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História Liberté - O Justo


Escrita por: caulaty

Capítulo 40 - O Justo


16 de fevereiro de 3645

 

—Eu tô falando que ele é doente da cabeça! - Eu ouvi a voz inconfundível de Cartman vindo da sala de jogos. Minhas sobrancelhas se encolheram de imediato, os meus tênis fazendo um barulho fino contra o chão quando parei de andar bem em frente à porta. - E vocês sabem disso, é por isso que vocês tão me olhando com esses olhões esbugalhados, porque vocês sabem muito bem que ele é louco. Um merda desses não devia estar solto, muito menos carregando arma.

Eu carregava um cesto de toalhas sujas e estava a caminho da lavanderia, mas meu cérebro já não computava mais a tarefa que me foi dada de antemão. Lentamente, abaixei-me no corredor estreito e pus o cesto no chão de carpete, ouvindo a sequência de interações que ocorriam dentro da sala. Todas as vozes eram bastante familiares. A lâmpada do corredor estava desligada. Quando endireitei o tronco, fiquei parado ali no escuro durante algum tempo, meus dedos se remexendo espontaneamente enquanto eu ponderava o conteúdo daquela conversa.

-O que você fez, Cartman? - Ouvi Kenny perguntar em uma voz desconfiada, completamente convencido de que ouvia uma puta baboseira, o que me fez sorrir. Eu pisei na área iluminada em frente ao arco da porta e adentrei o cômodo, mas todos continuavam entretidos demais na conversa para perceber a minha presença, aglomerados na região do sofá e dos pufes, embora nem todos estivessem sentados.

-Eu?! Eu não fiz porra nenhuma, eu tava só conversando com o judeu e ele me atacou que nem um maníaco!

-É, eu não acredito nisso. - Kenny completou, cruzando os braços e sacudindo um pouco a cabeça, um sorriso de entretenimento aparecendo nos lábios. Ele estava de pé, apoiado contra a mesa de sinuca.

Cartman também estava de pé, com as pernas bastante inquietas, se deslocando pelo espaço. Se eu não o conhecesse tão bem, diria até que ele estava nervoso. Havia um ar esquisito dentro daquela sala, denso e desconfortável, e eu podia entender porquê. Talvez ninguém levasse uma queixa de Cartman a sério em circunstâncias comuns, é verdade, mas era tentador levá-lo a sério com o rosto destruído daquele jeito. Só agora o inchaço começava a diminuir, os hematomas tão roxos – quase pretos – começavam a criar uma tonalidade esverdeada em alguns pontos, o que significava que seu rosto estava tentando se curar, mas Cartman ainda era incapaz de abrir o olho esquerdo totalmente. O nariz definitivamente havia quebrado, mas de forma superficial, que Damien havia colocado de volta no lugar e improvisado um molde que ele teria que usar por duas semanas.

-Olha só, longe de mim ficar do lado desse otário. - Wendy disse. Voltei minha atenção a ela, que estava deitada em um dos pufes com Bebe entre as suas pernas, o queixo apoiado no ombro dela, abraçando-a por trás. Gesticulava com as mãos para falar. - Mas independente da merda que o Cartman tenha feito, isso é… Isso é um pouco demais, não é?

-Esse cara sempre me assustou. - Patty disse, assentindo com a cabeça, esticando os braços para entrelaçar os dedos na própria nuca, reclinando-se no sofá. Ela vestia um suéter amarelo enorme. O comentário me fez franzir a testa.

Stan e Clyde já tinham percebido a minha presença, mas os outros não, até onde eu podia ver. Eu já não observava mais de longe.

-É, eu já achei que ele fosse socar a minha cara porque eu derrubei uma caixa.

-Você derrubou uma caixa cheia de revólveres carregados, Jason. - Gregory interrompeu impacientemente, observando a cena com reprovação nos olhos azuis, mas havia um sorriso de zombaria estampado nos lábios. -Ele devia sim ter te socado.

-Foi um acidente!

-Você podia ter matado alguém!

