1. Spirit Fanfics >
  2. Liberté >
  3. O Limite

História Liberté - O Limite


Escrita por: caulaty

Capítulo 42 - O Limite


05 de março de 3645

 

O treinamento havia acabado de terminar. Eu esfregava o suor do rosto com uma pequena toalha branca, passando-a pelos meus ombros expostos e a parte superior das minhas costas. Eu usava só uma regata cinza muito solta no meu corpo, de algodão macio, mas o suor fazia com que o tecido colasse nas minhas costas e peito. Ainda fazia um frio do caralho, embora as temperaturas já não fossem mais negativas e a neve já não fosse mais um problema. Mesmo assim, depois de passar duas horas ininterruptas treinando taekwondo com a Nichole – e levar uma surra dela – eu só sentia calor. Joguei a toalhinha em cima do banco e dei um gole longo da garrafa de água, passando a mão livre pelo topo da minha cabeça recém-raspada novamente. Foi então que eu ouvi o estrondo.

Franzi o cenho e lancei um olhar à Nichole, que estava próxima aos armários onde guardávamos nossas coisas, soltando os cabelos crespos, sem reagir ao barulho. A sua pele também reluzia de suor sob a luz fraca da sala de treinamento. Vestia preto, a calça e a regata abraçando confortavelmente as curvas do seu corpo. Nossa, ela parecia ter músculos de aço, embora não fosse uma pessoa grande. Enquanto eu olhava para ela, veio um som ainda maior, como um objeto muito grande caindo no chão. Um móvel, talvez.

-Que merda é essa? - Perguntei, não necessariamente para ela, colocando a garrafa no banho sem me lembrar de tampá-la. Puxei meu casaco de um dos cabides ao lado da porta, vestindo-o sem parar de andar, esquecendo-me dos sapatos. Senti frio assim que pisei para fora da sala, mas o barulho parecia muito próximo, ainda mais forte quando cheguei ao corredor. Agora, eu podia escutar também as vozes de várias pessoas, mas não pareciam conversas. A comoção toda vinha da sala de jogos. Nichole veio logo atrás de mim. Quando lancei um olhar cauteloso a ela, mais confuso do que qualquer coisa, senti meu estômago embrulhar pela seriedade na sua expressão. Ela parecia preparada para alguma coisa muito, muito ruim.

Talvez por isso tenha soltado um grunhido irritado ao enxergar o verdadeiro motivo do barulho. Eu apenas congelei na porta da sala de jogos, os lábios entreabertos enquanto meus olhos escaneavam a cena, incrédulos de que aquilo podia ser real.

-Isso não pode ser sério. - Murmurei com a mão no batente da porta, pisando com cuidado na sala, estreitando os olhos. Eu soltei uma risada cínica, mas não estava achando nada engraçado. Era apenas uma reação espontânea de puro e genuíno choque.

A adrenalina se construiu dentro do meu sistema em menos de um segundo. A primeira coisa que me assustou foi o clima de abstenção que tomava conta daquela sala cheia, sabe-se lá quantos olhos assustados, até mesmo empolgados, porque talvez nós, rebeldes, tenhamos uma sede anormal por sangue escorrendo. Mas ninguém parecia disposto a intervir de imediato, enquanto Stan – e meu cérebro levou alguns instantes para reconhecê-lo – estava montado em um outro corpo no chão, lançando soco atrás de soco, os cabelos pretos completamente bagunçados e o rosto vermelho, os ombros caídos para frente, esquecendo-se de tudo o que havia aprendido sobre luta corporal no último ano, movido apenas por pura e genuína raiva. Raiva como eu nunca vi nele antes. Aliás, raiva como eu nunca vi em ninguém.

Eu não podia enxergar seus olhos, ele estava de costas para mim. O ângulo também cobria a pessoa que estava embaixo dele, mas eu não precisava enxergá-lo para saber. E em dois segundos, Christophe segurou o punho cerrado dele que descia com força e usou o próprio peso para atirá-lo de lado, erguendo-se com pressa, passando a mão logo embaixo do nariz para limpar o sangue. Stan, pego de surpresa, bateu com a cabeça no chão e grunhiu de dor por um instante; caiu sobre os pés de Annie, que deu dois passos nervosos para trás. Quando ela foi se agachar para ver se ele estava bem, Stan já estava de pé e já corria na direção de Christophe novamente. E enquanto isso, eu juro por tudo que é mais sagrado, Christophe ria. Ele ria. Não era um riso maníaco, descontrolado, era bastante sutil. Não estava apenas no sorriso malicioso em seus lábios, mas também no brilho em seus olhos, no divertimento estampado em seu rosto inteiro. Ergueu um pouco os braços como se convidasse Stan a fazer exatamente o que fez, um gesto que dizia explicitamente “é só isso?”. Aquilo me embrulhou o estômago. Era muito diferente da atitude completamente descontrolada que o fez atacar Cartman. Stan, sim, estava fora de si. Mas Christophe… Christophe parecia se deleitar disso, consciente de tudo o tempo inteiro, como se aliviasse uma vontade que o incomodava há meses. Havia satisfação ali.

Apesar dos hematomas em seu rosto que ficariam inchados, das dores pelo corpo de todos os impactos recebidos, ele ainda parecia um adulto brincando de luta com uma criança. Mesmo quando Stan o empurrou para trás com a força do próprio corpo, agarrando seu tronco para derrubá-lo novamente, e as costas de Christophe bateram com tudo na mesa cheia de cartas de baralho cuidadosamente organizadas que voaram por todos os lados quando a mesa se virou. Mas Christophe não caiu, nem deixou que Stan caísse. Queria brigar de pé.

E nos poucos segundos em que tudo isso acontecia, eu consegui desviar a atenção daquela batida de trem que se dava bem à minha frente, encontrando a silhueta familiar de Kenny de costas para mim, um pé para frente e o outro para trás. Toda a sua linguagem corporal indicava que ele queria se mover, queria fazer algo a respeito, mas não fazia ideia do quê. Se Stan estivesse se machucando de verdade, certamente já teria se colocado no meio. Mas era difícil reagir quando os dois pareciam estar tirando proveito da coisa. Puxei o moletom dele de forma mais agressiva do que pretendia, fazendo com que se virasse para mim.

