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História Liberté - A Criança


Escrita por: caulaty

Notas do Autor


Esse é um capítulo de monólogos longos. Tinha gente precisando falar.

Capítulo 38 - A Criança


15 de janeiro de 3645

 

Não demorou muito para que nós nos sentíssemos em casa naquele lugar. Em duas semanas, era como se nós tivéssemos morado ali a vida inteira. Tínhamos uma rotina rotatória de trabalho que nos permitia conhecer boa parte dos companheiros. Era bom. Tirava minha mente das coisas nas quais eu não queria pensar. Não havia tempo ocioso. Uma coisa interessante era o fato de que, durante os quinze dias em que estávamos ali, já houve um olhar especial para a função que cada um melhor desempenhava. Eu desenvolvi um interesse pela parte da engenharia. Manuseio, organização e limpeza de armas, construção de dispositivos, de bombas, como desarmá-las; tecnologia não chegava mais à população civil, não depois da Terceira Grande Guerra, não depois que isso provou ser perigoso para aqueles que tinham interesse em manter uma população burra e desinformada. Então, eu estava pela primeira vez entrando em contato com objetos que só conhecia na teoria e seu funcionamento. Eles davam aulas, os Monarcas. Educação era uma parte importante.

Eu estava sentado a uma das mesas de inox do refeitório. O jantar já havia terminado há quase vinte minutos, mas continuei sentado enquanto a mesa se esvaziava e as pessoas do turno da limpeza do jantar recolhiam os pratos. Estava focado demais para perceber o movimento em volta. Michael havia me trazido três livros sobre construção de eletrodomésticos, porque esse era o primeiro passo para a construção de bombas. Essa era a sua área de interesse. Ele me ajudava muito nas oficinas e durante o trabalho, era uma das pessoas com quem eu mais gostava de passar tempo. Ele parecia investido em me fazer entender os princípios básicos. Era difícil perceber qualquer coisa que ele sentia pela sua expressão, porque Michael basicamente não tinha, mas ainda assim, ele parecia empolgado pela perspectiva de ensinar alguém. Dois dias antes, ele havia aparecido na porta do meu quarto com uma torradeira. “Desmonta e monta de novo, quantas vezes você conseguir.” Foi uma das instruções mais inesperadas que eu já recebi, mas ele provavelmente sabia que eu ficaria obcecado pela torradeira, como também estava, agora, obcecado pelos livros. Passei o jantar inteiro lendo e fazendo anotações, quebrando a cabeça para entender as coisas que não faziam o menor sentido, esquecendo-me completamente de comer.

Ao final, Stan se levantou também, me deu um beijo na cabeça e foi para o quarto, exausto de trabalhar o dia inteiro no depósito, um trabalho que consistia em força braçal e concentração. Nós estávamos “bem”, na medida do possível, mas ele sabia que havia alguma coisa estranha, fora de lugar. Depois do que Kenny e Gregory disseram no dia em que raspamos a minha cabeça, eu tentei perguntar como Stan se sentia sobre o fato de Christophe e eu estarmos nos falando novamente. Eu percebia que era incômodo, percebia isso em seus olhos quando Christophe passava a mão pela minha cabeça, porque mesmo que não houvesse nada inapropriado acontecendo, aquilo ardia. Ardia em todos nós, de formas diferentes. Mas Stan não quis discutir sobre isso de novo, o que foi um alívio. Estávamos todos cansados.

“Esquece isso, Kyle. Ele tá aqui, nós estamos aqui, a gente tem que conviver”, foi assim que ele iniciou e encerrou o assunto. Isso aconteceu, é claro, antes do pequeno incidente com Christophe depois do confronto de rua. Quando eu ainda estava otimista de que poderia tê-lo na minha vida e tudo ficaria bem. Stan não estava satisfeito com isso, mas parecia bastante resignado. Ele apenas não queria mais brigar. É certo que ignorar o problema não passava de uma solução imbecil, um remendo malfeito que nós fizemos para continuar equilibrando o balanço delicado do nosso relacionamento. Mas eu não queria forçá-lo a nada, e para ser honesto, eu também não tinha vontade de repetir as mesmas discussões quando nós tínhamos coisas mais importantes a fazer, coisas que exigiam força e saúde de nós dois. Era por isso que nós nos mantínhamos juntos acima de todas as coisas, porque precisávamos um do outro, porque nos alimentávamos, porque nos aquecíamos. Porque éramos melhores amigos. E ele precisava de mim mais do que antes.

Depois do confronto, Stan ficou ainda mais fechado. Passei aquela noite inteira em claro com ele, porque ele não conseguia dormir, mas também não conseguia falar. Vê-lo daquela forma me fazia sentir uma culpa desgraçada, não só pelo fato de que ele matou o primeiro ser humano de sua vida para me proteger, mas também pelo fato de que as escolhas de luta de Stan sempre foram por outra vida, e agora ele estava preso ali, precisando fazer as coisas da forma brutal que ele nunca quis. E ele não reclamava a respeito, mas eu não precisava ouvi-lo dizer que era dilacerante para saber. Eu não tinha certeza de onde ele estaria agora se eu não estivesse na sua vida.

Claro, os Monarcas não obrigavam ninguém a ir aos confrontos, especialmente porque, ali, você era treinado para ser o mais eficiente possível. Eles sabiam que pessoas que não se sentissem prontas para qualquer coisa seriam muito mais um estorvo, um problema a ser resolvido. E outros serviços eram necessários. Mas Stan era bom, bom de verdade, bom demais para não arriscar morrer ao lado dos companheiros, bom demais para não tirar a vida de alguém se isso significa salvar um dos seus. Mesmo que isso o violentasse. Ele teve pesadelos todas as noites durante aquela semana inteira.