-Tá, mas independente disso. - Wendy interveio, erguendo a mão, falando mais alto do que os outros. Lançou um rápido olhar de repreensão na direção de Jason, que bufou irritado, resmungando alguma coisa para Annie. - E eu não estou dizendo que o Eric tem razão. Eu não estava lá, eu não sei o que aconteceu, mas eu acho que não é assim que nós lidamos com os problemas.

-Todo mundo aqui já achou que aquele doente avançaria em vocês em um momento ou outro, já passou da hora de colocarem uma mordaça nele! - Cartman esbravejou, apontando para qualquer direção com seu gordo dedo indicador.

-Cala essa boca, Cartman. - Eu finalmente soltei com um pouco mais de rancor do que pretendia. Os rostos familiares se voltaram na minha direção; Annie e Jason continuaram conversando baixinho um com o outro, mas também lançaram um olhar breve para mim. Bebe abraçou os próprios joelhos e mordeu o lábio inferior, me olhando com compaixão. Era isso, compaixão, eu tive certeza. Ela sempre percebia as sutilezas das coisas antes do que a maioria.

-Ótimo! O judeu tava lá, ele viu tudo, ele pode contar pra vocês. - Cartman falou empolgado, se aproximando de mim. - Conta como aquele animal me atacou do nada absoluto, vai.

-“Do nada absoluto”?! - Eu podia ouvir o tom da minha própria voz fora de controle, mas aquela conversa toda fazia o meu sangue ferver por razões que eu nem poderia começar a explicar. - Você tava me apertando contra a parede, segurando os meus pulsos, falando como se… Eu nem sei, Cartman. - Cuspi com raiva, trêmulo pela sensação de impotência que ainda parecia tão viva no meu corpo, esquecendo de todo mundo que havia em volta. Mas enquanto eu falava, podia ver Stan descruzando os braços e dando dois passos para frente, logo atrás de Cartman. Eu não tirava os olhos do rosto de Eric, então não tive certeza de qual era a expressão que Stan fazia no momento, mas conhecendo-o bem como conhecia, eu podia ver na minha mente; suas sobrancelhas negras franzidas, os lábios entreabertos, os olhos reluzindo uma raiva que se tornava cada dia mais comum para ele.

-Você fez o quê?! - Stan gritou atrás dele. Kenny havia se desencostado da mesa de sinuca e estava prontamente atrás de Stan, uma mão em seu ombro, fazendo uma massagem discreta que dizia “fica tranquilo”.

Cartman virou o rosto por um instante para enxergá-lo, mas sua atenção prontamente se voltou para mim. Ele chegou um pouco mais perto, mas meu corpo reagiu por instinto com um passo para trás, não por medo dele, mas por desgosto. E ele pareceu magoado por isso, o que foi um peso dentro do meu peito que eu não consegui entender. Porque a expressão no rosto de Cartman não era mais arrogante e furiosa. Ele me encarava diretamente nos olhos, seus olhos cor de caramelo que brilhavam e pareciam me pedir alguma coisa. Que eu calasse a boca, talvez. Mas eu não acreditava que fosse só isso.

-Kyle. - Cartman disse meu nome. E ele nunca dizia meu nome. Eu apenas o encarei de volta em silêncio, a desconfiança transbordando no meu rosto. Ele falava muito baixo, como se não quisesse que mais ninguém escutasse, sabendo que todos os olhos daquela sala estavam em nós dois. Queria chegar mais perto de mim para isso, mas segurava o próprio corpo, apenas um pé para frente. - Qual é. - Ele disse com um sorriso fraco, balançando a cabeça. Não parecia puto. Parecia… Tentar me lembrar que nós éramos amigos de infância. O fato de seu rosto estar tão inacreditavelmente machucado enquanto ele me olhava daquela forma contribuiu (e muito) para que a minha guarda baixasse. - Eu tava só… Era zoeira, tá? Você sabe que era. Você me conhece, cara, eu não ia fazer nada.

-Ele achou que você fosse. - Respondi prontamente, com firmeza. - E eu não o culpo, sinceramente.