-Que merda é essa?! - Perguntei, quase gritando. - O que aconteceu?

Kenny ergueu as mãos em defensiva, seu rosto genuinamente confuso.

-Eu não faço a menor ideia, cara. A gente tava jogando pôquer e aí, do nada, o Stan pulou em cima dele igual um louco!

Desviei minha atenção de volta aos dois, esquecendo meus lábios abertos pelo choque de enxergar Christophe empurrando Stan com força contra a porta de vidro – e por um instante, eu tive certeza de que ela se quebraria – com o braço atravessado contra a garganta dele, pressionando com força o bastante para que Stan chegasse a engasgar. Mas a maneira com que ele encarava o rosto de Christophe tão próximo… Seus olhos eram de um azul-escuro que sempre tinham algo de pacífico, sempre emanavam tranquilidade e uma pureza tão difícil de se encontrar no mundo, essa era uma das coisas que mais me mantinha atraído por ele. Mas naquele momento, porra, os olhos de Stan eram irreconhecíveis. Eram camadas e mais camadas de ódio deliberado, como se ele só enxergasse vermelho à sua frente. A única coisa que ele queria, a única coisa de que precisava era machucar Christophe.

-Resolveu virar homem, foi? - Aquela voz de sotaque francês pesado murmurou com tanta satisfação que eu dei alguns passos à frente para me aproximar dos dois, mas não tive tempo de reagir porque a resposta de Stan, curta e certeira, veio primeiro: ele bateu com a própria testa na de Christophe com tanta força que o fez cambalear para trás. Eu parei de andar.

Deve ter sido igualmente doloroso para os dois, mas esse foi o momento em que a diferença no nível de experiência entre os dois ficou mais evidente, porque Christophe sabia engolir a própria dor com uma maestria impressionante, como se aquilo fosse alimento para a raiva dele. Respondeu com um soco tão forte bem na bochecha de Stan que seu corpo bateu contra o vidro por conta do impacto e ele grunhiu alto, segurando o próprio maxilar, franzindo o nariz e apertando os olhos. Idioticamente, eu achei que talvez isso fosse suficiente. Que a coisa terminaria por aí. Ledo engano meu.

-Stan! - Eu chamei, desejando com todas as forças que ele simplesmente olhasse para mim, que talvez isso seria o bastante para quebrar qualquer que fosse o encantamento sob o qual ele estava, mas Stan parecia incapaz de escutar e enxergar qualquer coisa que não fosse o homem bem à sua frente. Avançou de novo, seco, com a visão debilitada, errando o primeiro soco. Ele avançava para cima de Christophe, forçando-o a andar para trás. Tive um relance da expressão no rosto de Christophe, os olhos igualmente sedentos, um sorriso curioso na cara enquanto ele lambia sangue do lábio inferior cortado, segurando com firmeza o próximo soco de Stan, os dois respirando pesado e se encarando como se nada mais existisse.

-Seu filho da puta. - Stan quase sussurrou, o tipo de sussurro carregado de rancor que consome a voz, mas eu estava próximo o bastante para entender. Quando recuou com o punho, em vez de morar no rosto, foi direto ao estômago. A proximidade fez com que eles se enroscassem de novo, cambaleando para mais perto do sofá, esbarrando em gente no meio do caminho.

-Tá bom, já chega, caralho. Quantos anos vocês têm?! - Eu gritei para os dois, fazendo menção de me aproximar para separá-los fisicamente, sabendo muito bem que eu provavelmente levaria na cara no meio do processo, mas foda-se. Era difícil de descrever com precisão o que eu sentia diante dos corpos atracados dos dois; eu estava com raiva deles, foi a minha reação imediata, mas também havia um nó de culpa em meu estômago e uma excitação que eu atribuía à adrenalina no meu próprio corpo. Antes que eu pudesse intervir, uma mão me puxou pelo ombro.

-Eles só vão ficar mais putos se for você. - Ouvi a voz de Gregory antes mesmo de me virar para enxergar sua expressão indiferente. Não me movi. Eu sabia que ele tinha razão. E de certa forma, não sei ao certo como explicar, mas vê-lo foi um alívio. Gregory sempre me transmitia esse falso senso de segurança, como se ele pudesse resolver todas as coisas com as quais eu não sabia lidar. Ele não estava na sala antes, pelo menos não que eu tenha visto, mas o barulho da comoção atraía mais gente. Gregory se aproximou dos dois, que continuavam lutando, construindo uma tensão para ver quem soltava primeiro. - Ok, rapazes, vocês já liberaram bastante testosterona por hoje.

Gregory não estava particularmente abalado pela situação; quase havia tédio em sua voz, como se ele preferisse estar lidando com outras coisas no momento. Nós sairíamos para a missão em poucas horas e eu sabia que ele estava ocupado preparando as coisas; eu sempre sentia que ele ficava incomodado quando as pessoas perdiam o foco da luta para concentrar nas pequenas batalhas diárias de convivência. Eu não sei até que ponto o que houve em seguida foi acidental, mas Christophe ergueu o tronco e bateu seu cotovelo com toda força no rosto de Gregory quando foi colidir o punho na cara de Stan. Eu corri para me aproximar dele, sentindo a raiva ferver ainda mais dentro de mim enquanto levava as mãos ao rosto de Gregory, mas ele tinha a cabeça baixa e a mão cobrindo o nariz que sangrava.

-Caralho. - Ele sussurrou, quase esbarrando em mim enquanto se afastava dos dois.

-Você tá bem? - Perguntei com certa aflição, percebendo que a coisa entre os dois ficava ainda mais violenta, o que foi a deixa para Kenny e Standish (que havia acabado de pisar no cômodo) intervirem quase que de imediato, cada um agarrando por trás seu respectivo foco de preocupação.