E, em meio a tudo isso, eu me pegava ensaiando como caralhos eu pediria desculpas ao Christophe. Nós não nos falamos mais. Nos encontrávamos, é claro, eu o sentia olhando para mim às vezes, como se quisesse dizer alguma coisa, mas eu não conseguia nem mesmo encará-lo de volta, quem dirá conversar. Meu rosto ficava quente, meu estômago revirava, eu sentia um nó grosso na garganta. Ele nunca chegou a se aproximar de mim. Quando nos encontramos nos mesmos lugares durante aquela semana, havia outras pessoas presentes toda vez, o que possibilitava que eu encarasse o chão ou conversasse com outra pessoa para suprimir a vergonha, literalmente ignorando a presença dele. E ele sempre acabava indo embora. Era uma decepção e um alívio. Eu sabia que não poderia fazer esse joguinho idiota pra sempre, mas porra, só a ideia de falar com ele me deixava tão assustado que eu não podia abrir a boca sem medo de vomitar.

Enfim. Por todas essas razões, eu estudava sobre como desmontar uma torradeira como se minha vida dependesse disso.

Algo tirou minha atenção da imagem em preto e branco de como é uma torradeira por dentro, com setas indicativas dos nomes de cada parte. Eu franzi as sobrancelhas e ergui a cabeça devagar, encontrando Standish parado do outro lado da mesa, um joelho sobre o banco, uma mão apoiada na mesa e um sorrisão idiota no rosto. Ele me olhava e ria de forma carinhosa, o que me incomodou. Há quanto tempo ele estava ali, caralho?

—O que você quer? — Perguntei, embora não tivesse intenção de soar tão grosso quanto fui.

—Você tá tão bonitinho assim.

Eu demorei algum tempo para entender que ele estava se referindo à minha cabeça raspada. Levei uma mão instintivamente ao topo da cabeça e escondi um sorriso, que poderia ter sido de escárnio ou de timidez, porque meus olhos ainda demonstravam o quão esquisito eu achava aquilo tudo. Apesar disso, eu também havia me acostumado melhor com o jeito dele. Soltei meu lápis sobre o livro e limpei a garganta, puxando o livro para fingir que eu voltava a ler, mas ele interrompeu:

—Me dá uma mão na cozinha.

Eu o espiei por cima do livro, hesitante, sem entender o pedido.

—Não é meu turmo na cozinha hoje. — Respondi.

—Eu sei, mas não é serviço pesado. É só uma ocupaçãozinha enquanto a gente conversa, sabe? Eu gosto de trocar uma ideia com os meninos novos, a gente ainda não teve a chance. — Ele pegou os dois livros fechados da mesa e sorriu, os dentes amarelos aparecendo, mas havia um ar impositivo também, para deixar claro de que ele não pretendia me dar escolha. Deu uma olhada na capa do livro, uma ruga aparecendo entre as suas sobrancelhas grossas. Quando fazia determinados tipos de expressão, parecia mais velho. Era um homem que devia ter passado por um bocado de coisas. — Vem, eu te dou um pedaço de bolo depois.

Eu tive que rir por ele falar comigo como se eu tivesse dez anos de idade.

 

Mas eu fui. A cozinha já estava quase vazia, porque a maioria das pessoas limpava lá fora, com exceção de Pip, que terminava de lavar as panelas, e Firkle, que esfregava o chão. Standish adentrou a cozinha de forma barulhenta e eu segui atrás, abraçado aos livros. A cozinha era ampla, com paredes de ladrinho bege; havia sacos de grãos no chão, legumes e frutas pendurados no teto, três congeladores horizontais, três geladeiras grandes. Bastante espaço para circular. No centro, havia uma mesa de madeira com quatro cadeiras, onde geralmente a equipe responsável pelo jantar acabava comendo, dependendo do dia. O som da máquina de lavar louças preenchia o ambiente. Standish pegou uma garrafa de conhaque da bancada, abriu o armário da parede para pegar dois copos pequenos de vidro e os posicionou sobre a mesa. Tinha uma grosseria nos seus movimentos, mas também uma elegância.

—Senta, Kyle. — Ele disse, usando as duas mãos para amarrar os cabelos longos com um elástico sujo, passando a língua pelos dentes antes de servir os dois copos. Os seus cabelos caíam por cima do ombro esquerdo, muito mais enrolados pelo fato de que Standish não os penteava. Ele usava uma camisa branca com os primeiros botões abertos e suspensórios pretos. Seu único olho estava focado no líquido escorrendo da garrafa para o copo, produzindo gotículas que voavam para fora da boca do recipiente.

Eu deixei os livros sobre a mesa e me sentei. Ele lançou o copo deslizando até o meu lado da mesa, e eu o segurei para que não caísse, sem vontade de beber. Standish virou um gole de conhaque, soltou um barulho de satisfação e bateu com o copo na mesa.

—Podem ir, meninos. — Ele disse aos outros dois.

Pip ainda passou quase um minuto esfregando a panela suja com força, as mangas dobradas até os cotovelos, a camisa molhada, cabelo loiro caindo por cima do rosto. Isso fez com que Standish soltasse uma pequena gargalhada, porque ele tinha braços finos e quase rosnava como um chihuahua para fazer força.

—Deixa essa merda de molho, coisinha. — Standish disse com um sorriso. A princípio, eu pensei que era uma forma carinhosa de chamar, mas após alguns segundos, tive quase certeza de que ele apenas não fazia a menor ideia de como Pip se chamava.

Pip esfregou a testa com as costas da mão cheia de espuma e sujeira molhada, rindo um tanto constrangido, enchendo a panela de água enquanto guardava o esfregão no armário de limpeza e saía sem dizer nada. Pip secou as mãos e sorriu para mim, acenando enquanto caminhava em direção à porta.

—Boa noite, Kyle. — Ele disse.

—Tchau, Pip. — Respondi com um sorriso fraco.

A porta continuou num balanço de vai e vem depois que Pip saiu. Houve quase vinte segundos de silêncio, vinte segundos horríveis que passei encarando os desenhos que a madeira da mesa formava, batendo as pontas dos dedos na superfície. Standish pegou uma bacia cheia de batatas da bancada e a colocou bem à minha frente, junto com um descascador, me oferecendo um dos seus sorrisos sem vergonha que erguiam as bochechas.

—Só pra adiantar algumas coisas do almoço de amanhã. Vai ter purê, você gosta de purê?