Agora, Stan já estava ao meu lado, roubando a minha atenção de Cartman. Pôs a mão grande na parte inferior das minhas costas, também parecendo bastante incomodado que isso havia se tornado um evento público.

-Ele te machucou? - Stan me perguntou com um tom de voz preocupado que ele não usava comigo há tanto tempo. Eu quase tive vontade de sorrir, mas minha cara continuou triste.

-Não. - Eu disse, sacudindo a cabeça.

-Tá, mas eu ainda não acho que a questão seja essa. - Patty começou a falar, cruzando as pernas no sofá. - O Cartman é um babaca, beleza, qual é a novidade? Olha só o que o Toupeira fez com o rosto dele, pelo amor de Deus. E se fosse qualquer um de nós? Tá tudo bem foder com a cara de um companheiro só porque é o Cartman?

-Gente, isso é ridículo. - Kenny disse, ainda de pé, colocando a mão na testa para tirar a franja loira que caía sobre os olhos. - O Toupeira é massa, vocês tão falando como se o cara mordesse as pessoas aleatoriamente. Ele tava defendendo alguém. Não toca no Kyle que ele não te quebra no meio, é super simples.

Stan se virou para ele muito devagar, com um olhar cortante que fez Kenny umedecer os lábios e encolher os ombros.

-Eu não quis dizer desse jeito. - Kenny respondeu baixinho ao silêncio de Stan.

-Eu tenho medo dele. - Ouvi Thomas murmurar. Ele estava sentado no pufe logo ao lado de Wendy e Bebe.

-Você tem medo da sua sombra, Thomas, cala a boca. - Eu cuspi sem pensar, e estaria mentindo se dissesse que me senti mal de imediato. Eu me sentiria mal por isso, sim, em poucos minutos. Mas na hora, estava puto demais para me preocupar com o olhar repreensivo de Wendy. No fim das contas, era verdade. Talvez aquele lugar já estivesse me moldando, me modificando, tornando-me cada dia mais intolerante com as fraquezas que eu mesmo já carreguei. É o preço de uma casca grossa.

-Beleza, mas todo mundo tem um pouco de medo dele. - Clyde disse. E que bom que foi Clyde a fazer esse comentário, porque assim, eu consegui segurar todas as crueldades que se construíram quase que instantaneamente na ponta da minha língua. Eu era mais próximo dele, me importava mais com ele, não insultaria a sua coragem e a sua inteligência com tanta naturalidade. Respirei fundo.

Ao meu lado, Stan abaixava a cabeça para apertar a ponte do nariz com o indicador e o polegar, afastando-se um pouco. Gregory, surpreendentemente, apenas observava tudo aquilo em silêncio, parecendo cansado demais das preocupações pequenas, indisposto a discutir tamanha bobagem. E ele olhava para mim. Aquilo começou a me incomodar, especialmente porque eu não conseguia entender o que havia por trás daqueles olhos azuis. Ele parecia curioso. Nós nos encaramos durante quase cinco segundos, e ele sorriu fraco para mim. Quando os cinco segundos acabaram, foi como se eu saísse de um transe. Aquele curto período de tempo foi suficiente para que as pessoas começassem a falar umas sobre as outras, ou em grupos menores, Kenny discutindo arduamente com Cartman, Jason e Annie concordando que “algo deveria ser feito”, Wendy tentando confortar Thomas, Patty esbravejando para Clyde algum episódio específico em que Christophe foi grosso com ela. Stan havia fisicamente se afastado do grupo. Craig não estava em lugar nenhum.

-Eu não consigo acreditar em vocês. - Eu disse, alto o suficiente para que eles parassem de falar ao mesmo tempo. Eu encontrei os olhos do máximo de pessoas que eu pude antes de continuar, deparando-me com impaciência, com mágoa, com raiva, com insatisfação, com covardia. - Sabem porque o Toupeira dá medo em vocês? Porque ele já viu coisa pior. Porque ele já sobreviveu a coisa muito, muito pior do que a gente consegue imaginar. Patty. - Eu me virei para ela, meu dedo indicador apontando sem que eu me desse conta. - Ele matou dois sapadores que tavam prontos pra te pegar quando a gente foi pra rua, não matou? Ele atirou na cabeça deles sem nem piscar, porque você ficou assustada demais pra usar a arma que tava na porra da sua mão.

