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História Liberté - A Causa


Escrita por: caulaty

Capítulo 4 - A Causa


 04 de fevereiro de 3644
 

Morávamos em três, mas na verdade éramos cinco no apartamento 101 do Edifício Cardinal – que tinha mais de vinte e cinco anos de existência e fazia todos os ruídos que se possa imaginar – na rua Tenente Gaspar Filho, na parte acinzentada de South Park. Era uma rua terrivelmente silenciosa onde viviam basicamente estudantes, pois não era muito longe da Universidade. A cidade em si era bastante pequena, então o contraste entre o pobre e o rico era gritante; os dois mundos eram divididos pela linha do trem, mas essa separação bilateral era totalmente assimétrica. A parte rica de South Park era dominante, naturalmente, e se dizia que lá as mulheres usavam casacos de pele de animais quase extintos e consumiam jóias como nós consumíamos papel higiênico, com a mesma banalidade. Era extraordinário. Os homens entornavam diariamente uísques que valiam muito mais do que nosso pequeno apartamento. É claro que a comunidade rica não era maioria, mas suas construções majestosas tomavam conta da cidade, então sua estética aristocrática era predominante e definia o aspecto visual de South Park, distraindo-os da desagradável visão dos farrapos humanos nas ruas clamando por comida. Ah, como era simples.

Mas voltemos ao apartamento.

Como eu disse, morávamos no 101: Stan, Gregory e eu. Logo do outro lado do corredor, no 102, moravam Kenny e Cartman. Vivíamos em uma cultura em que não era exatamente aceitável continuar morando com os progenitores depois de atingir a maioridade. Os pais eram criados para aprender a tirar o filho de casa assim que ele tivesse idade legal para ser considerado um adulto. Era curioso, porque tanto a minha família quanto a de Gregory eram de uma camada social média; nós nunca soubemos o que era não ter absolutamente nada. Nunca passamos fome, não enquanto crescíamos. Mas nós estávamos ali, junto com nossos três amigos mais íntimos que vieram de condições muito mais fodidas, uns mais do que outros, e habitávamos o mesmo espaço. Pagávamos o mesmo aluguel. Não vivíamos melhor do que nenhum deles. Havia certo orgulho nisso, eu não vou mentir. Acho que isso era real para nós dois, mas não posso falar pelo Gregory. Podia ser um martírio idiota da juventude, como se o nosso sofrimento escolhido validasse a nossa causa, se é que tínhamos uma até aquele momento. Mas com a minha situação em casa, morar com minha mãe seria uma tortura muito pior do que morar na rua. Era certo que eu pensasse essas coisas da mulher que me criou, apesar de tudo, com amor? Eu não sabia dizer. Minha mãe era uma mulher extremamente complicada, uma verdadeira porta-voz da revolução, mas era a revolução errada. Ela era uma militante ativa, altamente nacionalista, que aprendeu a abrir mão dos motivos certos para lutar porque, acredito eu, tinha medo das consequências. Ela sempre foi muito a favor das regras, foi assim que cresci. Acreditava que elas regiam o mundo, mesmo que o tornassem um mundo no qual não valia a pena viver. Para suportar a própria impotência diante das atrocidades da ditadura, minha mãe aderiu à causa do Governo contra o Canadá quando a guerra eclodiu. Ela era uma sindicalista respeitada e uma oradora incrível. Quando Stan realmente queria dar nos meus nervos, dizia que eu era como minha mãe. Poucas coisas são tão perturbadoras quanto enxergar em si mesmo aquilo que você despreza nos seus pais. Felizmente, isso não era algo que Stan apontava com frequência. Ele não era adepto do hábito de me machucar deliberadamente. Talvez ele estivesse apenas sendo honesto.

De qualquer forma, uni o útil ao agradável quando decidi viver com ele. Nós dividíamos um apartamento de dois quartos (um dele, outro de Gregory), sem muito espaço livre, mas era um sistema bastante funcional devido ao fato de que passávamos o dia inteiro fora de casa. Em pouco tempo, eu pude me ver impondo regras silenciosas de convivência que aprendi no meu berço, e nenhum dos dois estava disposto a desafiar tais regras. Stan tinha uma dificuldade muito maior do que a de Gregory no que se tratava de organização. Nesse sentido, Gregory era até mesmo conivente com as minhas neuroses sobre cada coisa em seu lugar.