Ele era engraçado sem tentar ser engraçado, e quando tentava, não era. Eu ri, ainda que com a testa franzida, uma cara de estranhamento que eu não podia evitar. Mas estiquei a mão mesmo assim para pegar uma batata, inspecionando-a como se fosse um objeto desconhecido, agarrando o descascador com a outra mão. Ele botou um prato vazio no centro da mesa para as cascas e sentou à minha frente, tirando um canivete do bolso.

—Então. — Standish disse em um tom cerimonial, pigarreando, começando a descascar uma batata com uma habilidade sublime, sem esforço algum. Enquanto isso, eu dava o meu melhor para não arrancar pedaços muito grandes da batata junto com a casca. Aquilo me irritou. — Como está o seu namorado, hein?

—Ahn. Já esteve melhor. — Fiz uma pequena pausa, concentrado, apertando os olhos para a camada fina de casca sendo raspada da batata. Eu tinha a língua para fora dos lábios sem perceber. — Mas o Stan é bem forte.

—É, machucar outra é o tipo da coisa que leva um tempo pra você se acostumar.

—Eu não acho que ele queira se acostumar com isso.

—Ah, ninguém quer. A adaptação é uma merda, não é? Mas parece mais fácil pra você do que pra ele.

Eu encolhi os ombros. Olhava mais para a minha batata do que para ele.

—É, acho que sim.

—Gregory me disse pra ficar de olho em você, que você tinha algo que não pode ser ensinado, sabia? Eu não levei muito a sério. É um falador, aquele garoto.

Parei de descascar a batata por um momento para revirar os olhos, porque quase podia ouvir Gregory falando uma bobagem dessas, mas ao mesmo tempo, tive vontade de sorrir. Porque eu admirava aquele filho da puta cada dia mais. Pensar que ele acreditava em mim aquecia meu peito.

—Mas ele tinha razão. — Standish prosseguiu. — Eu não acreditei primeiro porque você tem esse olhar de quem foi amado durante a infância, sabe? Esses são os primeiros a ceder, sempre. Mas olhando pra você agora, eu entendo. Você me lembra um bocado o Toupeira quando chegou aqui pela primeira vez.

Instintivamente, meus olhos foram da batata em minha mão para o rosto dele. Standish não parou de descascar com seu canivete, girando a batata na palma da mão para contorná-la com o canivete, a casca saindo inteira de uma vez só. Ele era até bonito, o desgraçado, com seu cabelo loiro escuro longo e a barba cheia no rosto, o tapa olho ridículo com o qual eu já havia me acostumado.

—Sério? —Perguntei.

—É, bom. Não que vocês sejam parecidos. — Ele fez um movimento com a cabeça para jogar o cabelo para o lado, pressionando a língua por dentro da bochecha enquanto pensava, mostrando os dentes amarelados e o seu patético dente de ouro. — Mas vocês têm algo em comum. Esse… Sei lá, esse instinto. É uma coisa meio de bicho. — Standish fez uma pequena pausa, suspirando fundo como se lembrasse de alguma coisa. — Ele não tinha nem dezoito anos e já era uma das pessoas mais fortes que eu já conheci, era quase de partir o coração.

Assenti devagar com a cabeça, sem saber direito como responder a isso. Então, apenas estiquei a mão para deixar a batata descascada na bacia e peguei outra. Elas estavam um pouco úmidas. Havia uma pergunta enrolada na ponta da minha língua, com vontade de sair, mas eu precisei de alguns segundos para reunir a coragem de verbalizá-la.

—Eu não consigo entender direito vocês dois. — Falei de repente. — Digo… Você fala dele com carinho, parece, mas… Sei lá, não parece coerente com o jeito que ele te trata. Eu sei que isso não é da minha conta, mas já que você…

—Não, garoto, tudo bem. — Ele respondeu com uma voz paternal, jogando a sua batata na bacia. Não pegou outra imediatamente. Ficou brincando com o canivete durante alguns instantes. — Não é uma coisa simples de entender mesmo. — Standish se levantou, apoiando as duas mãos sobre a mesa, o canivete espremido sob a sua palma. Ele encarava a parede atrás de mim enquanto pensava um pouco no que falar em seguida. Eu continuei apertando um pouco a batata em minha palma, sentindo sua temperatura aumentar com o calor da minha mão. — Bom, eu estaria mentindo se dissesse que não sei o motivo. Tem a ver com o Lennart.

Eu esperei alguns segundos para que ele prosseguisse, mas ele me encarava de volta como se esperasse que o nome fosse familiar para mim.

—Quem?

—O Toupeira nunca te contou sobre o Lennart? — Ele pareceu um pouco surpreso. — Vocês parecem tão… Próximos. É, bom, acho que isso não é tão estranho. Não sei porque ele contaria.

—Eu não faço ideia do que você está falando.

—É, não vejo porque faria. — Ele pigarreou para preencher uma pausa vaga, cruzando os braços. — O Lennart é… Porra, eu nem sei do que chamar. Ele criou o Toupeira, vamos dizer assim.

Eu senti uma coisa estranha no coração, não exatamente um aperto, mas uma sensação gelada de nervosismo, como se eu nem estivesse preparado para adentrar um pequeno fragmento de quem o Christophe era antes de nós nos conhecermos, antes de ele se tornar o homem que era, porque era tão difícil imaginá-lo de outra forma. Pequeno, frágil, assustado, com algum tipo de inocência.

—Você sabe sobre a mãe dele?

Neguei com a cabeça. Não era como se eu não soubesse de coisa alguma, como se ele nunca falasse a respeito, mas… Eu nunca sabia exatamente o que era verdade ou não, porque Christophe era brutalmente honesto sobre as coisas do seu passado, mas falava de tal forma que não abria espaço para perguntas, como se o propósito daquilo fosse apenas chocar ou constranger. Ele fazia insinuações, como fez no dia da nossa primeira reunião, quando estourou aquela garrafa e perguntou ao Stan: “Então imagino que nenhum oficial tenha arrombado a sua casa e estuprado a sua mãe bem na sua frente ou coisa do tipo, certo?”. Não eram coisas que ele falava para se abrir, eram coisas que ele vestia na pele, que sempre me fizeram entender que ele vinha de um lugar escuro demais para se falar a respeito.