Ela pressionou os lábios e desviou o olhar para o teto por um momento, deixando o ar escapar dos pulmões enquanto a sua expressão ficava mais suave, cobrindo uma das bochechas com a mão, a manga do suéter cobrindo até metade dos dedos. Talvez ela só lutasse contra a vontade de chorar, eu não sabia dizer. Mas voltou a olhar para mim quando se sentiu pronta.

-Jason. - Virei meu rosto na direção dele, estudando a sua figura pálida, as entradas calvas do cabelo castanho, as olheiras fundas embaixo dos seus olhos. - O Toupeira não passou horas te ensinando como apagar um homem com um soco no lugar certo porque você não queria pegar em arma? E quando você se sentiu pronto, quem foi que te ensinou a atirar? Aliás, quem foi que ensinou todos vocês a atirar?! - A minha voz ficava cada vez mais alta, eu não tinha mais controle sobre isso. E se tinha, eu havia desistido. - Caralho, não é muito confortável ter alguém pra fazer a merda do trabalho sujo e depois dizer que ele tá fora de controle?! Ele fez com o Cartman exatamente o que ele faz na rua, exatamente o que ele fez quando deram com uma garrafa na minha cara, exatamente o que ele fez quando um sapador tentou estuprar a Bebe quando a gente encontrou ela. Ele fez o que ele achou que tinha que fazer. Vocês não tavam lá, vocês não sabem. Sim, é brutal, é assustador, a gente não sabe lidar com isso, mas depois disso tudo… Depois de tudo o que nós todos passamos juntos, vocês duvidarem de um dos nossos… - A voz morreu nos meus lábios pouco a pouco. Eu me senti sem ar. Deitei a cabeça apenas alguns centímetros para trás, dando alguns passos para enxergar as pessoas para as quais, antes, eu dava as costas. - Olha só quantos nós somos. Quantos nós éramos antes e quantos sobraram agora. Quantos amigos nós perdemos. Se nós não conseguirmos ser fiéis uns aos outros nem aqui, como é que vai ser quando os militares estiverem enfiando ferro quente no cu de vocês pra conseguir a localização dos seus companheiros? Ahn?!

-Kyle… - Wendy disse baixinho, olhando para mim como se eu a estivesse machucando sem saber disso, e ainda assim, havia compaixão nos olhos grandes dela. - Ninguém aqui quis dizer…

-Foda-se. - Interrompi quase em um sussurro, rindo baixo, encolhendo os ombros. Balancei a cabeça, encarando os outros que continuavam em silêncio; Thomas escondia a cabeça entre os joelhos, Kenny tinha uma mão no ombro de Cartman, Wendy apertava Bebe com um pouco mais de força, Patty secava lágrimas silenciosas da bochecha, Annie e Jason encaravam o chão e seguravam a mão um do outro, Clyde assentia sem parar com a cabeça. E Gregory sorria um pouco mais largo para mim. - Foda-se. - Repeti, deixando minhas pálpebras pesarem um pouco. Stan me encarava de lado, longe de nós, a mão segurando a parede bem ao lado da porta, os lábios se torcendo em uma expressão de dor, mas os olhos continuavam rígidos. - Isso vale pro Toupeira, isso vale pro Cartman, nós temos que… Se nós não pudermos cuidar uns dos outros, essa merda aqui não faz sentido nenhum.

Eu me esqueci do cesto de toalhas ao lado da porta, me esqueci das tarefas e do dia normal que seguia até aquele momento.

“Dia normal”. Nenhum dia era normal, não sei a quem eu estava tentando enganar.

Esperei apenas tempo o suficiente para ter certeza de que aquela conversa havia terminado por excesso de constrangimento. Então, arrastei meus pés até a porta de correr da sala, puxando-a com dificuldade, ouvindo a sala retomar algum tipo de distração logo em seguida; pessoas se levantaram, outras continuaram no mesmo lugar, algumas buscaram ocupação imediata com as mãos, outras foram jogar ping pong.