Gregory continuou curvado para frente, não me respondeu de imediato. Mas assentiu com a cabeça, mantendo os olhos fechados com força, formando rugas em volta. Enquanto isso, eu observava a tentativa de apartar duas pessoas que não queriam ser separadas por nada nesse mundo. Standish agarrou Christophe por trás sem qualquer receio de se machucar, mas o contato fez com que Christophe se debatesse com força para se soltar daqueles braços ainda mais largos que os seus. Parecia um bicho selvagem desesperado com qualquer senso de restrição, e talvez o fato de ser Standish adicionasse um pouco de sal à ferida. Standish não aliviou a pressão em momento algum, puxando-o contra si de forma protetora, as costas de Christophe pressionadas com força contra o seu peito largo. Enquanto isso, Kenny não conseguia nem sequer segurar Stan no mesmo lugar, mas logo Cartman surgiu sabe-se lá de onde para ajudar a puxá-lo.

Assim que conseguiram fazê-los soltar um ao outro, Christophe cuspiu o sangue grosso em sua boca misturado com saliva, atingindo a bochecha de Stan em cheio, o que pareceu despertar um outro nível de fúria.

-Chega, Marsh. - Cartman disse com desprezo quando Stan teve a força de um touro para arrastar Cartman e Kenny junto com ele ao se aproximar novamente de Christophe, que ria com os dentes cheios de sangue, mas Standish também recuou, trazendo-o consigo.

-Qual é, deixa o moleque brigar uma vez na vida. - Christophe disse, ainda sorrindo, impulsionando o corpo para frente, mas já não tentando se libertar de Standish com tanto empenho. - É a primeira vez que ele faz alguma merda que me dá orgulho.

-Eu vou arrancar os teus olhos, seu merda! - Stan gritava, enquanto todos eles falavam ao mesmo tempo.

-Esse psicopata nem merece o teu tempo. - Cartman dizia, o rosto ainda marcado pelos hematomas que Christophe deixou, o rancor explícito em sua voz. Ele fazia a maior parte da força física para segurá-lo, o que não parecia tão difícil para um homem do seu tamanho, mas mesmo assim… Eu não sabia de onde caralhos Stan havia tirado a força de um touro naquele momento. Ele sempre foi o tipo de pessoa que se consideraria grande, claro, mas eu nunca o tinha visto tomado por uma raiva tão forte a ponto de suas mãos tremerem.

Essa era a parte mais dolorosa de assistir.

-Tá tudo bem. - Standish dizia de forma mais íntima para Christophe. - Não provoca mais, só deixa.

-Me larga, caralho! - Christophe gritou em retorno, desviando a atenção de Stan pela primeira vez, olhando o homem por cima do ombro. Usou os braços para se livrar dele, agora de forma mais sã, ainda agoniado para se afastar. - Eu não vou fazer merda nenhuma, só me larga!

Standish obedeceu. Havia uma calma a respeito dele, semelhante à de Gregory, como se ele estivesse acostumado a separar as brigas das crianças. Ou pelo menos era assim que eu imaginava que ele visse esse tipo de coisa. Eu também havia criado esse apego estranho a ele desde a nossa conversa na cozinha. Pensando em retrospectiva, acho que esse foi o propósito de toda aquela conversa; me fazer confiar nele. E deu certo. Por mais que eu quisesse ter cautela, e ainda me sentisse estranho pela forma esquisita com que se comportava, eu também me sentia seguro perto dele. Isso também tinha a ver com o quanto Standish amava Christophe. Era daí que vinha boa parte do meu carinho por ele, eu sabia.

Kenny deixou o trabalho braçal para Cartman, mas ao mesmo tempo, ele foi o responsável pela coisa não se agravar ainda mais. Porque colocou uma mão de apoio no ombro de Stan e falou baixo em seu ouvido, apenas com ele, trazendo-o de volta à realidade. Eu não ouvia o que Kenny falava, mas apesar de serem quase sussurros, havia uma firmeza em sua expressão e seu tom. Não conseguiria alcançar Stan de outra forma. Não sei o que ele disse para que Stan parasse de tentar avançar, mas não foi o bastante para que ele tirasse seus olhos selvagens de Christophe, que já se afastava em busca de um cigarro nos bolsos.

-Não tem nada pra ver aqui. - Gregory disse aos que continuavam observando de pé na sala, curiosos por um desfecho mais dramático. Ele já parecia suficientemente recuperado da dor paralisante em seu nariz, soando apenas irritado.

Stan se afastou de Kenny e Cartman com certa hostilidade, sem dizer uma palavra, caminhando em direção à porta de vidro para sair. Eu ainda passei alguns segundos parado, incerto de se essa seria mesmo uma boa hora para segui-lo, mas era o primeiro impulso do meu corpo. Dei uma última olhada em Christophe, surpreso por encontrá-lo me encarando de volta, notando a minha presença pela primeira vez, um cigarro apagado entre os lábios, a postura relaxada. Ele estava de lado, a cabeça sutilmente virada em minha direção. Não havia grande coisa em seu olhar; ele não era exatamente fácil de se ler, mas naquele dia específico, sua expressão era fria como pedra. Não havia vergonha, exaltação, culpa, orgulho, nada. Eu lancei a ele um olhar que comunicava: “eu falo com você depois”. Se ele compreendeu, não demonstrou reação.

 

Quando cheguei ao nosso quarto, havia três camisas jogadas na cama, uma sobre a outra. Franzi o cenho enquanto fechava a porta suavemente, bloqueando os raios fortes de sol que brilhavam naquela tarde. Stan caminhava de um lado ao outro do quarto, um par de sapatos debaixo do braço, a porta do armário esgaçada, o olhar vago procurando alguma coisa. Toda aquela energia pulsante agora estava confinada a um espaço pequeno em que havia apenas nós dois, toda aquela raiva estava direcionada a mim. Isso ficou muito claro quando ele levantou a cabeça, me oferecendo não mais do que um olhar de relance que comunicava o quão insignificante era a minha presença, porque ele estava fazendo algo mais importante. Eu sabia que estava pisando em gelo fino que poderia quebrar a qualquer segundo. Então, pisei com cautela.