Aquela pergunta de Standish era pesada, carregava mais significado do que parecia. Saber sobre a mãe de alguém, sobre o pai de alguém, tudo isso diz muito sobre a pessoa em questão.

—Bom. — Ele prosseguiu, como eu esperava que fizesse. — A mãe do Toupeira foi uma prostituta. O pai, ele nunca conheceu, pode ter sido um oficial importante do governo ou um bêbado jogado na rua, nem ela devia saber. Ela criou o moleque sozinha, pelo menos até ele fazer oito anos. Oito. — Standish soltou um daqueles risos que nem são bem risos, mais um bufo amargurado do que qualquer outra coisa, balançando a cabeça. — Até que um bando de filho da puta invadiu o barraco onde eles moravam em Paris, estupraram a mulher até a exaustão e depois estouraram o crânio dela. Lennart sempre achou que isso foi serviço de soldados, sabe, Paris sempre foi bem selvagem. Mas podem ter sido rebeldes também, tanto faz. Enfim, a única pessoa que viu realmente quem fez isso foi o Toupeira, a sua mãe o escondeu debaixo da cama. Eu acho que ele era novinho demais pra entender a diferença entre homens ruins fardados e homens ruins não fardados. Ele viu tudo, viu a própria mãe ser abatida feito uma cadela. Acho que os caras sabiam que ele estava lá, mas era só uma criança, um garotinho imundo, o que iam querer com ele? Deixaram lá pros mendigos catarem, darem um fim nele. Sozinho é que ele não ia sobreviver.

Standish pressionou a língua por dentro da bochecha, largando o canivete na mesa para se servir de mais um copo de conhaque, esboçando um sorriso cínico. Aquele tipo de sorriso que você dá para disfarçar uma careta de dor. Eu não podia deixar de perceber o quanto a sua voz revelava uma dor muito pessoal sobre o assunto, mesmo que não fosse sua própria história. De alguma forma, devia ser. Ele entornou o líquido muito rápido, deitando a cabeça para trás durante alguns segundos, e havia fios de cabelo grudados na sua barba, fios que Standish não se deu ao trabalho de tirar do rosto. Estava pálido, as linhas de expressão muito marcadas, ainda segurando o copo perto do rosto. Eu não descascava mais. As batatas foram esquecidas. Era apenas um peso morto em minha mão. Eu não conseguia me mexer.

—Uma vizinha chamou a polícia militar porque ouviu o barulho. Não é engraçado? E o Lennart era… Ele era amigo da mãe do Christophe, dá pra dizer. Ela foi presa várias vezes e ele sempre a tirou da cadeia, especialmente porque ela tinha o menino pra criar. — Ele sorriu com mais delicadeza, uma ponta de nostalgia, como se a lembrança fosse sua. Talvez ele só estivesse lembrando do rosto do amigo. — Ela se chamava Annelise. Lennart sempre falava com muito carinho dela, e olha que ele não era um homem carinhoso. Porra, não era mesmo. Mas acho que ele tinha esse olhar de admiração por ela, ele gostava de gente forte. “Magrinha e fodida daquele jeito, ela era uma casca grossa”, ele dizia. “Mas doce feito um cervo”.

Eu larguei a batata, mas continuei apertando o descascador na minha mão esquerda, usando a outra para agarrar o copo cheio de conhaque à minha frente e entorná-lo sem pensar, quase que por necessidade. Se pensasse, não teria feito. Porra, eu nem gosto de conhaque. Apertei os olhos em resposta à ardência na garganta, o gosto forte e amargo, mas o cheiro era muito doce. Talvez fosse mais ou menos como a descrição que Standish me oferecia. Eu esperava me sentir melhor com aquilo, mas não aconteceu.

—Lennart era capitão na época. Atender chamadas domiciliares nem era parte do seu serviço, mas ele estava no posto aquela noite… Todas as noites, o desgraçado não sabia fazer outra coisa da vida que não fosse trabalhar. E ele reconheceu o endereço. Eu nem conheci essa mulher, sabe? Mas mesmo assim, quando o Lennart me contou sobre como a encontrou no chão com os olhos arregalados e a boca aberta, toda ensanguentada, chega a me arrepiar até os pelos do saco, porque aquela ferida nunca fechou, entende? Era horrível. Ele tomou uma cachaça comigo nessa cozinha e contou que chegaram lá com a porta arrombada e esse menininho de oito anos todo melado no sangue da mãe morta, bem quietinho, sem chorar… Só deitado ali com ela. Lennart achou que ele também estivesse morto, porque ele nem se mexia. — Ele fez um contato visual demorado comigo, os cantos dos lábios subindo sem vontade quando ele enxergou a minha expressão, como se quisesse me oferecer algum tipo de conforto. Pra falar a verdade, pareceu que ele havia se esquecido da minha presença. Esticou o braço para preencher o meu copo vazio. — Você consegue imaginar uma porra dessas? Encontrar uma pessoa amada assim, uma amiga chacinada dentro da própria casa? Porque é diferente de quando isso acontece na rua, sabe, quando a adrenalina tá a mil e você tem que sobreviver. É… É diferente. Eu espero que você nunca precise passar por uma merda dessas.

Engoli o acúmulo de saliva na boca, franzindo o nariz enquanto tentava absorver o que ele dizia. Eu nunca havia conseguido imaginar o Christophe como criança, até ouvir isso de alguém que ainda o enxergava como um menino, com um olhar quase paternal. Quando Standish falava, eu podia enxergar, através dele, um Christophe criança que já conhecia de perto o quanto o mundo era feio. A cena se formou tão vívida em meu cérebro que eu tive vontade de chorar, uma ardência na garganta que formigava o meu maxilar e nariz, me forçando a prender a respiração sem me dar conta. Meus olhos estavam um pouco vermelhos, eu podia sentir pelo quanto eles queimavam.

Bebi mais. Standish também.