Apertei os olhos quando senti o ar gelado e cortante do lado de fora. Meus pés carregavam meu corpo pesado com dificuldade. Apesar da temperatura, era tão bom (e tão necessários) respirar ar fresco. Não demorou para que eu ouvisse Stan abrindo a porta atrás de mim, caminhando sem pressa até se posicionar ao meu lado, mantendo as mãos nos bolsos. Não precisei olhar para ele para saber quem era.

Alguns instantes silenciosos se passaram, nós dois de pé naquele pequeno jardim adormecido pelo inverno. O chão era de concreto, mas havia grandes canteiros de flor, arbustos e duas árvores que dariam frutas no verão. Uma laranjeira e um limoeiro. Passei a língua pelo canto rachado da minha boca, estreitando os olhos sempre mirados para frente, assim como Stan. Nós não nos olhamos.

-Por que você não me contou? - Ele fez a pergunta que eu sabia que viria eventualmente.

Abaixei um pouco o queixo e percorri minha mão direita pelo topo da minha própria cabeça, sentindo a textura fina de cabelo que já começava a crescer. Logo, eu teria que raspar de novo. Sacudi a cabeça sem saber porquê, sem dizer que sim ou que não, mantendo os olhos fechados. Quando decidi falar, foi olhando para ele.

-Não achei que fosse importante.

-Pareceu importante o suficiente. - Ele respondeu com um riso amargo, os olhos presos na laranjeira seca, me evitando.

-Você já tem coisa suficiente na cabeça, Stan.

Ele assentiu devagar, respirando fundo, deixando escapar um gemido fraco. Tirou a mão do bolso para coçar o olho com o polegar. Eu podia ver a raiva crescendo em blocos dentro dele. Coloquei o pé em frente ao seu corpo, me posicionando de forma que ele não poderia mais evitar olhar para mim.

-Fala. - Foi a única coisa que eu disse.

Ele balançou a cabeça negativamente, tentando encarar a construção amarela da recepção do motel, mas eu segurei um dos seus braços com força.

-Fala, Stan. - Repeti.

Ele puxou o braço com tanta força que quase me empurrou para trás, os olhos finalmente encontrando os meus, incendiando em tudo o que ardia dentro do seu peito e ele tinha que apenas engolir, porque não conhecia outra maneira de lidar com as coisas. Torceu o rosto em uma expressão de dor, encarando os próprios pés por um instante, tentando se manter sob controle, mas suas mãos formavam punhos dentro das mangas longas do casaco grosso.

-Cartman. Ele tentou te machucar? - Perguntou de maneira agressiva, aproximando o rosto do meu. Parecia uma acusação.

-Eu não sei. - Respondi firmemente, sem hesitar.

-Como você não sabe?!

-Eu não sei! É o Cartman, eu não sei, ele não tava… Eu não acho que ele fosse fazer nada de verdade. Ele só tava me segurando e falando umas coisas estranhas, mas eu…

-Que coisas estranhas?

-Isso não importa.

Stan mordeu por dentro da bochecha e cobriu a boca com a mão por um momento. Sua respiração quente formava vapor ao encontrar o ar frio.

-Bom, ele te assustou?

-Sim, um pouco.

-Olha só, todo mundo sempre quis dar um pau no Cartman. Se ele fez alguma coisa contigo, porra, eu vou até o Toupeira e agradeço pessoalmente por ele ter te defendido, mas…

Ele parecia se policiar com cada pequena coisa que saía de sua boca e eu sabia o motivo. Nós estávamos fazendo essa dança há meses, pisando em ovos um com o outro, tentando não tocar em feridas que continuavam abertas, em construções frágeis da nossa relação que poderiam entrar em colapso se um de nós dissesse a coisa errada. Mas eu já estava farto dessa merda.

-O quê?!