-Eu juro por Deus, - Ele começou, pegando a mochila vazia sobre a cadeira para socar os sapatos com força dentro, grunhindo baixo. - se você veio me dar uma lição de moral sobre bater no seu amiguinho, eu não sei o que eu sou capaz de fazer.

-Eu não vim te dar lição nenhuma. - Respondi sem muita honestidade, porque eu ainda não podia acreditar que eles conseguiam ser tão idiotas. Mas àquela altura, isso não importava. Eu estava mais preocupado com ele do que qualquer outra coisa. Um dos seus olhos ficaria inchado no dia seguinte, o lábio inferior também, e ele tinha um hematoma marrom na bochecha que estaria roxo em questão de algumas horas. Se movia como se as costelas doessem também. Eu queria chegar perto dele, pedir para que ele me deixasse ver melhor, mas após gastar alguns segundos observando-o jogar roupas dentro da mochila de qualquer jeito, a pergunta que deixou meus lábios foi outra. - O que você tá fazendo?

-O que parece que eu tô fazendo?! - Tudo que saía da boca dele era algo muito próximo de um grito. Ele abriu a gaveta do meio, onde ficavam as meias, catando quatro pares quaisquer. Dois eram meus, mas eu não disse nada a esse respeito. - Eu vou ficar no quarto do Kenny.

-Stan… - Toda a irritação desapareceu da minha voz, assim como o receio de me aproximar dele. Mas só pelos meus passos curtos em sua direção, seu corpo já ficou mais rígido. Terminou de enfiar as meias na mochila, mas continuou segurando um par, olhando para baixo o tempo inteiro.

-Por que você tá aqui? - Ele me perguntou com amargura.

-Como assim?

-Eu achei que você fosse ver como o seu “amigo” tá.

O meu instinto inicial é mandar ele parar de se referir ao Christophe como meu “amigo” com esse tom cruel, mas eu tenho sanidade o bastante para segurar as palavras antes que deixem minha boca. Respiro fundo, desviando o olhar, embora ele continue encarando o bolo do par de meias em sua mão. Ele finalmente o guarda, fechando a mochila. A verdade é que eu não gosto da ideia de deixar qualquer um dos dois sozinho nessas condições – embora eu saiba que é isso que Christophe prefere, provavelmente – porque eu gostaria de saber primeiro se eles estão bem. Mesmo assim, não vir atrás de Stan nem foi uma opção que tenha me passado pela cabeça.

-Você sabe porque eu tô aqui. - Respondi com uma voz dura, percebendo o quanto eu soava raivoso. Era a reação natural do meu corpo para mascarar o quanto eu estava assustado. O quanto eu queria chorar.

-Bom, eu preferia que você não estivesse. - Ele caminhou até o banheiro e voltou em menos de três segundos, agora segurando a própria escova de dentes, guardando-a no bolso externo da mochila.

Eu fiquei parado de pé observando a movimentação dele. Havia tantas perguntas na minha cabeça; eu queria entender o que aconteceu, pedir desculpas, gritar para que ele conversasse comigo em vez de apenas sustentar aquele olhar vazio e fingir que eu não estava bem ali, mas nenhuma dessas coisas fez sentido. O abismo que existia entre nós dois era grande demais para ser amenizado com palavras gentis. Eu já havia tentado isso e falhado miseravelmente. Então, disse a única coisa que me pareceu sensata:

-Talvez isso seja uma boa ideia.

Porque não era preciso ser um gênio para perceber que nós precisávamos de algum tempo longe. Habitar o mesmo espaço constantemente, ignorando todos os fantasmas que dormiam na mesma cama que a gente, tudo isso não havia resultado em nada além de mágoas cada vez mais enraizadas. Mesmo assim, a ideia de não tê-lo mais naquele quarto comigo foi um nó que se formou em minha garganta e trancou minha respiração.

A resposta dele foi uma risada breve e cínica, balançando a cabeça.

-É, agora você pode ir chupar o pau daquele francês de merda e não é mais da minha conta.

Não. Não, não foi isso… Não.

-Você… - Foi a palavra que eu consegui articular, mas o meu rosto ainda queimava e meus olhos lacrimejavam como se ele tivesse acabado de me dar um soco. Não era bem um choro. Não eram lágrimas grossas o bastante para escorrer, apenas uma irritação que deixou meus olhos vermelhos. Eu pisquei algumas vezes. - Espera, você tá terminando comigo?

Ele jogou a mochila sobre o ombro e ergueu as sobrancelhas, caminhando em direção à porta. Mas antes, precisou passar por mim.

-Parece que você não é tão idiota assim. - Ele disse. Eu segurei seu braço com força, enterrando os dedos sobre o tecido grosso do moletom dele, puxando-o contra mim.

-Não! Você não vai sair daqui desse jeito, sem nem me explicar o que aconteceu! - A essa altura, eu gritava na cara dele, quase me colocando na ponta dos pés. A minha raiva alimentava a raiva dele.

-Ah, você quer saber porque eu arregacei a cara daquele filho da puta?! Além do fato de que ele merece?! Além do fato de que ele se esfrega no meu namorado bem na minha cara há um ano?! - Stan nunca havia gritado daquele jeito comigo, o rosto tão próximo do meu, o braço apontando para lugar nenhum apenas para tentar extravasar um pouco da raiva que o corroía por dentro. - Eu tentei engolir, eu tentei ser cordial, eu aceitei jogar cartas com esse filho de uma puta achando que ele também conseguiria agir como um ser humano normal, pra ele virar na minha cara e dizer com aquele sotaque imbecil dele: “você vai perder se não criar culhões, Marsh.”

A imitação que Stan fez do sotaque de Christophe teria sido cômica em qualquer outra circunstância. Mas tudo o que eu pude fazer foi encará-lo com olhos levemente arregalados e o cenho franzido, tentando entender o contexto do que ele me contava. Soltei o braço dele sem perceber. Eu gostaria de poder dizer que Christophe estava se referindo somente ao jogo, mas a perturbação nos olhos de Stan era tão real que as intenções de Christophe nem sequer importavam.

-Foi por isso que você…?