—Lennart era um camarada meu. Eu o conheci bem jovem, tipo com a sua idade. Nós servimos juntos na Itália, durante a Guerra do Silêncio. A Inglaterra invadiu a Itália, nós passamos três anos em Nápoles lutando. A França era aliada da Inglaterra na época, então as tropas francesas foram enviadas como reforço, sabe? Lennart foi naturalizado francês, mas na verdade, ele era daquela terra da Antiga Dinamarca, quando aqueles países de cima ainda existiam, antes de virar tudo território russo. Os seus pais foram pra França pra fugir da invasão russa, mas o cara continuava um nórdico por baixo de toda aquela camada de frescuragem francesa. E ele era um militar nato, não podia ter feito outra coisa da vida. Era um homem durão, disciplinado pra caralho e a porra toda. E era o cara mais ético que eu já conheci na vida, mesmo que ele fosse meio cruel. Ele pegou o Christophe pra criar por conta disso, mesmo que ele não quisesse ter filho.

—Tá, mas espera. O Christophe foi criado por um militar? — Perguntei, embora não fosse algo tão surpreendendo assim, considerando que Christophe era um soldado do lado oposto. Mas ele tinha esse olhar de filho de ninguém, filho do mundo, criado pelos bichos.

Standish me encarou com a boca entreaberta, pego de surpresa pela minha pergunta, tentando entender se ela era genuína, se eu realmente não sabia a resposta. Ele pegou outra batata, segurando o canivete e alisando a parte não afiada com o dedão.

—O Toupeira foi criado pelo governo francês, Kyle. Eles pegavam órfãos miseráveis e treinavam para serem soldados. Lennart o tomou debaixo da asa, mas essencialmente, ele continuou sendo órfão.

—Mas isso não… Isso não faz sentido nenhum. Se ele foi criado pra servir ao governo, como é que ele…? Como ele lutou com o movimento rebelde na Europa? Como ele veio parar aqui?

—Ah, bem. — Standish coçou a barba, o canivete preso entre polegar e dedo indicador, rindo baixo. — Existem rebeldes em todo lugar, sabe, garoto? Essa prática de treinamento não foi exatamente algo feito à luz do dia. Era uma célula governamental que nem é mais ativa, deu miseravelmente errado, a coisa toda nasceu de um projeto para treinar a soldados para lutar pelo país, e não “contra” ele, como são vistos os rebeldes. O próprio governo francês já estava rachado ao meio naquela época, porque uma boa parte dos militares se sentia explorada pela monarquia, não concordava com o rumo das coisas. Mas isso é bem diferente do que nós visamos aqui, é um outro contexto lá na França, uma disputa de poder entre a força militar e a monarquia, o povo esmagado no meio. Lennart acreditava de verdade que o dever da força militar era proteger as pessoas, ele não tinha ideias romanceadas sobre revolução. Só acreditava na força como combate. Não havia espaço para um homem como ele nas forças militares oficiais, eu sempre soube disso, mas era a grande paixão dele. Aí veio o Toupeira, uma outra pessoa a ser considerada, alguém que dependia dele. Ele era um cara muito sozinho, se casou com o seu trabalho e não havia espaço pra mais nada. Tem gente que não devia mesmo ter filho.

Isso me parecia tão familiar. Eu me lembrei imediatamente das palavras de Christophe na nossa última noite na cabana da família de Token, lá em South Park, quando ele veio me pedir desculpas pelo afastamento. “Porque eu não posso, Kyle, eu não posso ter assim tão perto alguém que é mais importante do que a luta”, ele me disse. Acho que fazia todo sentido do mundo ele ter sido criado para isso, para servir, para morrer pelo que acredita e não para viver ao lado de pessoas mais importantes do que tudo, porque se importar profundamente com alguém bagunça todas as nossas prioridades.

—Se você pudesse ver… Caralho, a primeira vez que eu o vi, ele tinha o quê, dezessete anos? E ele já tinha esse olhar na cara… Esse olhar de quem já foi ao inferno e voltou, de quem não tem medo de morrer, era assustador. Ver esse tipo de olhar no rosto de um menino daquela idade me deixou tão triste. Ele já tinha essa coisa, essa presença forte de quem não bate muito bem da cabeça, eu ficava esperando que ele quebrasse alguma coisa o tempo todo. — Agora ele ria, mas eu não achava engraçado. Descascava a batata com a cabeça levemente tombada para o lado, entretido. — Tinha horas que ele me lembrava muito o meu filho. Ainda lembra um pouco, mesmo agora, virando homem.

Eu não perguntei o que aquilo significava, porque não precisava perguntar. Apenas o olhei com um pouco mais de compaixão. Pela forma como Standish havia se colocado, eu logo compreendi que, se ele já foi pai em algum momento, esse menino não viveu o suficiente para se tornar homem. Tentei conter o espanto na minha expressão, e não foi muito difícil. Umedeci os lábios enquanto o observava descasando aquela batata, parecendo tão diferente do homem que me chamou para sentar naquela cozinha para começo de conversa. Parecia que, sem remorso e sem sofrimento, Standish estava abrindo o peito e se fragilizando diante de mim, com uma tranquilidade de quem fez as pazes com as próprias dores. Isso me fez enxergá-lo de forma diferente a partir daquele dia.

—Você perguntou como ele veio parar aqui. Sabe, os militares conseguiram cortar a cabeça do rei, mas isso só piorou as coisas lá na França. Durante algum tempo, parece que virou uma terra de ninguém. A guerra ideológica ficou declarada, a monarquia não queria abrir mão, as forças armadas se perderam no propósito de “organizar” o país e… As pessoas ficaram sabendo do que pessoas como o Lennart andavam fazendo, trabalhando contra o próprio governo, ficou perigoso demais lá. Eu acho que ele sabia que queriam a cabeça dele e logo a teriam. Então ele trouxe o Toupeira pra cá. Ele podia não concordar com o método dos Monarcas, da primavera rebelde, mas ele sabia que não podia controlar o que o Christophe fazia. E… É engraçado, Kyle. — Ele apoiou os dois cotovelos na mesa, segurando a batata descascada pela metade em uma mão e o canivete na outra, gesticulando. — A relação dos dois era muito louca. O Lennart era um bruto do caralho, nunca deixou o Christophe chamar ele de pai, tratava na base da porrada mesmo, era doloroso de assistir. Mas eu tenho certeza absoluta, eu juro pelo túmulo da minha esposa, Lennart amava esse menino. Amava mais do que amou qualquer outra pessoa e coisa na sua vida miserável, e ele conhecia o mundo cão de perto, tudo que ele fez foi pra ter certeza absoluta de que o Christophe cresceria pra ser um sobrevivente. Um forte. — A essa altura, ele já havia largado a batata para apontar com o indicador na minha direção, reforçando o quão sério ele falava. — Porque ele também sabia que ele não estaria por aí muito mais tempo, que alguma coisa aconteceria, ele não podia criar o garoto pra precisar dele, entende?

