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História Liberté - O Confronto


Escrita por: caulaty

Capítulo 37 - O Confronto


10 de janeiro de 3645

 

O silêncio era ensurdecedor. Parecia antinatural que uma rua tão cheia de gente fosse tão silenciosa, mas durante alguns segundos, foi. Olhei para cima. Um pingo gelado caiu sobre a minha testa e eu fechei os olhos em resposta. O céu era escuro, apesar de não ser nem quatro da tarde ainda. Apesar das nuvens negras e carregadas que se moviam lentamente através da grossa camada de poluição, com alguns raios de claridade cortando os espaços como uma mensagem divina, estava bastante claro. Os prédios de Nova York eram tão altos que não dava para ver o fim, cercando os dois lados da rua estreita. Eram construções antigas, prédios de tijolos e cimento que arranhavam o céu, mas a maioria não era mais abrigo de empresas ou residências, como havia sido há alguns anos. Muitos tinham os vidros das janelas quebrados, alguns estavam literalmente em ruínas, onde crescia limo. Muitos estavam pichados de todo tipo de coisa, desde obscenidades, pênis, referências a drogas, leões coloridos, a cara do presidente, Terrance e Phillip, “morte aos traidores”, tudo. Olhando para trás ou para frente, o mar de pessoas também não tinha fim. Foi talvez uma das experiências mais claustrofóbicas da minha vida.

Eu não podia enxergar o rosto daquelas pessoas e elas não podiam enxergar o meu. Eu sabia onde alguns dos meus estavam; Stan logo atrás de mim, Kenny um pouco à frente, Cartman ao meu lado, Clyde e Craig à direita, atrás de Annie. Wendy e Bebe, eu tinha visto em algum momento. Não sabia onde estavam. E mais milhares de desconhecidos cujos rostos eram cobertos por bandanas, lenços, cachecóis, máscaras, que usavam capuz, chapéu, faixas amarradas na cabeça, luvas, e seguravam todos os tipos de instrumentos. Ninguém dizia nada, ninguém se movia.

De repente, aquele som familiar cortou meus ouvidos, o da marcha. A marcha dos sapadores de ferro. Eu não podia identificar por qual lado eles vinham, talvez porque fosse pelos dois, o início e o fim da rua. Suguei o ar pelo nariz e pela boca através da bandana preta amarrada que cobria metade do meu rosto e apertei o cabo da marreta na mão direita. Eu sentia medo. É lógico que sentia. Mas eu sentia raiva, acima de qualquer coisa. Talvez fosse a energia daquelas pessoas que eu nem mesmo conhecia, que vieram de outras partes do país, talvez até do mundo, mas que estavam ali comigo. E eu estava ali por elas. A claustrofobia também gerava uma sensação tão estranha de segurança, de proteção. Eu podia sentir o volume rígido da arma guardada no cós da minha calça. Não sei como tive a sorte de chegar até aquele momento da minha vida sem nunca ter diretamente tirado a vida de outro ser humano. Respirei fundo, fechando os olhos ao sentir outros pingos de chuva tocando o pouco da minha pele que estava exposto.

“Eu posso morrer hoje”, é algo que se pensa muito na primeira, na segunda, na terceira vez que se faz o que estávamos fazendo. As pessoas diziam que os sapadores queriam te pegar vivo, mas ainda assim, era na morte que eu pensava. Usei o capuz para cobrir a cabeça quando senti os pingos gelados tocando diretamente a minha cabeça raspada. Eu aprenderia a me acostumar com aquela sensação. Meu estômago doía, mas eu não dava atenção, porque é para isso que eu estava ali. Era por isso que eu havia deixado minha família e minha vida mundana para trás, para estar ali. Cercado pelos companheiros. As palavras dos góticos continuavam ecoando em meu cérebro, as coisas que eles disseram em nossa primeira conversa. Que os sapadores sabem que todos nós vamos para as ruas dispostos a morrer. Por algum motivo, isso me fez sentir mais forte. Talvez tenha sido a primeira vez que eu me perguntei se os sapadores humanos também estariam com medo. De onde nós vínhamos, em South Park, os sapadores eram uma força militar que nenhum estudante tinha qualquer condição de enfrentar, mas aqui, nós éramos muitos. E não tínhamos quase nada a perder. E sabíamos atirar.