Mesmo que Cartman e Kenny não morassem conosco, passavam a maior parte do tempo livre no nosso apartamento, onde sempre tinha comida e o cheiro era agradável. Raramente visitávamos o apartamento deles, mesmo que fosse logo em frente, porque era um espaço com pouquíssimos móveis e não havia qualquer parecença com um lar. Era apenas o espaço onde eles dormiam. Não havia muita noção de barreira entre nós quatro – e disso, sou obrigado a excluir o Gregory – porque crescemos juntos, ainda que aos trancos e barrancos, sem ter muito claro o que é que nos mantinha tão unidos. Aquela proximidade não poderia mudar depois de nos mudarmos para o mesmo prédio, no mesmo andar. Gregory chegou depois, mas estava tão imerso naquele ambiente quanto todos nós. Kenny e Cartman tinham a liberdade e a intimidade para entrar e sair quando quisessem, mesmo quando particularmente não os queríamos lá.

Naquela noite, Kenny me pediu para dar uma olhada em sua cabeça, convencido de que estava com piolhos. Estava sentado no chão, entre as minhas pernas, enquanto me coloquei no sofá para inspecionar seus cabelos sujos, afastando os fios com os dedos para enxergar seu couro cabeludo. Stan estava deitado ao meu lado, com os pés no meu colo, fingindo que estudava, mas distraído demais pela nossa conversa para conseguir ler qualquer coisa. Eu sabia quando ele não estava absorvendo nada do que lia apenas pela forma como suas pupilas passeavam pela página, sem foco.

Gregory estava ao telefone há quase meia hora, suas agendas espalhadas pela mesa, procurando pelo número certo, aflito, mas em silêncio em sua própria agonia, completamente alheio à nossa conversa barulhenta, à gargalhada livre que Kenny soltava, que soava com a de um menino enquanto ele segurava as próprias canelas. Sua calça estava dobrada até os joelhos, expondo as feridas de arranhões que ele carregava na pele porque tinha muita alergia e se coçava o tempo todo. Suas pernas sempre estavam marcadas, mesmo que Kenny quase não tivesse unhas; estavam sempre roídas e descamavam.

-Eu não quero informação sigilosa nenhuma, sua piranha ignorante. Não estou pedindo pelos planos de execução dos prisioneiros de guerra, eu só quero saber se ele está aí!

Stan ergueu os olhos do livro, uma pequena ruga de preocupação se formando entre as sobrancelhas. Trocamos um olhar longo, pesado. Kenny parou de rir, mas não se virou para enxergar nenhum de nós três, então eu não soube dizer qual era a expressão em seu rosto. Stan esfregou as têmporas, sentindo o ar pesado que tomou conta da sala.

-Então que pusessem uma morsa no seu lugar. Isso qualquer imbecil pode fazer! - Gregory gritou, batendo com o telefone no gancho. Seu sotaque ficava muito mais forte quando ele se alterava. Bufou como um touro, resmungando baixo. - Vagabunda incompetente.

Eu convivia com Gregory desde que éramos garotos e arriscaria dizer que nunca o tinha visto tão alterado, pelo menos até aquele ponto. Isso não significava que ele chegaria ao ponto de quebrar alguma coisa, mas Gregory era uma dessas pessoas que jamais perdia a compostura. Isso valia para a camisa bem passada e o gel no cabelo dele, não havia um fio fora do lugar. Era quase perturbador vê-lo tão fora de si, a respiração descompassada e o linguajar transbordando o descontrole.

-Sem notícia do seu amigo? - Kenny perguntou, virando o rosto na direção de Gregory, mas eu puxei sua cabeça de volta para a posição anterior. Não havia piolho algum em vista, mas seu couro cabeludo tinha algumas feridas que eu queria analisar mais de perto.

Cartman saiu da cozinha nesse momento oportuno, com a boca cheia, mastigando um salgadinho que roubou da nossa despensa, com migalhas sujando a região da boca e a mão.

-Não. - Gregory respondeu, agressivo. - A última coisa que eu soube era que ele tinha sido preso e deportado, eu nem imaginava que ele estivesse na América. Esse imbecil deve estar usando uma identidade falsa, deve ter dado um jeito de fugir.

-Mas quem tá com uma identidade falsa no exterior não daria soco na cara de um sapador, né? - Kenny apontou.