-Ele simplesmente não erra! Pra você, ele não erra. Nunca. Você defende esse cara com tanto tesão depois de ele quebrar a cara do seu amigo, quando você mesmo diz “ah, é o Cartman, eu não acho que ele ia me machucar”. Eu só fico me perguntando se você não teria uma reação diferente se tivesse sido qualquer outra pessoa. Se você não ficaria um pouquinho em dúvida. - Quando eu fui abrir a boca para responder, ele ergueu a mão para que eu esperasse. - E, aliás, eu tenho certeza absoluta que ele não teria arregaçado o Cartman daquele jeito se o gordão estivesse encurralando qualquer outra pessoa. Eu não tô com saco pra sentar aqui e fingir que isso tudo é sobre companheirismo e fidelidade e o caralho, eu já provei o suficiente a minha fidelidade, eu dei meu sangue pra esse cara, eu salvei a vida dele duas vezes e salvaria uma terceira se precisasse, porque não tem nada a ver com isso. Tem a ver com vocês dois. Todo mundo enxerga, todo mundo sabe porque o Cartman ficou daquele jeito, e eu sou o trouxa que fica no meio de duas pessoas que obviamente…

-Cala a boca. - Eu o segurei pelos antebraços, puxando-o contra mim. Dessa vez, Stan não hesitou. Em partes, pareceu aliviado que eu finalmente o interrompi. Nós nos encaramos de perto, sua expressão se fechando gradualmente enquanto ele engolia a saliva na boca, não mais tentando escapar de mim. - Cala a boca… - Repeti de forma muito mais suave, pedindo perdão com os olhos. - Somos eu e você, Stan. Eu e você. -As minhas mãos subiram trêmulas dos braços dele até as laterais do seu pescoço, depois pelo maxilar, puxando seu rosto para mais perto de mim até que minha testa encostasse na dele. Seu corpo estava tenso, desconfortável, mas ele fechou os olhos e assentiu com a cabeça devagar. - Mesmo que o mundo acabe.

Era isso que nos prometíamos um ao outro quando éramos crianças. Quando crescemos o suficiente para perceber que vivíamos em um mundo de merda. Quando ainda não era tudo tão complicado, quando não éramos namorados ou amantes ou qualquer outra coisa que colocasse nosso coração na linha, nosso ego e tantas outras coisas que vem junto com o amor romântico. Quando as coisas eram o que eram e nada mais. E Stan era um herói para mim como eu era um herói para ele. Isso ainda era verdade. Tudo entre nós ainda era verdade. Eu olhava dentro do azul-escuro daqueles olhos e enxergava tudo o que eu precisava naquele mundo cão, eu bebia daquela força silenciosa, daquela bondade, daquele amor incondicional. Eu estaria perdido em um mundo sem ele. E precisava que ele entendesse isso. Não me importava mais o nome que nós tínhamos, o tempo que duraríamos, não me importavam mais os termos sociais daquele relacionamento. Me importava somente que estávamos nós dois ali, de pé, no frio, compartilhando o calor, capazes de olhar nos olhos um do outro e enxergar a verdade.

Eu não tinha qualquer intenção de negar as coisas que ele dizia sobre minha relação com o Toupeira, porque nada daquilo era mentira. Nada, isto é, além do que fazia Stan pensar que os meus sentimentos por Christophe mudavam qualquer aspecto dos meus sentimentos por ele.

-Eu não sei por quanto tempo eu aguento isso. - Ele sussurrou, finalmente relaxando os ombros sob o toque das minhas mãos.

Fui o primeiro a afastar meu rosto para encará-lo.

-Você não precisa. - Murmurei em resposta, pressionando meus lábios para segurar a expressão que revelava o quanto me doía dizer isso.

-É. Eu preciso. - Ele deu um passo para trás, depois outro, encolhendo os ombros. - É isso que a gente faz agora. A gente aguenta.

-Stan…

-Olha só, eu preciso ir trabalhar. - Ele interrompeu, afastando-se de mim com uma pressa que nem fazia questão de disfarçar, mas continuou com o corpo virado em minha direção durante algum tempo. - Tá tudo bem, Kyle. Só esquece o que eu disse.

E ele foi.