-Eu fiz exatamente o que ele me disse pra fazer. Eu criei culhões. Eu dei a merda da porrada na cara que ele merecia e agora eu tô te entregando pra ele, porque eu não aguento mais, Kyle! Faz a porra que você quiser, trepa com ele até esfolar, é exatamente isso que você sempre quis! Só me deixa em paz, eu cansei de ser teu capacho.

Quanto mais alto ele gritava, mais eu me encolhia. Ele cuspia ao falar.

-Você não tá falando sério. - Eu disse com a voz mais paciente que pude, erguendo as mãos para pedir calma sem ter que falar. - Você precisa de tempo, eu sei, eu vou te dar isso. Eu entendo.

-”Você entende”. - Ele riu de forma tão sarcástica que quase me fez pensar que havia uma outra pessoa à minha frente, alguém que eu não conhecia. E o meu estômago doía por saber que eu havia feito isso com ele. - Como você é bondoso. Vai à merda, Kyle, eu não preciso de “tempo”. Eu preciso é que você vá tomar no cu.

Ele saiu sem esperar resposta, abrindo a porta com um estrondo, deixando-a aberta. A claridade do sol invadiu o quarto e cegou meus olhos. Respirei fundo. Eu sabia que aquilo não seria o fim, não podia ser. Sabia que, uma hora ou outra, ele se arrependeria de ter perdido as rédeas. E nem digo isso por achar que ele tivesse do que se arrepender, porque para ser honesto, parte de mim sentia alívio; ele estava sendo honesto comigo como não havia sido desde que tudo aquilo começou. Mas o arrependimento viria porque Stan era uma pessoa boa demais para dormir bem depois de mandar alguém à merda. E eu estava disposto a esperar quanto tempo fosse para poder conversar com meu melhor amigo, não com aquele homem magoado que havia acabado de sair pela porta.

 

Depois de uma hora de choro silencioso no chuveiro, eu me senti preparado para encarar o Christophe.

 

Não precisei ir muito longe para encontrá-lo. Assim que abri a porta do meu quarto, ele estava a poucos metros de mim, encostado na grade da varanda. Era estranho vê-lo sem um cigarro. Ele encarava os próprios punhos machucados, os nódulos dos dedos vermelhos, o rosto ainda mais inchado que o de Stan. O sangue começava a secar em seu lábio. Eu me aproximei com cautela e ele levou algum tempo para virar o rosto em minha direção, embora ele já tivesse sentido minha presença assim que eu abri a porta. Eu sabia disso. Já conhecia a audição de cachorro dele.

-Ei. - Falei baixinho, sentindo-me despreparado para ter essa conversa logo de cara. Pensei que teria pelo menos a caminhada até a sua porta para pensar no que dizer. Christophe não se moveu. Eu parei ao seu lado, apoiando minha mão na grade, de frente para ele. Alguns segundos de silêncio se passaram, eu o encarando quase sem piscar, ele encarando o chão. Mas não o senti intimidado, ele apenas estava esperando. Respirei fundo. - O que você tava pensando?

-Eu? - Ele franziu o cenho, virando-se para mim com seus olhos que se pareciam mais verdes do que castanhos assim, à luz do sol, ainda manchados pela cor escura ao redor da pupila. - O seu namorado avançou em mim.

-E você cuspiu na cara dele. - Respondi irritado por ele fingir que não havia tornado a coisa muito pior.

Então, algo curioso aconteceu. Christophe voltou a olhar para frente, agora com um sorriso fraco nos lábios, sorriso esse que se transformou em um riso curto enquanto ele erguia as sobrancelhas e assentia. O riso foi crescendo. Não tinha som, não era escandaloso, era baixo e reprimido, mas impossível de controlar.

-É, eu tava bem puto. - Foi o que ele disse, encolhendo os ombros como se fosse algo hilário. Foi uma das experiências mais bizarras da minha vida, eu levei alguns segundos para processar que ele estava, de fato, rindo. Eu nunca antes o tinha visto soltar uma gargalhada de verdade, e foi essa a situação que ele escolheu para essa primeira experiência.

-Você acha isso engraçado? - Perguntei, sem tentar ocultar o horror e a irritação na minha própria voz.

-Não. - Ele respondeu prontamente, abaixando um pouco o rosto para cobrir os olhos com a mão, a outra segurando a superfície da grade com força. Mas ele ainda sorria, o peito ainda se movia naquela risada silenciosa, por mais que ele balançasse negativamente a cabeça. E eu não entendia que merda estava acontecendo.

-Essa porra não é engraçada, Christophe.

-Eu sei! - Ele respondeu mais alto, erguendo-se para virar o rosto e me encarar, finalmente. Umedeceu os lábios, o sorriso ainda ali, a mão agora massageando as têmporas. - Desculpa. Eu começo a rir quando eu fico muito puto, ok? Eu não consigo controlar. - Ele explicou, um resquício de riso ainda presente, apertando os olhos. Havia dor em sua expressão. - Caralho, a minha cabeça tá explodido.

Eu acreditei nele. De alguma forma, fez bastante sentido. Era um riso ansioso, de quem precisava gastar a energia que borbulhava lá dentro. Christophe sempre teve reações socialmente inapropriadas à maioria dos seus sentimentos.

Foi aí que o riso cessou completamente. Eu senti vontade de perguntar como ele se sentia, de tocar seu braço como uma forma de conforto, mas senti medo de me mexer. Estávamos à luz do dia, com várias pessoas andando pelo pátio ou sentadas nos bancos.

-Você provocou. - Foi o que eu disse, baixinho, pressionando os dentes sobre meu lábio inferior. Ele me espiou com o canto do olho, a expressão mais relaxada agora, sem qualquer defensiva. Seus olhos pareciam quase vulneráveis. Ele ficou em silêncio por um bom tempo, como se ponderasse o que fazer em seguida.

Endireitou o tronco, desencostando-se da grade, e virou de frente para mim. Eu tive que erguer o queixo para enxergá-lo devido à nossa diferença de altura. Christophe deu um passo à frente, umedecendo os lábios, o rosto ilegível. Eu ainda descansava um braço sobre a grade e o encarava com força, tentando não me mover, mas meu coração batia forte o suficiente para delatar que eu estava nervoso. A proximidade sempre trazia nervosismo.