-Para de se mexer. - Mandei, dando um tapa fraco na cabeça dele.

Gregory cruzou os braços e deu a volta na escrivaninha, recostando-se na beirada, deixando escapar uma risada incrédula. Sacudiu a cabeça e encolheu os ombros, terrivelmente semelhante a um pai dividido entre a preocupação doentia e a raiva.

-Christophe faria exatamente isso. Você não o conhece.

-Olha, - Stan anunciou, deixando de lado o seu livro sobre Teoria da Comunicação sobre o sofá. O livro era velho e surrado, de segunda mão, como todos os livros que tínhamos. Stan se levantou do sofá e andou na direção de Gregory, repousando a mão carinhosamente sobre o seu ombro por um breve momento. - Eu vou fazer um chá, ok?

Para ele, tudo se resolvia com chá. E mais da metade do tempo, tinha razão. Stan não costumava se envolver com os dramas daquela casa, não no sentido emocional. Era tão silencioso e respeitava o espaço e os limites das pessoas em torno dele, muito melhor do que qualquer um que já conheci. Não tentava preencher o vazio ou aliviar a aflição com palavras que considerava vazias, pois não havia nada que ele pudesse fazer por Gregory além de um chá de maçã. Ao mesmo tempo, Stan era a pessoa que qualquer um escolheria para ter ao lado em um momento de fragilidade. Nós dois sempre fomos melhores amigos, desde que eu posso me lembrar, então talvez eu fosse suspeito para falar sobre a compreensão, a fidelidade e a ausência de julgamento que sempre consistia na companhia de Stan. Ele também dava o abraço mais gostoso desse mundo, embora Gregory não parecesse querer isso àquela altura.

-Gregory, puta merda. - Cartman disse, pegando mais um punhado de salgadinhos no saco de forma terrivelmente barulhenta, enchendo a mão com vontade, mas sem levá-los à boca antes de terminar de falar. - O seu namoradinho já era. Desiste.

-Cala a boca, Cartman. - Eu disse com uma voz mais alterada, antes mesmo que ele tivesse a chance de acabar a frase. Lancei um olhar de reprovação irritadiço, algo muito frequente entre nós dois, mas aquele dia foi diferente. Em quase todas as ocasiões, Eric me devolveria uma expressão sarcástica e um ronco de indiferença, encolhendo os ombros. Para a minha surpresa, ele apenas me ignorou, mastigando mais um punhado de salgadinhos. As migalhas caíam livremente no tapete, provavelmente porque a coisa já estava quase no fim. Cartman amassou o pacote de forma barulhenta, limpando a região da boca com as costas da mão. Foi a primeira vez, talvez em toda a nossa vida, que Eric Cartman realmente me obedeceu.

Gregory bufou, descruzando os braços. Algo me dizia que ele não estava prestando atenção em nada do que acontecia em volta. Seus olhos, quase tão azuis quanto os de Kenny, mas mesclados com verde, fitavam o chão sujo como se fosse a coisa mais fascinante do mundo. Mas as pupilas estavam vazias, um mecanismo de defesa impressionante de alguém que não foi ensinado a lidar com aquilo que sentia. Isso fazia parecer com que Gregory fosse a pessoa mais fria, mais indiferente, porque seu rosto sempre estava sob controle, dominado por essa certeza irrefutável de que não adiantaria absolutamente nada sofrer ou resmungar. Quase não era humano.

-Ei. - Cartman me chamou, largando o pacote amassado sobre a mesa de centro. - Vou tomar banho aqui. Acabou a água quente lá em casa.

Antes que eu pudesse resmungar pela sujeira do pacote, Kenny se esticou para alcançá-lo e escondeu da minha vista. Como se isso adiantasse. Deixei de lado pelo esforço e para não preencher o cômodo com uma queixa vazia sobre Cartman, não quando o ar estava tão denso e era quase difícil de respirar. Cartman passou por nós deixando um tapa na cabeça de Kenny, possivelmente por ter sido ele quem tomou o último banho antes de acabar a água. Conhecendo-o, ele tomaria banho gelado sem reclamar. Era difícil arrancar Kenny do seu estado de comodidade, ele era a pessoa mais resiliente que já conheci. Xingou Cartman baixinho, e mesmo que eu não pudesse ver seu rosto, sabia que havia um sorriso largo em seus lábios. Sempre havia.