Apoiei minhas mãos nas coxas e me inclinei para frente, encarando o chão de concreto úmido pela chuva que passara de manhã. Meu estômago parecia pesado de repente. Eu não tive muito tempo para respirar o ar gelado que machucava minhas narinas e pulmões antes que um barulho me distraísse; duas batidas na porta de vidro a alguns metros de mim. Endireitei o corpo e olhei por cima do ombro, encontrando a figura de Gregory parado em frente à porta, mas do lado de dentro, eu o enxergava através do vidro que precisava drasticamente de uma limpeza. Eu não me movi, então, Gregory abriu a porta.

-Tá frio aí fora, entra aqui. - Ele disse alto para que eu pudesse ouvir.

Ele usava um suéter creme de gola alta que o fazia parecer o almofadinha arrogante que ele era, e surpreendentemente, isso me fez sorrir enquanto eu caminhava em sua direção, meus pés ainda um pouco anestesiados pela coisa toda. Meu corpo parecia mais pesado do que era. Quando cheguei perto o suficiente, Gregory estendeu a mão quente para cobrir minha orelha gelada pelo frio e ofereceu um sorriso fraco, dando espaço para que eu entrasse na sala. A maioria das pessoas já havia saído, o único que sobrou foi Clyde. Craig havia aparecido também e os dois jogavam ping pong distraidamente.

-Você tá bem? - Gregory perguntou, preocupação transbordando no rosto dele. Eu encolhi os ombros.

-Tô, eu acho.

Os seus dentes perfeitamente brancos e retos apareciam entre os lábios. Ele escorregou a mão pela minha bochecha e me deu dois tapinhas carinhosos antes de afastá-la.

-Você disse tudo o que eu teria dito, Kyle, sem tirar nem pôr. Foi muito bom te ouvir.

Eu soltei um riso incrédulo para isso, deixando que meu olhar caísse para o chão contra a minha própria vontade. Eu não me sentia disposto a ter aquela conversa, qualquer que fosse, quando parecia que tudo o que eu estava fazendo era egoísta e errado. Mas Gregory parecia enxergar em mim alguma coisa diferente, alguma coisa que ele ainda não estava pronto para verbalizar. Quando levantei a cabeça, encontrei compaixão no rosto dele. Ele já não sorria mais.

-Você acha que a gente deveria se preocupar com o Cartman? - Me perguntou em um tom sério demais até para ele. Essa pergunta carregava mais responsabilidade do que eu estava disposto a segurar.

-Como? - Perguntei, embora eu soubesse muito bem do que ele estava falando.

-Confiança é uma coisa muito importante aqui, Kyle. - Ele murmurou baixinho, olhando através do vidro da porta. - Você mesmo disse.

-É… Mas sei lá, Gregory. É o Cartman, sabe? Ele sempre foi… Peculiar.

-Você não acha que a gente diz isso com frequência demais? - Os seus olhos azuis pareciam feitos de gelo quando ele voltou a me fitar. - “É só o Cartman”. Nós sempre justificamos muito as coisas que ele fazia com esse argumento.

Eu franzi o cenho, tentando ler as nuances do seu rosto, mas era uma tarefa impossível.

-Onde você quer chegar, Gregory?

Durante alguns segundos, ele encarou o nada absoluto com uma pequena abertura entre os lábios, as pupilas inquietas passando de um lado ao outro como se ele tentasse resolver um problema matemático na própria cabeça, mas não queria que ninguém soubesse qual era. Cruzou os braços e encolheu os ombros casualmente, mudando a expressão de forma tão drástica que pareceu um psicopata, agora sorrindo com o canto da boca como se nada houvesse.

-A lugar nenhum, foi só uma pergunta.

-Você não acha que ele faria alguma idiotice, né? - Perguntei, soando mais assustado do que gostaria, dando um passo muito pequeno à frente para me aproximar dele. Lancei minha atenção a Clyde e Craig apenas para ter certeza de que eles estavam distraídos no próprio jogo, mas era impossível não escutar o que nós dizíamos. E parecia errado.

