelo topo da minha cabeça de forma tão lenta que arrepiou todos os pelos de meu corpo, especialmente quando eu podia ver seus olhos me encarando pelo espelho. Eu podia sentir meu próprio rosto ficando quente. Evitei o contato visual, correndo meu olhar pela bancada da pia, mas um sorriso tímido apareceu nos meus lábios mesmo assim, ainda que um tanto desconfortável. De relance, enxerguei a figura de Gregory refletida no espelho, as sobrancelhas erguidas em seu rosto, os braços ainda cruzados.

Havia pouco cabelo sobrando para ser raspado, mas eu percebia que Christophe dava uma atenção especial aos detalhes, os fiapos que me incomodariam mais tarde se ele não raspasse direito em torno das minhas orelhas. Eu tinha dificuldade de me reconhecer. Engoli o acúmulo de saliva em minha boca, percebendo uma tristeza nos meus próprios olhos que estava lá constantemente há muito tempo, mas talvez eu só conseguisse percebê-la com clareza agora minha imagem estava diferente, agora que eu não tinha mais cabelo e carregava no rosto aquele corte que nunca se curaria por completo. Eu levaria a revolução no meu rosto pra sempre. Por algum motivo, isso fazia com que eu me sentisse um pouco mais forte.

-O que você acha? - Perguntei ao Stan, virando minha cabeça em sua direção brevemente para indicar que era com ele que eu falava. Nesse gesto curto, enxerguei sua figura de relance, suas mãos entre as pernas abertas, segurando a beirada da tampa do vaso, a coluna um pouco torta, os ombros caídos, o rosto cansado. Ele encolheu os ombros.

-Eu odeio que você tenha que fazer isso. - Ele respondeu após uma pausa de hesitação, deixando bem claro que a minha aparência não fazia diferença alguma para ele, mas era doloroso o fato de eu precisar me esconder. Eu entendia isso melhor do que ninguém.

-Tá bem foda, parece que você acabou de sair da prisão. - Christophe disse, fazendo Kenny soltar uma gargalhada alta que ecoou pelas paredes do banheiro.

-É verdade! - Kenny disse, soando mais empolgado do que deveria. Eu não entendia se aquilo deveria parecer um elogio ou o quê. - Ô Toupeira, por acaso você sabe tatuar também? Só falta a gente fazer uma tatuagem bem foda na careca dele.

-Eu não sei, mas o Trent sabe.

-Sério? - Kenny perguntou, franzindo a testa, desconfiado. Não entendi porque isso foi uma surpresa para ele, encaixava tão bem com a figura do Trent.

Christophe apenas assentiu com a cabeça. Ele mudava de lado às vezes, pisando sobre os meus cabelos no chão com os pés descalços. Ele vestia uma camiseta preta que tinha fiapinhos de cabelo aparecendo, como se ele tivesse rolado no chão com um gato ruivo. Essa era uma cena que eu gostaria muito de ver. Parou um instante para secar o suor fino da testa, desligando a máquina enquanto averiguava o serviço, passando a mão pela minha cabeça para limpar os fios soltos, mas novamente, ele começou a me acariciar.

-Pronto. - Disse.

-Isso é tão estranho, vai demorar pra eu me acostumar com isso. - Comentei com um riso fraco, levando minha própria mão ao topo da cabeça, roçando na dele sem querer, pouco antes de Christophe tirar sua mão de mim.

-Ei. - Gregory disse ao Christophe. - O Standish disse pra você ir até a cozinha quando terminasse aqui.

-Agora?

-É, acho que sim.

Christophe tirou a máquina da tomada ao lado do espelho e enrolou o fio nela antes de deixá-la sobre a bancada, esfregando as mãos em batidinhas leves para se livrar dos fios minúsculos que grudavam na pele, esfregando as palmas nas laterais da calça enquanto caminhava em direção à porta, parecendo irritado. Gregory deu espaço para que ele passasse. Enquanto isso, Stan também se levantou.

-Eu vou pegar uma vassoura. - Anunciou, não esperando por resposta antes de seguir Christophe pela porta do banheiro. Eu podia sentir em seu tom que ele estava bastante incomodado.

Talvez isso tenha ficado claro na minha expressão, mais do que eu gostaria, porque quando desviei meu foco da minha própria imagem no espelho para a imagem de Gregory logo atrás de mim. E havia algo em seus olhos… Não somente nos olhos, em sua expressão inteira. Eu franzi as sobrancelhas imediatamente, porque ele me estudava como se enxergasse alguma coisa tão íntima dentro de mim que fiquei incomodado de imediato.

-O que foi?

Ele não chegava a sorrir, apesar daquela expressão arrogante de quem sabia de tudo.

-Nada. - Gregory disse, encolhendo os ombros.