-Isso não é certo. - Murmurei, mais para mim mesmo do que para eles, mas Gregory desviou o olhar na minha direção, levando as mãos ao quadril. Umedeceu os lábios, tenso. Virei o rosto para ele, descendo as mãos pelos ombros de Kenny. - Estudantes estão caindo como moscas. Espancaram ele bem na nossa frente. E ninguém faz nada.

-Acontecem coisas muito piores todos os dias. - Kenny respondeu distraidamente, com a voz muito mais sombria do que de costume. - Só queriam mostrar pra gente o que acontece com quem resiste. Só não o mataram porque ele é europeu, essas coisas dão problema com a Embaixada. - Uma pausa. - Pelo menos no meio de tanta gente.

Kenny e eu observamos Gregory com certa expectativa. Por algum motivo, meu coração estava disritmado em meu peito. Batia dolorido, acelerado, combinando tão bem com as longas tomadas de fôlego necessárias para que eu sentisse meus pulmões cheios de ar. Gregory tinha linhas de expressão carregadas que o faziam parecer mais velho do que era realmente; Não havia rugas em seu rosto jovem, mas sim nuances suaves de preocupação que sugavam toda a vitalidade. Era um homem bonito, assim como foi uma criança bonita. Era o tipo de beleza clássica greco-romana que não se encontrava mais com frequência na América. Ele escorregou a mão pelo peito e pressionou os dedos na própria pele, por dentro do colarinho, agoniado.

-Nós nos conhecemos em Yardale, naqueles dois anos que passei na Inglaterra para estudar, quando meus pais acharam perigoso demais ficar aqui. - Ele começou a explicar, sentando-se ao meu lado no sofá. Kenny virou no chão para enxergá-lo. Eu me lembrava muito bem daquilo, quando a retaliação aos estrangeiros começou. A mãe de Gregory nunca retornou por conta disso. - O povo inglês era protegido, mas simplesmente não havia trabalho. Não havia comida. Fiz parte da organização ativista para derrubar o primeiro ministro. Eu era muito jovem, não fazia ideia de em que estava me metendo. O grupo visava sequestrar o braço direito do ministro, precisávamos de um mercenário. Christophe é francês. O Toupeira, era assim que ele era chamado. Logo entendi porquê, ele vivia com uma pá nas costas, sempre no subterrâneo.

Enquanto ele contava, Stan voltou à sala. Meus olhos correram rapidamente em direção a ele, mesmo que hesitassem para deixar o rosto de Gregory, tão sereno. O olhar que lancei a Stan teve uma boa parte de dúvida, como se eu precisasse de uma reafirmação de que ele estava ouvindo o mesmo que eu. Kenny mantinha a cabeça baixa, olhando fixamente o pacote cheio de migalhas que amassava distraidamente para ter o que fazer com as mãos, emitindo um som desconfortavelmente alto. Eu sabia que ele estava ouvindo. Esse tipo de coisa prejudicava Kenny na época da escola, eu me lembrava muito bem: o fato de que ele parecia estar em outro mundo, mas estava sempre atento. Poucas pessoas entendiam isso.

Chegando perto de mansinho, retribuindo o olhar por um breve momento, Stan colocou a xícara fumegante de chá sobre a mesinha de centro. Estava com a asa quebrada, sustentada por um píres que não fazia parte do mesmo jogo. Sentou-se no braço do sofá ao meu lado, colocando o braço em torno dos meus ombros. Meu corpo continuava rígido, como se meus músculos não quisessem responder, mas o toque foi um alívio. Recostei a cabeça contra ele. A mão leve veio imediatamente à minha testa e alisou os meus cabelos para trás.

Gregory suspirou e alcançou um cigarro no bolso para acendê-lo antes de prosseguir.