—Acho que sim. — Respondi baixinho, porque parecia importante pra ele que eu não pensasse mal do homem sobre o qual ele me contava. Eu honestamente não fazia ideia do que pensar. A coisa toda apenas doía o meu coração quando eu pensava no Christophe, no jeito que ele lidava com as coisas, no quanto eu fui ruim com ele.

—Foi ele quem deu o apelido de Toupeira, sabia? Porque quando o Christophe era criança, ele já não falava com os outros meninos, não brincava com ninguém, passava o dia inteiro cavando buraco e se sujando de terra. Fingindo que era um soldado em missão. — Eu reconhecia esse brilho nos olhos de Standish, esse sorriso orgulhoso. Era o mesmo sorriso que meu pai dava quando o Ike tirava notas altas, quando meu time ganhava o jogo de basquete. Era um sorriso de pai.

Eu não pude deixar de sorrir ao imaginar isso.

—Mas… O que aconteceu com ele, afinal? — Perguntei receoso após um momento de silêncio, bebendo mais conhaque.

—Ah, ele voltou pra Europa. Ele não veio procurar asilo político aqui, veio deixar o Christophe em um lugar seguro depois de tirá-lo da prisão. Ele sabia que seria fuzilado em um paredão, mas preferia isso a fugir feito um covarde. Ficou na França com seus companheiros. Mas fez questão de mexer todos os pauzinhos possíveis pra dar proteção política ao Christophe antes de morrer. Apesar de tudo, ele é um filho da nação e um filho do governo. Por sorte, Lennart tinha mais amigos do que inimigos. Conseguiu dar a ele uma identidade falsa e o governo Americano teria que prestar contas com o governo Francês caso alguma coisa acontecesse com ele.

—Quando eu o conheci… — Falei sem pensar, mas me distraí com a lembrança daqueles dois sapadores no refeitório na universidade, espancando Christophe como se ele fosse um criminoso. E acho que era mesmo. As coisas começavam a fazer sentido na minha cabeça.

—O quê? — Standish perguntou.

—Ah. Nada, é que eu nunca consegui entender… Quando eu vi o Christophe pela primeira vez, ele socou um sapador dentro da universidade, lá em South Park. E… Quer dizer, eles não teriam o matado ali dentro, mas eu tinha certeza de que ele desapareceria depois disso. Eu nunca entendi porque o soltaram, ainda mais por ele ser estrangeiro.

—É, bom, é lógico que, na rua, se ele for pego cometendo qualquer ato de resistência, os sapadores vão cumprir a função deles. Mas enquanto ele estiver sob essa farsa de cidadão comum, eles não podem tratá-lo como um americano. Acho que o Lennart ainda tinha uma esperança de que ele conseguisse ter uma vida normal em algum momento, sabe?

Eu ri. E Standish também. Foi estranhamente confortável.

—Enfim, já tá tarde. É melhor você voltar pro quarto. — Ele disse ainda sorrindo, voltando sua atenção à batata. Mas eu não queria me levantar. Passei alguns instantes ali, sentado, contemplando a bacia de batatas sem responder. Já estava ficando um pouco bêbado.

—Você nem me respondeu o que eu perguntei pra começo de conversa. — Eu disse de repente.

—E qual foi a pergunta mesmo?

—Por que você gosta do Christophe mas ele não gosta de você?

—Ah. — Ele sorriu mais largo, agora mostrando os dentes amarelos, assentindo com a cabeça. — Isso. É, na verdade, acho que eu forcei um pouco. Eu não sabia muito bem como ele funcionava no começo. Antes do Lennart ir embora, a última coisa que ele me disse foi “dá uma força pro garoto, tem muita coisa que ele não sabe ainda”. Foi o jeito dele de me pedir pra cuidar do Toupeira. E eu realmente queria ajudar, mas… Ah, você sabe como ele é.

Balancei a cabeça sutilmente, erguendo as sobrancelhas como quem diz “sei muito bem.”

—E aí a partida do Lennart fodeu muito com ele, como já era esperado. Ele não queria ficar aqui, não queria ser deixado pra trás e sabia que nunca mais veria o único homem que ele conheceu como pai, ou a coisa mais próxima disso, mas ele não conseguia expressar de um jeito… Assim, como eu ou você faríamos. Nossa, ele tinha tanta raiva. E eu tava aqui tentando lidar com ele de um jeito que ele nunca aprendeu. Ele me lembrava esses vira-latas que apanham a vida inteira e mordem a mão que tenta dar carinho porque não sabem o que é isso, só conhecem o apanhar mesmo. Mas eu entendi, eu não tinha problema em ser o saco de pancada que ele precisava. Ele já tentou falar todo tipo de crueldade pra ver se eu desistia dele.

—E você desistiu?

Standish encolheu os ombros como se realmente não soubesse a resposta.

—Hoje eu sinto que ele não precisa mais de mim. Ele nunca precisou, na verdade, mas hoje ele realmente parece… Sei lá, tem alguma coisa diferente. — Ele fez uma pequena pausa. — Eu me preocupo com ele. Eu me preocupo com todos vocês, porque às vezes vocês se envolvem tanto por essa adrenalina e ficam achando que são o Rambo, que são invencíveis, mas vocês são tão, tão jovens. Crianças, ainda. — Ele não dizia isso com uma conotação arrogante de quem conhece mais sobre a vida, mas sim, com genuína preocupação na voz. — Quer dizer, olha pra você. Olha essa sua carinha.