-Larga ele. - Murmurou com uma voz rouca que me fez pensar que eu havia entendido errado o que ele disse.

-O quê? - Perguntei, uma daquelas respostas idiotas de quem entendeu perfeitamente, mas não quer acreditar que seja verdade. Eu me desencostei da grade também e dei um passo instintivo para trás, sentindo meu próprio rosto arder. Eu devia estar bastante vermelho.

-Você ouviu. - Christophe quase murmurou enquanto chegava perto de mim, mas não ergueu uma mão para me tocar. Bufou baixo, algo disfarçado de riso escapando de seus lábios enquanto ele pensava. - Eu sei que você quer ouvir que eu me arrependo, que eu não devia ter batido nele. Que eu sei exatamente como mobilizar alguém, você sabe que eu sei, eu não tinha que ter socado a carinha bonita dele. Mas se tem uma merda na minha vida de que eu não me arrependo, Kyle, é disso.

Ele falava com tesão. Eu não tenho outra palavra pra descrever, era tesão puro, tesão genuíno, tesão que me fez querer parar de me afastar. Mas quando me dei conta, estava batendo levemente com as costas na parede e não havia mais para onde ir. Era um espaço estreito entre a parede e a grade, não foram muitos passos que nos colocaram nessa posição, ele nem parecia ter a intenção de me encurralar. Eu queria responder com palavras, que de alguma forma me fariam sentir protegido, mas o nó na garganta não deixava. Apesar do frio que fazia ali fora, minhas mãos suavam.

-A parte engraçada é que agora eu me sinto um imbecil. - Ele apoiou uma mão na parede, inclinando-se um pouco para ficar mais perto de mim, mas não o bastante para que eu sentisse meu espaço pessoal invadido. - Porque na realidade, não importa quantos socos eu dê nele, não importa nem se eu arrancar todos os dentes dele, isso não vai te fazer querê-lo menos. Não vai te fazer parar de escolher ele. - Ele murmurava entredentes, o sotaque parecendo mais forte com esse desgosto que carregava a sua voz. Não sabia se era impressão minha ou seu rosto realmente começou a ficar mais próximo. Mas sua mão, aquela mão tão grande, calejada e quente, cobriu a lateral do meu pescoço. O polegar fazia um movimento mínimo sobre a minha pele, mas aquilo me incomodava tanto, porque me fazia ter vontade de pressionar meu quadril contra o dele. - Talvez eu não tenha que bater nele, então, talvez eu tenha só que… - Eu não sabia quando ele havia ficado tão próximo que eu podia sentir o calor das palavras saindo de sua boca, o cheiro de cigarro e almíscar naquele hálito intoxicante, enquanto sua mão subia tão lentamente para envolver o meu maximar, as pontas dos dedos subindo quase que carinhosamente pelo meu rosto. Fechei os olhos, virando o rosto alguns milímetros para o lado, querendo apenas que a minha boca não estivesse tão dolorosamente próxima da dele. A essa altura, as palavras saíam como um sussurro. Ele quase não usava palavras com aquela eloquência, mas quando o fazia, era uma arma. Então, veio a pergunta embalada em uma voz tão suave. - Você quer que eu te beije?

-Não faz isso comigo. - Murmurei quase sem voz, os olhos agora entreabertos. Eu implorava com cada célula do meu corpo que ele fosse mais forte do que eu.

Nem enxergava seus lábios, não me atrevia a encará-lo, mas pude sentir o sorriso que se formou, de tão perto que o desgraçado estava.

Ele esperou tempo o suficiente para eu pensar que fosse acontecer, que era isso, que eu não teria forças para fazer nada a respeito se ele se inclinasse os últimos dois ou três centímetros necessários. E eu realmente não teria. Nem respirava, de tanto medo que eu sentia do meu próprio descontrole quando ele chegava perto assim e me provava que nada havia acontecido ainda porque ele não tentou de verdade. Christophe sempre me respeitou, ninguém podia dizer o contrário.

-Eu não vou te dar a satisfação de dizer pro seu namoradinho que isso foi culpa minha. - Ele disse em um tom diferente, um tom rancoroso. Foi só então que eu voltei a olhá-lo, sem medo do perigo que nós corríamos ao flertar com essas linhas que não poderiam ser cruzadas. Havia dor em meu rosto, eu sabia disso, porque era como se ele tivesse enfiado a mão dentro do meu peito para apertar o meu coração com aqueles dedos grosseiros dele. - A hora que você quiser, você vai ter que pegar sozinho.

Eu sabia o que ele estava fazendo. Aquilo parecia um desafio tão grande que eu pude me enxergar agarrando aqueles cabelos sujos para puxá-lo contra mim e colidir os nossos lábios, e a mera ideia fez com que um arrepio percorresse toda a minha espinha, arrepiando até os meus mamilos, pulsando o meu pau dentro da calça, mas eu não me movi. Talvez tivesse, talvez eu tivesse feito exatamente isso no seguinte instante, caso a voz fina e tímida de Pip não tivesse nos interrompido.

-Kyle? - Ele chamou de longe, com receio de se aproximar. Ao perceber a presença de outra pessoa, Christophe se endireitou, respirando impaciente. Eu me desencostei da parede e me afastei pelo menos quatro passos dele.

-Oi, Pip. - Respondi, tentando soar pelo menos educado enquanto percorria a mão pelo topo da minha própria cabeça, sentindo a textura macia do cabelo raspado.

-Desculpa, é que… O Gregory me pediu pra vir te chamar. Ele quer saber se você já tá quase pronto pra ir.

-Que horas são? - Perguntei, franzindo o cenho.

-São… Quase cinco, eu acho.

-Puta merda. Olha só, Pip, se você puder dizer pra ele que eu já tô indo…

Eu percebi que os olhos castanhos dele passearam entre mim e Christophe algumas vezes, como se tentasse entender a natureza da nossa interação, mais preocupado comigo do que qualquer outra coisa. E eu era grato por isso. Pip era uma pessoa muito boa.