Os sapadores humanos provavelmente também saíram de casa naquela manhã se perguntando se voltariam para suas famílias. Eles também estariam lá para lutar pelo que acreditavam? Ou apenas porque era o trabalho que foram convocados a fazer? Porque eles também precisavam de comida na mesa e um teto sobre suas cabeças? Eu me perguntava.

Mas então, veio o primeiro estouro. Eu não sabia dizer de qual lado, se fomos nós ou os sapadores que atiraram o primeiro rojão, o primeiro molotov, o que quer que tenha produzido aquele som, o que quer que tenha causado a primeira chama. Mas não importava. Isso colocou as coisas em movimento.

Era muito diferente do dia do aniversário do Presidente, minha primeira referência de confronto de rua, que nem poderia ser classificado de tal forma, porque o propósito era correr e se esconder enquanto as coisas aconteciam, a multidão desesperada corria. Mas ali, ninguém parecia desesperado, ninguém tinha intenção de se esconder, e as coisas aconteceriam pelas nossas próprias mãos. Começamos a nos mover em conjunto, como uma célula imensa e inseparável, porque o objetivo maior dos sapadores era sempre dispersar. Pegar grupos pequenos, isolados. Você se sentia invencível no meio de tanta gente.

Meus níveis de adrenalina subiram tão rapidamente que aquelas três horas se passaram condensadas em dez minutos para mim. Eu não podia entender a totalidade disso quando Michael descrevera, mas estando lá, sentindo o suor se formar em minha pele, a energia ao redor, a força que os rebeldes ganhavam ao avançar para cima dos sapadores, tudo isso me fez acreditar que havia algo real acontecendo. Não é que eu acreditasse mais na causa do que antes, eu apenas nunca senti na pele o que era poder agir contra a força militar opressiva até aquele momento. Os sapadores não eram a força contra a qual nós lutávamos, eles eram apenas resultado disso. Eu podia entender perfeitamente. Marchar sobre aqueles sapadores, aqueles homens de ferro, não mudaria nada no balanço de poder que havia em nossa nação, mas tornava concreto o que parecia tão figurativo antes. Não havia como ter medo dentro daquela multidão de pessoas que provavelmente vinham de um lugar muito mais escasso do que o meu, e isso nem sequer importava, porque “eu” e “você” deixavam de existir quando nós cobríamos o rosto e nos reuníamos na rua. Havia um helicóptero sobre nós, eu podia ouvir a hélice sobre os estouros na terra.

Eles aconselhavam que nós nos mantivéssemos sempre próximos daqueles que conhecíamos, mas era quase impossível quando a multidão começava a avançar com mais velocidade e as pessoas começavam a correr pelas laterais com os tacos, as garrafas prontas para serem incendiadas, e eu podia entender porque minha mãe acreditava que os rebeldes eram animais. Não havia nada nesse mundo que se comparasse à raiva daquelas pessoas, à força animalesca com que elas entregavam tudo que tinham à destruição da ordem, à proteção dos companheiros, à queda do Presidente. Muitos de nós precisavam ficar no centro para segurar aquela barreira de corpos unidos que garantiam a sequência da marcha, ao mesmo tempo em que outros subiam pelas latas de lixo encostadas nos prédios para deixar pichações em uma velocidade extraordinária. Eu reconheci Kenny entre eles, pela roupa que ele usava.