Eu sorri, mesmo lutando contra.

Houve um momento longo de silêncio. Eu notei que o olhar de Standish ficou baixo, o maxilar tenso, como se ele pensasse em alguma coisa que o entristecesse. Ele respirou fundo, sacudindo a cabeça para afastar o que quer que fosse.

—Vai dormir, Kyle, você é o pior descascador de batata que eu já vi. — Ele me disse com um sorriso carinhoso que me deixou contente por algum motivo, talvez porque esse tipo de piada imbecil coubesse muito mais no feitio dele.

—Vai tomar no seu cu. — Eu respondi rindo, levantando, e Standish me respondeu com uma piscadinha de um olho só que me deu vontade de atirar uma batata nele, mas eu apenas recolhi meus livros e terminei meu copo de conhaque.

Ainda dei uma boa olhada nele, pensando em uma maneira de dizer “obrigado”, mas eu nem sabia ao certo pelo quê. Por me fazer descascar batata? E, ao mesmo tempo, uma voz fina respondia no meu subconsciente: “por me ajudar a entendê-lo um pouquinho melhor”. Era verdade. E por confiar em mim.

Standish estava com a cabeça baixa e o cabelo caído por cima do ombro, concentrado na tarefa manual, sua atenção não mais focada em mim, esperando que eu apenas saísse. E foi o que fiz, mas não sem antes absorver a imagem um tanto triste daquele homem que me parecia tão superficial antes, mas que transbordava generosidade e cuidado. Era reconfortante tê-lo ali, especialmente porque ele ainda me dava algum senso de família.

 

 

Eu não consegui voltar para o quarto. Enquanto eu caminhava pelo pátio, encarando meus próprios pés contra a pedra molhada do chão, comecei a sentir uma coisa crescer dentro de mim. Como se eu não pudesse respirar se passasse mais um segundo sem me resolver com o Toupeira. De repente, todos os meus motivos pra sentir raiva, toda a minha covardia, todo o meu egoísmo estava sob uma luz diferente, uma luz que me fazia enxergar todos os detalhes sórdidos e feios de mim mesmo. Eu sabia que ele treinava até mais tarde aos finais de semana, e provavelmente não estava no seu apartamento ainda. Mesmo que estivesse, eu não tive coragem de ir bater na sua porta novamente. Apenas sentei em um dos bancos e esperei. Os livros que eu carregava eram uma espécie de conforto, como se eu tivesse uma barreira, algo para me ocupar, mas a pouca luz externa do pátio não era suficiente para enxergar as palavras sem forçar os olhos. E ainda que fosse, eu jamais conseguiria me concentrar em torradeiras enquanto esperava. Me sentia demente, mas não conseguia evitar. Eu fervia por dentro.

Algumas pessoas ainda passavam pelo pátio, conversando, ou paravam nas pequenas varandas dos apartamentos, mas estava frio demais para ficar ali fora. Eu abracei meu próprio tronco e respirei fundo, encarando o chão. Depois, meus olhos começaram a subir. A lua estava cheia aquela noite, seu brilho esverdeado banhando meu corpo e tudo que havia ao meu redor, perfurando as camadas de poluição. Cada presença que passava fazia meu coração palpitar, até que eu enxergasse rostos que não eram o dele.

Passaram-se vinte minutos, talvez meia hora. Tempo o suficiente para eu começar a me sentir louco demais por esperar ali fora enquanto fazia 2°C e eu já não conseguia mais sentir meu rosto. Por algum motivo, eu não podia me mexer. Talvez eu tenha sentido que não demoraria muito para Christophe aparecer caminhando lá da área do galpão, arrastando os pés, os braços cruzados, soltando fumaça pela boca. Demorou algum tempo para que ele me percebesse ali sentado. Ele franziu a testa, umedecendo os lábios, fazendo menção de continuar caminhando em direção ao seu quarto, mas eu não parei de encará-lo. Não me movi, não o chamei, apenas olhei. Parei de sentir frio durante aqueles segundos. E ele era sensível o bastante para perceber que eu continuava a encará-lo, tanto que virou o rosto na minha direção mais duas vezes até parar de andar. Parecia irritado. Eu não o culpava.

Enfim, ele começou a se aproximar do banco onde eu estava sentado.

Quanto mais perto chegava, mais lentos os seus passos se tornavam. Até que ele estava de frente para mim, as mãos nos bolsos do casaco grosso verde-escuro com um gorro que ele não vestia naquele momento, um cachecol cinza por dentro. Ele esperou, bufando feito um touro, talvez mais pelo incômodo de respirar no frio do que pelo que estava sentindo. E eu não desviei o olhar, mas com muito custo, porque agora que ele estava parado bem à minha frente, eu não fazia a mínima ideia do que dizer. E talvez, com qualquer outra pessoa do mundo, a coisa teria acabado por ali. Mas não com Christophe. Ele podia farejar que eu precisava dizer algo e não sabia como, ou apenas estava disposto o suficiente, tão angustiado quanto eu.

Ele tirou as mãos dos bolsos, enfim quebrando o contato visual por dois breves segundos.

—Kyle, que merda foi aquela? — Ele me perguntou. Eu aproveitei para encarar a árvore ao lado, que projetava sombra no banco à luz do dia, mas agora seus galhos secos estavam sobre nossas cabeças, bloqueando a luz da lua. Todos os meus músculos estavam duros. Eu queria responder, mas se abrisse minha boca… Sairia tudo. Transbordaria tudo. E talvez fosse o álcool, talvez fosse apenas saudade, talvez fosse as coisas que Standish me contara, mas eu só queria chorar. E não podia. Não assim, não daquela maneira. Ele continuou esperando, até soltar um suspiro frustrado, sentando-se ao meu lado no banco. Houve mais um tempo de silêncio. — Você tem namorado, cara. — Ele prosseguiu.

Ele não sabia (ou não queria) ser sutil, foi direto ao ponto, sem sondar antes. Como era tão característico dele.