-Ir aonde? - Christophe perguntou finalmente, passando a língua pelos lábios enquanto olhava para mim, inquieto.

-Não é da sua conta. - Eu sabia que isso não era exatamente uma reação “madura”, mas eu não podia evitar sentir raiva dele. Ou de mim. Eu nem sabia exatamente porquê. Mas Christophe não se ofendia com facilidade, não dando a mínima para o meu tom, segurando meu braço quando tentei voltar ao quarto. Pip já havia saído sem dizer nada.

-Ir aonde? - Ele repetiu exatamente no mesmo tom.

-Me solta. - Eu puxei meu braço de volta, encarando-o com impaciência. - Eu nem podia estar tendo essa conversa agora, a gente tem uma missão.

Ele franziu o cenho. Continuou me olhando como se não entendesse o que eu falei, abrindo a mão para me soltar apenas quando eu puxei o braço com mais força. Mas eu já podia enxergar muito bem em seus olhos o que aconteceria em seguida. E desejei não ter falado nada.

 

-Que merda você tem na cabeça?! - Christophe esbravejava com aquela voz grossa que ecoava por todo o espaço aberto do estacionamento onde todos os carros eram mantidos. Havia uma dor em sua voz, como se ele se sentisse pessoalmente traído por Gregory não ter lhe contado. Enquanto isso, Gregory fazia a checagem dos equipamentos dentro do carro, não dando muita atenção a nada do que Christophe dizia, enquanto Craig ajudava a descarregar o porta-malas que estava cheio de caixas de suprimentos que foram comprados naquela manhã.

Fazia um sol desgraçado e incomum, penetrando com força as camadas de poluição sobre nossas cabeças, nenhuma nuvem a ser vista no céu. Tínhamos certa de dez carros, mas apenas sete estavam no estacionamento. Logo, o sol começaria a se pôr e deixaria o céu todo alaranjado.

-Ele não tá pronto. - Christophe disse, agora sem gritar, colocando-se na frente de Gregory e se inclinando um pouco para que os olhos estivessem na mesma altura. Eu apenas assistia à cena encostado no carro, de braços cruzados, coçando atrás da orelha.

-Ele está sim e você sabe disso. - Gregory respondeu casualmente, abaixando o bloquinho de notas com as anotações do que não poderíamos esquecer. - Toupeira, relaxa, eu vou trazer ele de volta inteiro.

-É muito cedo pra ele estar lá fora, ele não vai.

-O caralho que não. - Gregory respondeu, finalmente transparecendo algum tipo de emoção na voz, franzindo as sobrancelhas. - E sabe de uma coisa? Eu esperava que você fosse o primeiro a ficar feliz por isso. O Kyle é inteligente, rápido e competente. Ele foi bem treinado, ele tá pronto. Para de agir como um pai possessivo.

-Eu vou com você. - Ele respondeu como se não tivesse ouvido uma palavra do que Gregory disse. Aquilo começou a me incomodar. Em especial, o fato de os dois falarem sobre mim como se eu não estivesse bem ali.

-É seu turno na contagem de armamento hoje à noite. - Craig disse de repente, apoiando uma caixa pesada no joelho antes de colocá-la sobre outras duas, tomando fôlego. A voz era nasalada e indiferente como sempre.

-Não é não. - Christophe respondeu praticamente sem olhar para ele.

-É sim. Standish te colocou. Você sabe como ele é neurótico com quem cuida das armas, acho que ele confia mais em você. - Craig respondeu, encolhendo os ombros com indiferença, fechando o porta-malas do carro com força.

-Pro inferno com o Standish, hoje não era a porra do meu dia! - Eu sentia que Christophe aceitava qualquer chance de gritar com Craig que tivesse.

-Tudo pronto aqui. - Ele disse ao Gregory, retomando sua própria atividade de carregar as caixas para a porta dos fundos da cozinha; o estacionamento ficava nos fundos do prédio onde fazíamos as refeições. - Reclama com ele se quiser, mas furar um turno fode com a escala de todo mundo. - Foi a última coisa que disse antes de entrar.

-Puta que me pariu. - Christophe resmungou baixo, passando os dedos pelo cabelo.

-Mesmo que não fosse, Christophe, você acabou de sair de uma porrada. - Respondi, tentando soar racional, mas eu estava profundamente irritado com ele. - Você não tá em condições.

-É coisa idiota, Toupeira, é só entrar e sair. Não tem o que dar errado. - Gregory complementou.

Christophe ainda deu uma boa olhada nele, os dois se encarando como se fosse uma competição para ver quem piscava primeiro. Gregory perdeu. Christophe deu dois passos na direção dele, o dedo indicador apontado bem na sua cara, o que fez Gregory erguer apenas uma sobrancelha enquanto apoiava o braço na porta aberta do carro.

-Eu vou ficar monitorando. Manda notícia. Se der qualquer merda, só abandona. Não faça nada idiota.

-Quando é que eu já fiz alguma coisa idiota? - Gregory perguntou com um sorriso tão irritante que até me deu vontade de dar um soco na cara dele, mas ao mesmo tempo, eu ri. Christophe bufou baixo antes de me oferecer um olhar preocupado e sair andando para fora do estacionamento, pisando com uma fúria que me fez imaginar que ele iria atrás do Standish. Ou talvez fosse só uma impressão.

Gregory respirou fundo, sorrindo fraco para mim, guardando o pequeno bloco no bolso de trás da calça.

-Você está bem? Eu fiquei surpreso de você ainda querer fazer isso depois de hoje.

-É exatamente disso que eu preciso, na verdade. Acho que eu acabaria surtando se tivesse que ficar aqui.

A ideia de sair da base, de forma geral, me empolgava muito. Porque tudo aquilo que era estranho e excitante no começo acabou se tornando parte da nossa rotina. As mesmas pessoas, os mesmos lugares, os mesmos serviços. Era bom. Era ótimo, na verdade, eu ainda tinha muito prazer naquele lugar, mas desde o incidente que me deixou com uma cicatriz grotesca na cara, sair era sempre um assunto delicado. Nós teríamos uma pequena viagem de três horas para enfrentar, pegando o caminho mais longo e inabitado, mas até isso me injetava energia no corpo. Aquela missão me faria bem, era o que eu pensava.