Quando a célula alcançou a praça, eu já estava enlouquecido o suficiente para não me assustar com tudo o que se seguiu. A praça era ampla, mais propensa à dispersão. Eles esperaram até que chegássemos lá, um espaço amplo sem saídas imediatas, para encurralar os ratos. A praça era cercada por construções gigantescas que se pareciam com castelos conservados, com colunas e paredes de pedra. Havia também uma igreja imensa. E, bem no centro, havia uma estátua imensa de um ser que não se parecia nem com um homem ou mulher, que usava um manto, tinha cabelos compridos e asas gigantescas. Ali, nós havíamos atingido o centro histórico, um lugar de circulação pública, onde os sapadores não podiam nos deixar chegar. O som do helicóptero se tornava mais alto, eu quase podia sentir a rajada de vento da hélice, mas ele continuava bastante alto. Lançava uma luz cegante sobre nós. As pessoas começaram a se separar, e eu entendi que era o momento. Procurei Stan com os olhos, mas ignorei a aflição de não encontrá-lo. Eu não enxergava direito os sapadores de onde estava, pelo menos não até que as pessoas começassem a correr para lados distintos, fugindo de sons de estouro seguidos e disparos de armas. Eu não pensava racionalmente, cada célula do meu corpo pulsava em instinto de sobrevivência. É por isso que nós nos parecemos com animais, porque nós somos.

Eu não estava mais assustado porque não havia espaço em mim para isso. Especialmente quando veio o gás lacrimogênio. Era disso que as pessoas fugiam, eu só entendi quando já era tarde demais. Mas é curioso. O corpo entra em um estado de fragilidade, e talvez os sapadores esperassem que aquilo fosse nos deixar com medo, mas a única coisa que provocou em mim foi uma cegueira momentânea e uma vontade incontrolável de quebrar alguma coisa, porque aquela raiva toda pulsando dentro de mim precisava ir para algum lugar. Não era uma raiva infantil, inconsequente, era o acúmulo de todas as merdas que todos nós havíamos passado todos os dias. Era raiva da cicatriz no meu rosto, da desgraçada da minha mãe que me arrancou o meu irmão e me criou para viver com medo, era raiva dos imbecis ignorantes aterrorizados que pisotearam Tweek, dos sapadores covardes filhos da puta que arrancaram os olhos de Butters, raiva pela impotência, pelos amigos que desapareceram, pela fome, pelo frio, por todas as vezes que eu fui covarde. Era com essas coisas todas pulsando em meu corpo que eu apertava o cabo da marreta com toda a força que havia em minhas mãos e estourava a vitrine do banco que havia sido construído dentro daquele prédio antigo que havia estado em pé desde os anos 2000. Voaram cacos minúsculos de vidro grosso no meu rosto, por todo o chão, e eu pisava neles com o coturno preto, sentindo-os sendo esmagados sob meu peso. O som do estouro do vidro era estridente e continuava preenchendo meus ouvidos depois. Havia mais pelo menos dez pessoas ao meu redor, fazendo exatamente a mesma coisa, alguns pulando o vidro quebrado sem se importar com o sangue que deixaram para trás, correndo para quebrar a vitrine e sair pelo outro lado. Mas eu corri antes que os sapadores se aproximassem com os rifles apontados na nossa direção. Eram armas tranquilizantes. Eles atiravam de longe.

Mas chegou num ponto em que correr se tornou impossível. Eu não enxergava quase nada à minha frente, havia pessoas trombando contra o meu corpo e se agarrando a mim, a camada de gás ao nosso redor parecendo cada vez mais grossa. Comecei a tossir, meu corpo pendendo para frente, meus passos se tornando cada vez mais bambos. Havia tiros ao meu redor, tiros de verdade, aquele som estonteante e ininterrupto que deixava tudo ainda mais turvo. Ao longe, eu ainda podia ver – por trás das lágrimas que se formavam em meus olhos para combater a ardência – a silhueta da grande estátua e… Christophe. Eu tinha quase certeza de que era ele. Estava de pé sobre a base da estátua – havia outras pessoas que a escalavam, atirando de cima – parecendo completamente imundo, a regata branca suja e a camisa que ele antes tinha por cima estava agora amarrada no rosto. Gregory também estava lá em cima. Eu podia ouvir sua voz ao longe gritando:

-Não se separem! Fiquem juntos!

Christophe tinha alguma coisa na mão. Eu só entendi o que era quando ele ergueu o braço forte em direção ao paredão de sapadores de ferro que se aproximava, atirando o coquetel molotov de forma certeira, grunhindo enquanto o fazia. Eu tive quase certeza de que ele erguia os dedos do meio enquanto gritava:

-Se fodam, seus merdas!