-Fala.- Respondi, irritado, virando-me no banco para ficar de frente para ele.

Um momento de silêncio se instalou. Kenny endireitou as costas na banheira, pigarreando, com um ar de quem gostaria de estar em qualquer outro lugar do planeta no momento. Gregory lançou um olhar pensativo a ele, como se a presença de Kenny o fizesse ponderar as palavras com cuidado.

-Nada, Kyle. Vocês fizeram as pazes, eu acho ótimo.

-Tô vendo.

-Vocês querem que eu…? - Kenny começou a perguntar, mas eu sacudi a cabeça negativamente. O que foi idiota da minha parte, essa necessidade de provar que eu não tinha coisa alguma a esconder de ninguém, que eu não estava fazendo nada de errado. Gregory não disse que eu estava, mas me olhava daquela maneira que sempre me deixava em defensiva. Eu deveria saber que ele não estava me julgando, que não era tão simples assim.

-Olha só. - Gregory disse, desencostando-se da porta quando percebeu que teria que dar algum tipo de resposta. - Eu não vou te dizer como você deve ou não se relacionar com alguém.

-Mas?

-Mas eu acho que você precisa ter cuidado, só isso.

Eu o encarei com uma expressão levemente confusa, mas em expectativa de que ele prosseguisse, embora ele não fizesse menção de dizer mais nada.

-Do que você tá falando, Gregory?

Ele deu um suspiro impaciente, esfregando a testa.

-Kyle, o Toupeira parece casca grossa daquele jeito, e ele não deixa muita gente entrar nessa casca. Você entrou, entende?

-Não, eu não entendo.

-Ele não se relaciona com facilidade, Kyle. Mas quando ele se abre pra alguém… Ele é muito mais frágil do que parece. Eu não sei, me preocupa, eu não sei se vocês deveriam tentar ser amigos agora.

Eu odiava aquilo. Odiava o fato de que Gregory amava demais para não se meter, para não dizer as verdades que precisavam ser ouvidas. Eu podia entender o que ele estava dizendo, ainda que meu primeiro impulso fosse o de me sentir ofendido e perguntar que diabos ele estava insinuando. Em vez disso, desviei o olhar e balancei a cabeça, absorvendo as palavras dele.

-Eu não vou machucá-lo, Gregory. - Respondi sem raiva, sem defesa, porque era verdade.

-Olha só, eu não estou tentando dar aquele papo escroto de “se você machucá-lo, eu te mato”, eu sei que não é isso. O Toupeira é grandinho, ele sabe o que faz. Mas… Desde que eu o conheci, eu nunca achei que veria para ver Christophe disposto a tomar um tiro pra proteger outra pessoa. Literalmente, Kyle, não é modo de falar, o cara literalmente usou o próprio corpo pra te proteger. A pessoa com o instinto de sobrevivência mais forte que eu já conheci.

-O que exatamente você quer que eu faça, Gregory? É pra eu me sentir culpado?

-Não! Lógico que não.

-Não é como se a gente pudesse se separar e viver uma vida normal, você é o primeiro a falar que todos nós temos que ser companheiros. Agora você acha ruim que a gente se dê bem?

-Cara, eu não acho que tenha sido isso que ele quis dizer. - Kenny interrompeu em seu tom diplomático, parecendo extremamente sério para alguém deitado em uma banheira com roupas. Eu tinha me esquecido que ele estava ali. - O cara é apaixonado por você. E o Stan vê isso. Só toma cuidado.

-Com o quê? O Toupeira sabe muito bem das minhas intenções. O Stan também. Ninguém aguenta mais falar sobre isso, a gente finalmente tá bem. Qual é o problema?

-Não tem problema, Kyle. - Gregory respondeu, soando mais gentil agora. - Eu já falei, eu acho ótimo que vocês sejam amigos, eu só não quero que vocês se machuquem. Nenhum dos três. Além do mais, nós temos que manter o foco.

-Você acha que eu não sei disso? Ninguém quer esquecer o que aconteceu mais do que a gente.

Os olhos azuis de Gregory diziam com toda clareza do mundo que ele não acreditava, mas tudo bem. Eu sabia que ninguém seria capaz de entender olhando de fora. Isso não me importava. A questão é que nenhum de nós três tinha escolha; eu me lembrava da noite que passamos naquele celeiro, quando Christophe alucinava de febre e Stan parecia uma rocha de tão forte, tão calmo, garantindo-me com os olhos que não deixaria que nada de ruim acontecesse a ele, porque apesar de todas as coisas, Christophe era seu companheiro de resistência. Nós precisávamos confiar uns nos outros.