—Eu sei. — Respondi, meus olhos ainda fixos no tronco escuro da árvore, nos desenhos que a habitavam a madeira.

—Um namorado que você não tem intenção nenhuma de largar. — Ele continuou, mas eu podia ouvir a aflição na sua voz, como ele apenas queria que eu falasse com ele.

Fechei meus olhos. Assenti devagar com a cabeça. O ar gelado soprava na minha cabeça sem cabelo para proteger minhas orelhas e nucas.

—Eu sei. — Repeti.

—Foi você que começou com essa merda de… Kyle. — Ele parou de falar de repente para falar meu nome em um tom grosseiro e sutil ao mesmo tempo, talvez porque eu não conseguia olhá-lo assim de tão perto. Eu ainda tinha os olhos fechados e a cabeça pendia para trás, meu rosto se contorcendo em uma careta para conter o turbilhão dentro do meu peito, garganta, cabeça, estômago. — Você… Porra. Você não vai chorar, né? — Ele perguntou soando quase desconfortável, como se ele não tivesse ideia do que fazer.

—Não, caralho. — Eu menti, meus olhos já cheios d’água, isso ficou muito claro quando eu os abri para encará-lo de volta. — Eu sei. Eu sei disso tudo. Eu sei que é culpa minha, eu sei que eu fui um filho da puta, eu sei que você tem todo direito de me odiar, não tem nada que você possa dizer que eu já não tenha pensado muito pior. — E era isso. Era um daqueles momentos em que eu já não assumia mais controle das coisas que saíam da minha boca, porque as palavras vinham, as lágrimas vinham, os soluços vinham, meu rosto ficava cada vez mais vermelho, meu nariz escorria, e não adiantava tentar parar o tsunami que estava prestes a acontecer. Eu não conseguia nem mesmo controlar meu próprio corpo; levantei do banco no impulso, minhas mãos trêmulas em frente ao meu abdômen, tentando auxiliar as coisas que eu dizia. — E eu não tenho nem coragem de te pedir desculpa, porque se eu fosse você, eu não conseguiria me perdoar. Por nada. Nada do que eu tenho feito contigo merece perdão, eu não consigo nem olhar na sua cara de tanta vergonha que eu sinto por ter te machucado, por continuar te machucando, porque eu te amo tanto, Christophe, eu te amo tanto que eu não consigo respirar. — Precisei fazer uma pausa para sugar o ar com a boca, apertando os olhos, balançando a cabeça negativamente porque eu nunca havia me sentido tão patético antes. — Eu nunca te vi como um objeto, não foi por isso que eu… Porra, você não faz ideia, eu daria qualquer coisa pra não me sentir desse jeito, porque eu sei, Christophe, eu sei que eu não tenho direito nenhum de não querer que você fique com outras pessoas, porque eu escolhi isso, mas só a ideia de você tocando outra pessoa me faz querer… Me deixa louco. Me deixa completamente louco. — As palavras saíam atropeladas, rápidas demais, sem pausa para respirar. Eu esfreguei meu próprio rosto para tentar secar as lágrimas, mas acabei cobrindo os olhos e me inclinando para frente, com tanta vontade de cavar um buraco e desaparecer.

A maneira com que ele me olhava era muito diferente do que eu havia esperado. Ele nem parecia mais sentir raiva. Nem fazia menção de dizer qualquer coisa, de replicar, de discutir. Ele apenas uniu as mãos e me encarou com um olhar tão carregado de compaixão que me machucava, porque eu não merecia aquela merda dele. Eu não merecia nada de bom que ele tivesse pra me dar, eu tinha perfeita noção de que cortá-lo da minha vida era a melhor coisa que eu podia fazer por nós dois, porque ser amigo dele me matava, mas como? Como, se não ser nada dele era muito pior?

—Isso nunca mais vai acontecer. Eu nunca mais vou agir desse jeito, eu nunca mais vou te culpar por nada que não seja sua culpa, eu preciso que você saiba disso. — Eu prossegui, respirando fundo, tentando soar mais calmo. — Mas isso… — Minha voz vacilou pelo choro subindo novamente pela garganta, o que me levou a cobrir a boca com a mão, espertando os olhos para tentar comprimir as lágrimas. — Isso tudo me rasga por dentro e eu não sei o que fazer, eu não faço ideia… Não importa o que eu faça, parece que a única coisa que eu consigo é machucar todo mundo que eu amo.

Ele estava tão bonito enquanto me encarava com aqueles olhos gentis. Os olhos dele nunca eram gentis. E ele não disse nada. E eu só chorei durante bons cinco minutos em silêncio, deixando que tudo escorresse, que tudo deixasse meu peito. Não era só por ele. Não era só pelo Stan. Era saudade também. Saudade de casa. Saudade da minha mãe, por mais que eu nunca fosse admitir isso em voz alta. Saudade do Ike, do meu pai, de não precisar ser forte o tempo inteiro, de não ter medo de morrer, de não ter medo de perder quem eu mais amava. Era pela cicatriz no meu rosto, por Tweek, por Butters. Por estar exausto.

Mas, acima de tudo, por não aguentar mais estar perto dele e não poder tocá-lo. E por não aguentar o preço que tocá—lo me traria. Era o medo de perder Stan, de perder Christophe, de me perder no processo.

—Isso é uma bosta. — Eu murmurei, secando meus olhos. Ele riu. E eu também, embora o meu riso tenha sido muito mais aquele riso quente que disfarça o resto de choro que sobrou. Eu estava quase vazio.

—Eu tô aqui, Kyle. — Ele disse por fim, os cotovelos apoiados nas coxas e as mãos unidas. E soava tão honesto. Eu o encarei com amor nos olhos, sentindo tanto alívio que nem seria capaz de explicar. — Eu sempre vou estar aqui.

“Você não vai me perder”, os olhos dele diziam, mas eu ainda podia ver a mágoa por baixo da expressão fria dele, nas sutilezas. Nós não nos abraçamos aquela noite. Ele se levantou, tocou meu rosto para secar minha bochecha e me mandou ir dormir, como se nada tivesse acontecido, como se tudo já estivesse perdoado muito antes de eu abrir a boca. 



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