Eu senti uma mão firme me puxar, o que me deixou verdadeiramente desesperado durante alguns segundos, erguendo a marreta, preparado para dar na cara do sapador desgraçado até perceber que a mão pertencia a um rosto familiar.

-Sou eu, sou eu. - Michael disse, me puxando entre os corpos para um ponto mais afastado ao perceber a retaliação dos sapadores com rojões explosivos no meio da praça, ao mesmo tempo em que ele pressionava um pano molhado contra o meu rosto, em especial pela região do meu nariz e boca. Respirar era simplesmente horrível. O cheiro daquele líquido era nojento, mas o alívio veio em poucos segundos. Ele também pressionou sobre meus olhos, com um braço em torno dos meus ombros. - Te machucaram? - Ele perguntou.

Eu sacudi a cabeça negativamente, conseguindo ficar em pé sozinho com mais facilidade agora. Segurei o pano com a minha própria mão para que ele não precisasse, respirando fundo dentro dele para tomar fôlego, conseguindo enxergar um pouco melhor.

-Merda. - Michael disse. Virei minha cabeça em direção ao que ele olhava, percebendo um grupo de sapadores humanos segurando pessoas que se debatiam no chão. Havia pessoas caídas, as roupas brancas dos sapadores manchadas de vermelho, assim como corpos de rebeldes que não se moviam. Michael e eu corremos entre as pessoas em direção aos corpos, mas outros também já verificavam quem podia ser carregado e quem não havia sobrevivido.

Estávamos mais próximos aos sapadores agora, na linha de frente. Se eu tivesse que explicar racionalmente o que aconteceu em seguida, não acho que conseguiria. Foi uma resposta imediata. Quando senti as mãos enluvadas de um homem de branco tocando minhas costas, e percebi de imediato a diferença entre aquele toque e o toque de Michael ou qualquer outro rebelde que tinha intenção de ajudar, minhas mãos responderam por si mesmas. Eu nem pude controlá-las. Levei a mão direita ao cabo da marreta que já segurava com a esquerda e me virei com toda a força que eu tinha, mais ainda do que a força que usei para quebrar a merda da vitrine, colidindo a cabeça da marreta direto contra a cabeça do desgraçado. Voaram dentes de sua boca, ou sangue, ou os dois. Ele caiu duro, com metade da cara coberta de sangue, remexendo-se. Não estava morto só da pancada. E se ele tivesse se levantado, eu não sei o que teria feito, porque a capacidade de resposta do meu próprio corpo havia me deixado em choque. Minhas mãos tremiam. Outro sapador a cinco metros foi sacar a arma – não a tranquilizante, a arma de abater os cães – em resposta, mas ele caiu com um tiro antes que conseguisse alcançá-la. Quando virei a cabeça em direção ao disparo, meus olhos encontraram os de Stan. Ele segurava o revólver com as duas mãos firmes, me encarando. Apesar de boa parte do seu rosto estar coberta pela banda azul escuro, eu conhecia sua expressão bem o suficiente para saber que ele me perguntava com os olhos se eu estava bem. E respirei fundo, tão aliviado.

 

Nós resistimos até os reforços chegarem.

Uma das coisas mais lindas que eu veria – e faria – em toda a minha vida aconteceu naquele dia. Arrancamos uma menina dos braços de um sapador que a arrastava para prendê-la, pelo menos vinte pessoas. Eu não a conhecia, ela não era da nossa unidade, mas isso pouco importava. Chegou a determinado ponto em que os tiros, as vidraças estourando, os rojões e bombas de gás e gritos não eram mais ensurdecedores. Ainda que a situação ficasse gradativamente mais tensa, e não houvesse um consenso sobre quando seria a hora de tomar as rotas de fuga, eu me sentia mais em controle da minha própria vida a cada segundo que se passava. Não mais a mercê de um Presidente tirano, de uma mãe opressora, de ninguém.