Mesmo assim, eu também não era idiota de pensar que tudo estava resolvido, que todas as mágoas haviam desaparecido e as feridas estavam curadas. Eu não sabia exatamente como Christophe se sentia depois de tudo, ou mesmo o que Stan pensava da nossa proximidade, pois foi um acordo que aconteceu sem troca de palavras. As palavras de Kenny continuaram ecoando em meu crânio durante um bom tempo: “O cara é apaixonado por você. E o Stan vê isso.”

 

Provavelmente foram essas palavras que me moveram a tomar a decisão de colocar palavra nas coisas não-ditas. Algumas horas depois, quando eu passava pelo pátio em direção ao quarto, enxerguei Christophe fumando na varanda do segundo andar, os cotovelos apoiados na grade. Ele tinha um casaco verde escuro sobre a camiseta que usava mais cedo, mas tinha o pescoço e as mãos expostas, provavelmente geladas. Eu voltava do serviço de contagem no depósito, era a minha função do dia, junto com Pip. Me despedi dele rapidamente e subi as escadas de ferro que havia por fora da construção, passando uma mão pela minha própria cabeça porque ainda era muito estranha a sensação de não ter cabelo, o vento gelado soprava nas minhas orelhas totalmente expostas.

-E aí. - Ele disse antes de eu chegar no topo da escada, soprando a fumaça do cigarro que se misturava ao vapor do ar quente de sua boca encontrando o ar gelado. Ele quase sorriu para mim quando cheguei mais perto. Eu estava um pouco sem fôlego.

-Ei. - Respondi.

-Eu ainda não me acostumei com você desse jeito. - Christophe me disse, agora sorrindo de verdade, segurando o cigarro entre os dedos bem perto da boca, estendendo a outra mão pra tocar minha orelha de leve. Surpreendentemente, sua mão estava quente em contraste com a minha pele. Quando ele sentiu o quão gelada a minha orelha estava, ele usou a palma para aquecê-la. Os cantos da minha boca se erguiam sutilmente, mas havia hesitação no meu corpo inteiro. Christophe tinha uma sensibilidade quase animal para esse tipo de coisa, então não deixou a mão ali durante muito tempo, casualmente levando o cigarro à boca para mais uma tragada.

-A gente pode conversar? - Perguntei, tentando não soar muito sério, mas essa era uma frase difícil de tornar casual. Eu cruzei os braços.

Christophe não esboçou reação imediata, voltando a apoiar os cotovelos na grande, encarando o pátio lá embaixo. A fumaça escapava pelas suas narinas e boca enquanto ele assentia com a cabeça, não parecendo muito atormentado pela ideia. Bom.

-Aconteceu alguma coisa? - Ele me perguntou.

-Não. - Respondi de imediato, mas pensei um pouco logo em seguida, pressionando a língua por dentro da bochecha enquanto me apoiava na grade também, virado de frente para ele. Já começava a anoitecer e o frio ficava mais forte. - Quer dizer… Talvez, depende. - Passei algum tempo em silêncio, com os lábios entreabertos e os olhos focados no ombro dele, embora eu não enxergasse o que estava à minha frente, visto que minha mente estava em outro lugar. Quando voltei minha atenção ao rosto dele, quase perdi o fôlego pela intensidade daqueles olhos cor de mel me encarando de volta.

-Kyle, o que foi? - Ele perguntou em um tom que quase parecia preocupado, apesar de sua expressão continuar intacta.

-Não foi nada, é só que eu e você não tivemos a chance de conversar depois que… - O que exatamente eu queria dizer? Fechei os olhos, balançando a cabeça de leve, respirando fundo. Inalei um pouco da fumaça do cigarro dele, mas já estava dissipada o bastante para que eu não sentisse nada além do cheiro. - Christophe, eu senti tanto a sua falta. Quando nós não estávamos nos falando, quando eu nem te via mais naquela casa, eu senti tanto a sua falta. E aí você veio me dizer aquelas coisas todas e… E eu não soube direito o que pensar.

Eu fiz uma pausa, esperando que ele dissesse alguma coisa, mas ele apenas segurava o cigarro – esquecendo-se de fumá-lo – e olhava para mim com as pálpebras estreitas, estudando o meu rosto e esperando que eu prosseguisse. Diante do meu silêncio, ele encolheu os ombros, suavizando um pouco a expressão.

-Eu tô aqui. - Foi o que ele me disse. Por alguns segundos, eu franzi a testa e tentei entender o que diabos isso significava. Mas o alívio dentro do meu peito foi imediato. “Não tem porque sentir falta, eu tô aqui. Eu tô aqui por você”, era o que eu enxergava dentro dos olhos dele. Ou o que eu queria enxergar, talvez.

-Eu sei. E eu quero isso. - Respondi. - Eu quero você aqui, eu não quero… Eu não quero ficar longe. Mas eu preciso saber se nós dois conseguimos ser amigos.

A palavra fez com que as sobrancelhas grossas dele se encolhessem e um riso fraco escapou dos seus lábios; eu ri também, contra o meu próprio bom senso, sacudindo a cabeça.