-Tudo o que eu mais queria era voltar à América. As coisas não deram certo lá, Christophe e eu viemos embora antes do desfecho do sequestro. Mas aquelas pessoas me ensinaram a lutar, pelo menos de alguma forma. Era tão... Tão libertador sentir que estávamos fazendo alguma coisa. Era estúpido, na verdade, eu não acho que estivéssemos realmente ajudando alguém com pequenos ataques terroristas. A coisa fugiu do controle muito rápido, sabe? Depois que Christophe entrou na história... Foi como o combustível necessário para inflamar o ódio daquelas pessoas pela sua própria terra. Algo no discurso dele... Fisgava uma coisa que todos nós carregávamos lá no fundo, aquela parte da memória que ninguém quer visitar, o Toupeira tinha isso escarrado. - Aproximou do rosto a mão, com o cigarro entre o indicador e o dedo médio, deixando o ar escapar pela boca como se o estivesse segurando há anos. A fumaça azul subia, lenta e rigorosa, dramatizando a expressão rígida por trás. De repente, sacudiu a cabeça como se despertasse de um transe e se esticou para alcançar a xícara. Finalmente, deu um gole demorado que deu fim a metade do chá.

As sobrancelhas escuras e grossas de Stan estavam franzidas quando ergui o rosto para ele, mais em estranhamento do que em dúvida.

Nós conhecíamos esse tipo de coisa. Não era como se pudesse chegar àquele ponto de uma ditadura sem nenhum tipo de retaliação. Havia organizações, coisas do gênero, há quase uma década. Eu sempre acompanhava pelo jornal a descrição dos movimentos em Nova York, onde estavam centralizados os principais líderes, mas havia grupos de resistência espalhados por todo o país. Os sapadores jamais mediram a violência de combate com os revolucionários. A maioria era muito jovem, núcleos de estudantes que se juntavam para organizar ataques às instituições do governo, alguns mais agressivos do que outros. É claro, apenas os jovens se interessam por esse tipo de mudança. Apenas os jovens têm energia, tempo, disposição e espírito para revoluções. O sangue melava o asfalto em Nova York, mais do que em qualquer outra cidade da Velha República. Estudantes caíam um atrás do outro, eram reduzidos a pó ou pedaços de carne em questão de segundos. Aquilo parecia ser o futuro de qualquer um que decidisse se envolver com esse tipo de coisa. Stan e eu discutíamos os ataques com certa frequência, pois sempre havia jornais espalhados pelo apartamento com recortes de notícias sensacionalistas, que retratavam os movimentos revolucionários como puro terrorismo contra o governo. Stan parecia concordar com aquele tipo de afirmação, mas não pelos mesmos motivos da mídia.

Pensando sobre, talvez fossem sim o mesmo único motivo: medo. Os jornalistas tinham medo. Stan tinha medo, não tanto por si mesmo quanto pelas pessoas que se machucariam ao se colocar na linha de frente contra o governo, inevitavelmente. Todos nós sabíamos o que era isso.

Sempre líamos sobre aqueles cujos jornais nomeavam “O Estigma Canadense”, mas entre os ativistas anti-ditadura, eram conhecidos como os pais da revolução. Terrance e Phillip, dois nomes que vinham tão acompanhados um do outro que pareciam ser duas metades do mesmo ser. Uma única mente mestra que representava a força da resistência. Ninguém jamais sabia exatamente onde estavam, ou quantas pessoas trabalhavam para eles. Era extraordinário como eles, líderes do movimento, conseguiam se manter ocultos quando toda a América conhecia seus rostos. Minha mãe sempre se referia a eles como “demônios”.

Kenny passou a mão pelos cabelos, como se tentasse voltar a desarrumá-los da forma estratégica que sempre usava, aproveitando para coçar o couro cabeludo. Algo me dizia que aquela coceira se tratava muito mais de uma forma de lidar com a compulsividade nervosa do que piolhos. Stan fazia chás, Kenny se coçava, Cartman comia. Cada um de nós tinha uma forma de lidar com a fragilidade do mundo ao nosso redor.

Mas Gregory e eu não tínhamos o mesmo interesse de encobrir a problemática e olhar para o outro lado. Eu podia ver nos olhos dele, a sede, a fúria, a incapacidade de se conformar. Talvez nós dois apenas fôssemos menos complacentes, menos felizes. Eu reconhecia, em Gregory, a tortura de silenciar. Eu literalmente reconhecia porque essa tortura era familiar demais a mim; eu a carregava em meu peito todos os dias. Gregory falava daquele homem – que até então, não passava de um estorvo barulhento em minha memória – como se ele significasse a luta, a causa, porque Gregory sabia o que era ter por quem resistir. Eu também sabia.