O caminho para casa foi mais tenso do que o confronto em si, se você quer saber. Mas nós havíamos conseguido reunir boa parte dos nossos. Todos nós havíamos estudado as mesmas rotas, a maioria optou pelo subterrâneo porque era mais seguro. Christophe foi na frente a maior parte do caminho, guiando com a propriedade de um nova-iorquino nativo. Ele estava coberto de sujeira e sangue quando nos encontramos, mas não parecia ser seu sangue, o que me causou um alívio maior do que eu gostaria de admitir. Para a minha surpresa, Gregory também estava imundo e ensanguentado. Eu nunca o tinha visto em um estado tão deplorável, e mesmo assim, o filho da puta conseguia parecer tão elegante.

Quando chegamos à base para a contagem, ouvi Gregory e Henrietta conversando sobre conhecidos que não haviam voltado, mas até onde eu sabia, todas as pessoas que me importavam (e com isso, levo em conta rostos familiares cujos nomes eu não me lembrava também) estavam de volta. Alguns, com ferimentos graves. Mas nenhuma das pessoas mais próximas a mim. Henrietta tinha o cabelo ensanguentado porque abriu a cabeça quando um sapador a jogou no chão, alguns hematomas, mas apenas isso. Michael havia queimado a mão. Christophe parecia bem arranhado, mas nada preocupante, a ponto de ele insistir que não precisava de tratamento. Ele era inacreditável.

 

A vida parecia estranhamente normal depois que a adrenalina baixou. Nós jantamos juntos, conversando sobre o confronto de forma mais empolgada do que deveríamos, mas era difícil não se deixar contaminar. Meu corpo estava dolorido, minha garganta ainda estava horrivelmente irritada e meus olhos um pouco inchados pelo gás, mas eu me sentia intocável. Era uma idiotice tremenda da minha parte, mas a coisa toda era intoxicante demais. Depois do jantar, eu fui sozinho para o quarto. Era o turno de Stan de limpar a cozinha. Kenny perguntou se eu queria companhia, parecendo igualmente inquieto, mas eu recusei.

Fui para o quarto que já estava aprendendo a enxergar como minha casa. Enchi a banheira de água quente e passei quarenta minutos deitado lá dentro, esquecendo-me do mundo e deixando que o mundo se esquecesse de mim. O silêncio era tudo de que eu precisava para lavar todo o peso daquele dia. Era engraçado como as coisas relativas à revolução se tornavam cada vez menos assustadoras. Em outras circunstâncias, nessa mesma época a um ano atrás, eu teria passado a noite completamente perturbado pelas vidas perdidas bem à minha frente. Pelo homem que eu havia machucado. Encarei minhas próprias mãos por dentro da água quente, erguendo-as até que emergissem da água, pingando. Umedeci os lábios e respirei fundo, deitando a cabeça para trás. Eu não me sentia mais insensível. Era apenas diferente.

Depois do banho, eu tentei encontrar alguma coisa na pilha de livros que Standish havia gentilmente me oferecido. Uma das coisas que mais me havia chateado com a nossa fuga repentina da casa na floresta em South Park foi o fato de que meus livros todos ficaram para trás. Havia um exemplar de Os Miseráveis, uma das únicas coisas que pedi para que Kenny me trouxesse de uma das suas visitas ao nosso apartamento, mas eu o perdi na fuga. Não houve tempo de carregar nada que não fosse essencial. Então, Standish apareceu na nossa porta uma manhã com um sorriso largo e uma pilha dos seus livros, dizendo “ouvi dizer que você gosta de ler”. Eu não sabia ao certo de onde ele havia tirado essa informação, mas também não perguntei.

Havia algumas coisas interessantes naquela pilha. Para essa noite, tentei retomar a leitura do Conde de Monte Cristo, um dos meus livros preferidos. Fiquei tão contente por encontrá-lo dentro os livros de Standish. Mas eu não conseguia me concentrar. Passei meia hora deitado na cama com o livro, apenas a luz do abajur acesa, mas meus olhos escaneavam as palavras sem absorvê-las, minha mente sempre divagava para outra coisa. Olhei o relógio. Eram dez da noite, eu sabia que Stan não voltaria antes da meia-noite. Fechei o livro, tomando o cuidado de marcar em qual página parei, e fui encontrar meus sapatos ao lado da porta.