-É sério, Christophe. - Continuei, tocando o braço dele de leve, o sorriso morrendo aos poucos. Ele não olhava pra mim. - Eu preciso saber. Isso tudo é… É difícil pra caralho pro Stan.

-Bom. - Ele finalmente disse, limpando a garganta, virando o tronco de frente para mim antes de esmagar o cigarro na superfície da grade, jogando a bituca lá embaixo. Me encarou diretamente nos olhos antes de continuar. - Se é difícil pro cara que dorme do teu lado toda noite, imagina pro cara que não.

Sua voz, ao contrário do que possa parecer, era de um tom tão suave que eu nunca havia escutado dele antes. Não era agressivo ou acusatório, era apenas… Honesto. E teria doído muito menos se ele tivesse gritado na minha cara com um machado de novo. Mas não, ele não queria discutir. E talvez eu estivesse inebriado demais com a proximidade para tomar decisões corretas, mas estendi minha mão e toquei a lateral do pescoço dele, as pontas dos meus dedos acariciando o seu maxilar. A textura da pele era tão grosseira, onde a barba voltava a crescer. Ele me olhava com olhos desarmados e curiosidade, sem entender o que eu estava fazendo. Eu também não sabia. Não era malicioso, era apenas… Era apenas carinho.

-Eu vou entender se você quiser ficar longe de mim. - Murmurei, deixando o meu polegar alisar sua pele durante mais alguns segundos, engolindo a saliva, tentando acalmar as batidas do meu próprio coração.

Em resposta, ele se virou por inteiro de frente pra mim, dando um passo à frente para diminuir a distância entre nossos corpos, chegando tão perto que eu podia sentir o calor dele mesmo através das camadas de roupa. Meu instinto foi dar um passo para trás, minha mão soltando o seu pescoço, mas não abaixei o braço, apenas esqueci minha mão ali enquanto Christophe levava ambas as mãos à minha cintura para me segurar exatamente onde eu estava, e durante um segundo, não consegui respirar. Seus olhos continuavam presos nos meus. Eu pude sentir seu gogó se movendo conforme ele engolia a saliva em uma demonstração frágil de nervosismo, mas suas mãos e seu olhar eram tão firmes… E ele aproximou o rosto do meu, de forma que sua testa tocasse a minha. Eu apenas fechei os olhos. Sentia sua respiração quente em minha pele, e por algum motivo, não era ameaçador. Ele me abraçava. E eu, lentamente, deixei que minhas mãos voltassem ao seu pescoço, segurando-o perto de mim.

-Você o ama? - Ele sussurrou tão perto da minha boca, mas não perto o suficiente para que eu tivesse receio de que ele me beijasse. Não estávamos totalmente colados, ainda havia uma hesitação presente. Eu assenti devagar com a cabeça.

-Amo, Christophe.

Ele levou alguns instantes para afastar o rosto, e perder o calor da sua testa na minha foi horrível, mas eu estava distraído demais pelos seus olhos sobre mim. Eu podia sentir o quão triste a minha expressão era, porque tentava lutar contra aquela melancolia o tempo inteiro, mas ela simplesmente transbordava de mim. Ele, ao contrário, parecia tão resignado que eu me sentia pior. E, apesar disso tudo, ainda era confortável tê-lo assim comigo. Ele umedeceu os lábios; eu podia sentir seus dedos se movendo por cima do meu casaco grosso, acariciando a minha cintura e a parte inferior das minhas costas. E eu desejei com todas as forças que ele pusesse as mãos por dentro da minha roupa, sem pedir permissão, que ele apenas…

-Nós podemos ser amigos. - Ele respondeu finalmente.

Meu coração pulsava tão forte que eu podia senti-lo nos meus próprios ouvidos. Respirei fundo, meus lábios permanecendo entreabertos, um tanto trêmulos. Ele tirou as mãos de mim, mas trouxe uma delas ao meu rosto e tocou em volta do corte em meu rosto, os olhos parecendo tão repletos de um misto entre culpa e orgulho.

-Ou alguma coisa parecida com isso. - Sussurrei em resposta, oferecendo um sorriso triste tão sutil que quase não apareceu, mas Christophe pôde vê-lo. E o retribuiu, embora o seu sorriso tenha sido meio de canto, sem jeito.

-É. - Ele respondeu, assentindo, afastando a mão do meu rosto.

Só depois que Christophe colocou as mãos nos bolsos e deu alguns passos para trás, caminhando em direção ao seu quarto, que eu percebi a presença de Standish varrendo o pátio lá embaixo, próximo à grande árvore seca. Ele estava olhando para mim. Ergueu a mão em um aceno. Eu retribuí, tentando não parecer inquieto pela presença dele. Mas eu estava.



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