Gregory sorriu um pouco mais largo e assentiu com a cabeça, apertando meu ombro antes de se virar para entrar no carro. Mas uma voz – também nasal, mas muito mais gentil do que a de Craig – o chamou de longe, soando sem fôlego.

-Ah, que bom, vocês não saíram ainda! - Clyde disse enquanto corria para atravessar o estacionamento, vindo em nossa direção.

-Mas que merda é essa agora? - Gregory perguntou baixinho o suficiente para que Clyde não pudesse ouvir.

Eu encolhi as sobrancelhas, mas meus olhos brilhavam em curiosidade, até certa compaixão pela maneira com que ele corria, esbaforido e empolgado, mostrando os dentes brancos e retos. Não me fugiu aos olhos que ele carregava a própria arma no cós da calça, algo que nós não costumávamos fazer dentro da base.

-O que foi? - Gregory disse com certa frieza quando ele parou perto de nós, apoiando as mãos nas coxas para retomar o fôlego, os olhos brilhando como os de uma criança. Ele parecia um pouco assustado toda vez que falava com Gregory.

-Eu sei que você disse que eu não podia ir, mas eu… - Ele parou para respirar, tirando os fios de cabelo castanhos da testa suada. - Eu realmente queria…

-Nós já falamos sobre isso, Clyde. Além do mais, se fosse pra você ir, eu teria que ter sentado com você e repassado todo o plano como eu fiz com o Kyle, todo o layout da casa, todas as rotas de fuga. A gente não tem tempo pra isso agora.

-Não, eu sei, eu sei. Mas eu posso… Sei lá, eu posso só dirigir, ou ficar só vigiando, ou fazer a merda que você quiser, cara.

-Bom. - Eu intervi com uma voz receosa, trocando um olhar demorado com Gregory, encolhendo um pouco os ombros, tentando demonstrar compreensão. - São três horas de viagem, a gente teria tempo pra… - As palavras morreram na minha boca com o olhar confuso que Gregory me deu, como se não acreditasse que eu pudesse encorajar uma coisa assim.

Mas a verdade era que eu provavelmente estava muito mais próximo de Clyde do que ele. O simples fato de estarmos em um lugar desconhecido nos aproximou enquanto grupo, eu convivia muito mais com ele do que quando estávamos em South Park. E eu percebia muito bem como as pessoas daqui o tratavam, como se ele fosse um incompetente, indigno de confiança e investimento. Investiam muito em Token, porque ele era um médico com o potencial de salvar ou melhorar muitas vidas ali dentro. Investiam muito em Kenny porque ele era um artista e uma alma carismática, capaz de manter viva a resistência através da produção artística de impacto. Investiam muito em Craig, que tinha uma mira de falcão e era capaz de atirar com perfeição a uma distância extraordinária. Investiam muito em Cartman, que tinha força física e uma lábia que não se encontrava em qualquer lugar, um senso de liderança afiado. Investiam muito em Stan, que era um diplomata nato, uma pessoa de negociações, que conseguia se comunicar com todo tipo de gente sem julgamentos. Investiam em Wendy, exatamente pelo mesmo motivo que investiam em Gregory, porque eles foram feitos para estarem aqui, porque não eram apenas líderes como também inspiravam todos os resistentes e lutavam com toda a gana possível. Investiam em mim, porque eu era leve e rápido e era bom com engenharia e computação.

Mas Clyde… Clyde estava se afogando no meio disso tudo, eu percebi desde o início. E talvez eu estivesse distraído demais com as minhas próprias questões para fazer algo a respeito, mas eu não me sentia capaz de renegar a chance que todos ao seu redor renegavam. Talvez porque Butters ainda pulsava tão vivo no meu coração, assim como Tweek, até mesmo Kip, pessoas que se foram sem ter toda a chance de mostrar o quão capazes eram. Mas em seus momentos finais, cada um a sua forma, mostraram-se muito mais fortes do que eu jamais imaginei que pudessem ser. E eu não queria subestimar mais ninguém. Nós precisávamos acreditar uns nos outros.

-Greg, por favor. - Clyde disse com seus olhos de filhote de cachorro, enquanto Gregory o encarava com uma expressão de “por que você está me chamando de Greg?” que quase me fez rir. - Ninguém nunca me deixa fazer nada, todo mundo acha que eu vou atrapalhar. Eu prometo que só faço o que você mandar fazer. Me deixa ajudar, por favor.

Gregory podia agir como a Rainha do Gelo o quanto quisesse, mas ele continuava sendo um pai no fundo. E como todo pai, ele tinha um ponto fraco por todas as pessoas do nosso pequeno grupo, caso as palavras certas fossem ditas. Ele olhou para mim de relance e eu ofereci uma expressão encorajadora. Suspirando, ele disse:

-Tá bom, você pode dirigir.

Clyde abriu um sorriso tão largo e se aproximou com seu corpo grande e troncudo para tentar abraçar Gregory, que ergueu as duas mãos em um gesto que gritava “não encosta em mim”. Eu soltei uma gargalhada. Clyde não deixou que a rejeição abalasse seu espírito, sorrindo também. E com isso, nós entramos no carro. Gregory se sentou no banco do passageiro e eu me sentei sozinho atrás, o que até foi agradável, considerando a quantidade de espaço. Da janela, Gregory assobiou para chamar a atenção de David, que fazia a guarda do estacionamento e tomava conta dos carros.

-Ei, avisa o Standish que o Clyde vai com a gente. - Ele gritou, e David apenas ergueu o polegar para sinalizar que entendeu e foi abrir o portão.

Encostei a cabeça no vidro da janela e respirei fundo, aliviado. Havia sido um dia de cão, e eu estava pronto para mudar isso.

Posso dizer que absolutamente tudo que se seguiu na minha vida a partir daquele momento teria sido drasticamente diferente se, por qualquer motivo, eu tivesse tomado a decisão de não entrar naquele carro. Eu não fazia ideia do que me esperava. Nenhum de nós fazia.



Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...