 

Christophe residia no mesmo quarto de quando morou lá pela primeira vez, anos antes. Então, era um pouco afastado do bloco onde o nosso grupo estava morando. Eu sentia frio nas pernas pela brisa gelada que soprava contra o tecido fino da calça, mas meu tronco estava bem aquecido pelo casaco grosso. Eu escondia as mãos por dentro dele para tentar aquecê-las com o calor do meu próprio corpo enquanto atravessava o pátio de pedra, fungando pela coriza que o frio provocava. Eu sentia meu próprio rosto corando para combater o frio. Pisquei algumas vezes ao parar em frente à porta que tinha o número “212” gravado. Era um dos quartos no andar debaixo. Eu podia ver luz através da janela, o que indicava que ele provavelmente estava lá dentro. Bati na porta duas vezes com um punho fechado. Eu podia ouvir vozes vindo lá de dentro, mas não identificava o que diziam. Por um instante, me ocorreu a ideia de voltar para o quarto e fingir que aquilo não tinha acontecido, mas antes que eu pudesse dar um passo para trás, a porta se abriu bruscamente. Não foi Christophe que atendeu.

-Pete? - Perguntei, franzindo a testa instintivamente.

Ele me encarou por um instante com aqueles olhos corriqueiros de peixe morto, nenhuma alteração neles, sua mão ainda segurando a maçaneta. Estava sem camisa, o cabelo bagunçado. Havia uma tatuagem tribal preta na lateral do seu tronco, enorme, e ele tinha piercing nos dois mamilos.

-Ah. E aí, Kyle. - Ele disse casualmente, estremecendo pelo frio que entrava pela porta, segurando a camisa preta desabotoada nas duas mãos, tentando abri-la para conseguir passar os braços por dentro das mangas. - Que frio da porra. - Resmungou, dando um passo à frente. Eu dei espaço para que ele saísse pela porta, virando para trás. - Pode entrar, eu já tava indo embora. Até mais, Toupeira. - Ele disse em uma voz mais alta para ser ouvido de dentro do quarto, antes de sair caminhando pelo pátio.

Eu passei alguns segundos parado em frente à porta, observando Pete sair andando com pressa por conta do frio – ou talvez qualquer outro motivo – fechando os botões da camisa enquanto andava. Então, minha atenção se voltou para dentro do quarto. Coloquei um pé hesitante no pequeno degrau da porta, embora o meu bom senso me dissesse constantemente que isso era uma ideia ruim. Uma ideia de merda. Mas nada que o lado esquerdo do meu cérebro pensasse seria capaz de me fazer dar meia volta. Eu entrei cautelosamente, como se o meu corpo se movesse por conta própria. Fechei a porta atrás de mim com um empurrão suave, sem tocar na maçaneta, olhando em volta.

Christophe não tentou esconder a expressão confusa quando me viu. Ele não vestia absolutamente nada. Estava próximo ao sofá, a pele do peito, ombros, pescoço e rosto coberta por uma camada fina de suor. Eu já o tinha visto com muita pele exposta. Fui atingido pela lembrança dele arrancando a camisa para estancar o sangue do meu rosto quando eu fui atingido por aquela merda de garrafa, mas todas as vezes que eu vi seu corpo, eram em condições perigosas, em que as nossas vidas corriam algum tipo de risco. Eu nunca tive tempo para enxergá-lo de verdade, e agora, eu tinha uma visão ampla do seu corpo inteiro. A mesma parte do meu cérebro que me mandava sair dali também me mandava tirar os olhos dele, mas outra parte me dizia que eu provavelmente nunca mais teria uma chance como aquela. Então, eu olhei. Olhei aquele pau semirrígido e tão rosado na glande, as veias, o tamanho, o saco dele. Não encarei por tempo o suficiente para enxergar detalhes, porque logo, meus olhos desceram pelas pernas dele, os pelos castanhos que cobriam a virilha, as coxas, as panturrilhas dele. Descendo o olhar, eu encarei o chão, virando o rosto de lado para encarar qualquer outra coisa.