Porque enquanto minha mãe bravamente clamava sobre a segurança de nossas crianças e como os demônios canadenses invadiam e infeccionavam nossa amada nação, ela também escondia um “demônio canadense” no próprio porão, porque em South Park, qualquer pessoa de origem canadense seria levada e nunca mais se ouviria falar dela. E não era isso que minha mãe gostaria que acontecesse com seu filho caçula. Irônico, eu sei. Minha mãe tinha muitos aspectos irônicos que eu quase me cansei de questionar. Então, quando eu olhava para Gregory e enxergava a necessidade dele de lutar por esse homem que significava tanto para ele, que representava resistência, força e coragem, eu me enxergava nos olhos dele. Eu precisava fazer algo para ter certeza de que eu estava contribuindo para um mundo decente, em que meu irmão não precisasse viver num porão úmido, escuro e gelado.

-Eu preciso... - Gregory finalmente continuou, depois de dar uma longa tragada no cigarro, deixando o silêncio se instalar por tanto tempo que nenhum de nós imaginou que ele fosse prosseguir. - Eu preciso saber se vocês estarão comigo quando a hora chegar.

-Gregory... - Stan hesitou, balançando a cabeça. Afastou o braço de mim, levando a mão ao queixo para sustentar o rosto, roçando os dedos na pele com preocupação. Engoli seco pelo tom repreensivo da sua voz.

-O que isso quer dizer? - Perguntei, apenas porque parecia que alguém tinha que perguntar.

-Que está na hora de mostrar a esses filhos da puta que nós não somos ratos. E eu farei isso com ou sem vocês, mas sem será mais difícil.

Pude sentir como Stan e Kenny trocaram um olhar demorado, pelo movimento sutil de Stan no braço do sofá, escorregando desconfortável para a frente. Mas não prestei atenção. Não tive qualquer ímpeto de participar daquele olhar de receio, dúvida, o que quer que tenha sido. Eu não tinha dúvida de nada. Gregory estava me dizendo exatamente o que eu precisava ouvir, então tudo o que pude fazer foi esticar a mão para tocar o joelho dele, deslizando no estofado para me aproximar. Gregory não era a pessoa mais tátil do mundo, era difícil para ele corresponder a qualquer tipo de toque afetivo. Continuou rígido naquela posição, com uma perna cruzada sobre a outra, o queixo voltado para o chão.

-É claro que nós estamos juntos.

Eu ainda não sabia exatamente o que aquilo queria dizer à época. Mas as palavra me fizeram bem. Não me referia somente a nós dois, mas a nós cinco. Eu sabia que podia incluir os dois homens atrás de mim, independente dos temores que eles carregassem a respeito. Conhecia meus dois melhores amigos de infância bem o suficiente para afirmar, sem dúvida, que não se podia separar mais o joio do trigo àquela altura. Stanley e eu teríamos uma discussão pesada naquela noite, antes de deitar. Mas isso não significava que ele recuaria. Stan jamais recuaria. Mesmo Cartman - que elegantemente se retirou daquela conversa -, eu poderia falar por ele quando pensava naquele sangue nos olhos, como ele era uma muralha da qual nos precisaríamos. Eu não diria isso a ele, mas era verdade.

Gregory cobriu minha mão com a dele, mesmo que seus olhos não encontrassem com os meus. Kenny coçou a cabeça.

De repente, o telefone tocou.

Nenhum de nós se moveu imediatamente.

Como se mergulhado em uma anestesia necessária e natural, Gregory se levantou. A xícara de chá ficou esquecida pela metade, ainda espalhando o cheiro de maçã e canela pela sala. Mas aquele chá não seria bebido até o final. Gregory pisava como um homem bêbado, dando a volta na escrivaninha como se precisasse de alguns segundos a mais para se preparar para atender ao telefone, com a orelha ainda quente. Retirou-o do gancho.

-Alô.

Uma pausa. O cigarro que queimava entre seus dedos já tinha a cinza tão longa que estava prestes a cair no tapete. Eu precisaria varrê-lo logo, já havia entendido. Gregory tragou de novo, fechando os olhos como se aquilo lhe desse mais prazer do que qualquer coisa no mundo, quase gemendo baixo. Deixou a fumaça escapar pela boca e pelas narinas.

-Seu filho da puta... - Gregory disse com a voz mais carregada de carinho do que jamais ouvi dele antes.

Aparentemente, Christophe DeLorne estava tão empenhado em encontrar Gregory quanto o contrário. Aquele telefonema era o começo de tudo.



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