-Todo mundo é capaz de qualquer coisa, Kyle. - Foi a resposta simples que ele me deu. E, sabendo que aquilo me deixaria mais aflito, repousou a mão no meu ombro e me deu um aperto muito parecido ao que meu pai daria ao tentar me confortar. - Não vamos nos preocupar com coisas que ainda não aconteceram, se é que vão acontecer. Vamos focar nas coisas que podem ser resolvidas agora. - Ele levantou um pouco mais os cantos da boca e alisou meu ombro com o polegar algumas vezes antes de tirar a mão de mim. - E por falar nisso, tem algo que eu gostaria de te perguntar.

Ergui o queixo atentamente para escutá-lo, abrindo um pouco mais os olhos.

-O quê?

-Standish me repassou um serviço.

-“Um serviço”?

-É, um trabalho, uma missão, como você queira chamar. E ele me disse pra escolher alguém pra ir comigo, de preferência alguém com pouca experiência. Sabe, pra que eu possa ensinar.

Eu pisquei algumas vezes. Por um momento, todo o estresse que corroía os meus músculos se dissipou. Eu me esqueci de todas as preocupações envolvendo Cartman, esqueci da minha conversa deprimente com Stan e do aperto no meu coração ao lembrar de Christophe trêmulo, fora de controle. O sorriso que brotou na minha cara naquele momento foi o mais honesto que eu ofereci em muito, muito tempo.

-E você tá me chamando?

-Honestamente, eu não consigo pensar em alguém que esteja mais pronto.

-E o que a gente vai fazer? - Eu não conseguia esconder a empolgação na minha própria voz, a adrenalina já se construindo dentro de mim. Finalmente, alguém estava me dando algo pelo qual esperar, algo que me mantivesse em movimento. - É o quê, um sequestro?

Gregory riu.

-Não, nada tão empolgante. É coisa simples, o governo canadense precisa de alguns documentos que estão guardados no Lar Histórico, nós prestamos esses serviços em troca do financiamento que eles nos oferecem. É coisa rápida, mas eu acho que seria muito bom se você fosse.

-Porra, Gregory, você não tem que perguntar duas vezes.

-Que do caralho! - Nós ouvimos a voz entusiasmada de Clyde rompendo no ar, junto com o barulhinho da bola de ping pong que ele não conseguiu pegar. Quando voltamos nossa atenção ao som, ele segurava o quadrado de ladrilho na mão direita e repousava a outra mão no quadril, sorrindo largo como a criança grande que ele era. Olhando para o seu rosto jovial, eu deixei escapar um riso fraco, uma pequena cócega de alegria brotando em meu peito por perceber que Clyde ainda preservava um pouco da inocência que tinha antes de tudo isso começar. - Eu posso ir junto?

A pergunta pegou Gregory totalmente de surpresa. Ele riu, mas havia uma arrogância naquele riso, como se Clyde tivesse acabo de perguntar a ele “se eu bater asas, eu vou voar?”. E Clyde percebeu isso. Percebeu que a sua pergunta não era exatamente levada a sério. Gregory sacudiu um pouco a cabeça sem dar resposta, umedecendo os lábios.

-Quem sabe na próxima, Clyde. Isso é serviço de dois. - Respondeu enquanto colocava o braço em torno dos meus ombros. Gregory tinha essa habilidade sublime de ser extremamente educado e, mesmo assim, destruir a autoestima de alguém. Não era por maldade, era apenas o jeito que ele olhava para todo mundo como se estivesse falando do topo de um pedestal. A aprovação de uma pessoa como ele, por mais que eu odiasse admitir, me fazia sentir muito orgulho.

Mas foi um momento agridoce, porque a expressão no rosto de Clyde se parecia muito com a de um filhote de vira-lata que foi chutado. Então, meus olhos cruzaram com os de Craig, que pareciam acinzentados sob a luz forte da sala. Ele também segurava o ladrilho, seu rosto rígido e sem vida como um tijolo. Logo, ele virou de costas para nós, de frente para a mesa de ping pong.

-Anda logo, Clyde, pega a merda da bola. - Disse. Clyde levou alguns instantes para se mover.



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