Era difícil explicar o que acontecia dentro de mim, porque eu havia pensando tanto naquele corpo antes, naquele peito largo e no abdômen dele, na força daqueles braços, nos músculos tão bem trabalhados, mas agora, aquela imagem vinha misturada a um outro tipo de ardência. Eu respirava diferente, e não era por excitação, ou não só. Se ele percebeu tudo isso, não demonstrou, porque sua voz apenas parecia preocupada.

-Kyle? O que você…? Você tá bem? - Ele perguntou, não parecendo minimamente constrangido pelo fato de estar nu, distraído demais com o que poderia ter me levado ao quarto dele. - Aconteceu alguma coisa?

Eu não respondi. Ou bem, respondi, mas não de forma verbal. Fiz que não com a cabeça, sem saber ao certo qual pergunta eu estava respondendo, esfregando o rosto olhar na direção dele. Senti dor no estômago, isso deve ter transparecido na minha expressão. Eu senti que, se movesse um músculo sequer, eu faria alguma coisa imbecil. Minhas mãos tremiam. Christophe não disse nada por alguns instantes, mas eu podia senti-lo se movendo e alcançando o jeans no chão para se vestir. Quando voltei meu rosto em direção a ele, Christophe estava terminando de colocar a calça sem cueca, secando o suor do rosto com a mão e me encarando em expectativa de que eu explicasse o que eu fazia ali.

-Bom, agora eu entendo do que você sentia tanta falta em Nova York. - As palavras deixaram a minha boca antes que eu tivesse a chance de ponderar sobre elas, mas eu estaria mentindo se dissesse que me arrependi ao falar. Não, não havia arrependimento, não de imediato. Toda a minha energia estava concentrada em sentir raiva, sentir nojo, sentir dor. Não havia espaço para mais nada.

Nem mesmo quando Christophe me encarou parecendo genuinamente surpreso. Ele sacudiu a cabeça, deixando que um sorriso se formasse em seus lábios, o que só me encheu de vontade de literalmente esmagar a cara dele com alguma coisa pesada.

-Pete? - Ele perguntou, cruzando os braços, passando a língua pelo lábio superior. - É sério?

-É, claro que é. E eu acho ótimo. De verdade, eu acho lindo. Vocês já eram apaixonadinhos antes de você ir embora ou isso é uma coisa nova?

Christophe me encarava como se eu estivesse falando japonês com ele. Ou talvez ele entendesse exatamente o que eu estava dizendo, mas tinha dificuldade de acreditar. Separou os lábios como se quisesse dizer alguma coisa, mas durante alguns segundos, nenhum som saiu. Ele deu alguns passos na minha direção, descruzando os braços, mas eu andei para trás para manter a distância exatamente a mesma, trombando em uma mesinha de canto com um abajur em cima.

-Você… Kyle, a gente só fode. Ninguém é apaixonadinho, olha a merda que você tá dizendo.

-Ah, entendi. E você “só fode” com o Michael também? Com a Henrietta?

-E que merda você tem a ver com isso?! Deixa de ser louco, caralho, eu não te devo porra nenhuma.

-Outro dia mesmo você tava falando manso comigo, me perguntando se eu amo o Stan, pegando em mim como se… - A essa altura, eu já estava gritando. E ele já estava gritando. Christophe veio trotando na minha direção como um cavalo, sem chegar perto demais, apenas o suficiente para ser intimidador.

-E você me disse o quê?! Que você quer ser meu amiguinho. Isso é ser amiguinho, Kyle, isso é o que você quis.

-Eu não quero ver quem você come, caralho!

-E eu não quero ver você se esfregando com o frouxo do seu namorado na minha cara, mas eu não tenho escolha, tenho?! Então para de ser um viadinho chorão, aceita a escolha que você fez!

Podia ser a adrenalina do confronto de rua que ainda corria em meu corpo, podia ser qualquer outra força que sempre me puxava para aquele homem, mas naquele momento, eu tinha apenas duas opções. Ou eu me atirava contra ele, segurava seu rosto com minhas mãos que ardiam para tocá-lo e colidia meus lábios nos dele com toda a necessidade que transbordava, ou… Ou eu fazia o que fiz em seguida; virei para agarrar o abajur que não estava conectado à tomada e apenas o lancei com toda força em meu braço para que ele colidisse contra a parede oposta, derrubando um quadro que estava ali pendurado, centenas de pedaços voando pelo chão. É impossível explicar, mas exatamente como quebrar aquela vidraça, como dar com a marreta no rosto daquele sapador, o som do impacto fez com que eu conseguisse respirar novamente. Eu me sentia tonto. Apoiei a mão na beirada da mesa de canto, fechando os olhos, mas não tive muito tempo antes que Christophe me pegasse pela nuca, um sorriso amargo no rosto. Eu levei as duas mãos ao peito dele para tentar empurrá-lo, mas ele era grande demais.

-É assim que você quer, é? - Ele murmurou entredentes, sem fôlego pela força que fazia para me segurar. - Você quer gritar, quebrar coisas, é assim que você consegue as coisas? Eu não tenho medo de berro, eu não tenho medo de coisa quebrando. - Ele disse quase rindo, mas seus olhos continuavam sérios, carregados de rancor, enquanto ele me soltava por um instante para alcançar um cinzeiro de vidro na mesinha atrás de mim, estourando-o com força no chão, muito próximo de nós. Talvez aquilo tenha me trazido de volta à realidade, porque quando ele voltou a me segurar pela parte de trás da cabeça, a mão puxando os meus cabelos, eu voltei a sentir algo parecido com medo. - Eu não sou teu cachorro. Eu não vou ficar sentado esperando você decidir que esse teu namoro de merda já era.

Eu não sabia se eu que tentava andar para trás ou se ele que me empurrava, mas minhas costas batiam contra a mesinha com força o suficiente para fazer barulho. Eu tinha o rosto virado de lado, a respiração ofegante, os olhos entreabertos, sentindo o calor da pele nua do tronco dele, o hálito e o cheiro da sua pele, o ar quente que deixava sua boca e narinas quando ele falava tão perto de mim. Não havia medo na minha expressão, mas eu voltava a me conter com toda a força que eu tinha, porque se eu fizesse qualquer coisa diferente disso, eu não aguentaria. Não aguentaria não tocá-lo. Era isso que a proximidade me causava, pavor de que olhar para ele seria suficiente para me empurrar quando eu já estava à beira do precipício. Era isso que me fazia apertar os olhos.

-Me solta. - Murmurei baixo, tirando minhas mãos do corpo dele, sem tentar empurrá-lo. Porque tocar aquele peito, sentir seu coração palpitando e a carne firme em minhas palmas, tudo isso era demais pra aguentar.

Ele não me soltou, mas o aperto de sua mão ficou um pouco mais suave, transformando-se em outra coisa. Era quase uma carícia grosseira, quando ele deslizou a palma até a minha nuca para se certificar de que eu continuaria bem próximo. Meu maxilar ficou mais tenso.

-Quem você acha que eu queria na minha cama? - Ele perguntou baixinho. Por impulso, abri os olhos, virando o rosto sutilmente para me colocar de frente ao dele, mas ele estava perto demais, de forma que, se eu me movesse mais alguns centímetros, os meus lábios talvez roçassem nos dele. Então, continuei estático, apenas encarando aqueles olhos brilhantes, as pupilas dilatadas. - É isso que você precisa ouvir? Que se foda quem eu como, que se foda quem eu beijo, você sabe… - A voz dele soava tão macia agora, tão honesta. A sua outra mão fez caminho até o meio das minhas costas, deslizando para baixo bem devagar por dentro do meu casaco. - Eu daria qualquer merda pra te esquecer.

-Cala a boca. - Respondi assim que ele pressionou o quadril contra o meu, ainda que de forma sutil. Talvez ele nem tenha percebido que o fez. Dessa vez, quando usei as duas mãos para empurrá-lo, ele se afastou de mim. Eu precisei encostar uma mão na parede para conseguir andar até a porta, pisando nos cacos de vidro do cinzeiro quebrado, sem olhar para trás ao deixar o quarto, adentrando o ar gelado que havia lá fora e roubava o calor de Christophe do meu corpo. Era uma forma de alívio.



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