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História Liberté - A Ratoeira


Escrita por: caulaty

Capítulo 43 - A Ratoeira


05 de março de 3645

 

No meio do caminho, começou a chover. Gregory se ofereceu para dirigir, mas Clyde declinou gentilmente, parecendo satisfeito em fazer parte disso. Havia uma sugestividade preocupada no tom de Gregory ao se oferecer, não era apenas para que Clyde não se cansasse. Nosso destino era o Lar Histórico de Maryland, uma espécie de museu onde eram arquivados documentos pós-guerra. Gregory havia me explicado que o governo canadense (ou aqueles que nos repassassem as missões) costumavam ser propositalmente vagos ao nos repassar as coordenadas sobre o que deveríamos fazer. Uma pasta amarela e uma pasta vermelha, era isso que deveríamos encontrar. Numeradas “176” e “341”. Pasta vermelha. Pasta amarela. Eu repassava na minha cabeça diversas vezes enquanto segurava o mapa amassado em mãos, deslizando as digitais do indicador e dedo médio sobre o círculo vermelho em torno do nome de nosso destino. Estava escuro demais para enxergar, nós pagamos a rota mais isolada e com menos iluminação. A paisagem que corria através da janela era de florestas com montanhas ao fundo contrastando com o tom acinzentado do céu cada vez mais escuro, iluminando-se por raios que estouravam em clarões. Me fazia sentir falta do Colorado.

De forma geral, foi uma viagem silenciosa. Em dado momento, Clyde ligou o som que estava sempre com o mesmo dispositivo com uma coleção de músicas antigas, a maioria de bandas inglesas, uma seleção particular de Standish. Eu ri sozinho com o quanto as músicas dele se pareciam realmente com músicas de pai. Já me pegava pensando nele com carinho.

Gregory carregava no colo uma bolsa bege com todos os apetrechos necessários; em determinado ponto, tirou uma garrafa de água da bolsa e se virou para me entregar:

-Você tem que se manter hidratado. Mas não bebe muito, não é uma boa hora pra ter vontade de mijar. Você comeu?

Gregory era um pai.

Eu estava sentado entre os dois bancos da frente, as pernas abertas e os cotovelos apoiados nas coxas, massageando as têmporas com uma das mãos, apertando a garrafa com a outra. Minha cabeça estava me matando.

-Não deu tempo. - Respondi com certa amargura, tentando não pensar sobre o que houve mais cedo.

Ele passou alguns segundos me encarando, algo semelhante a um sorriso de conforto apareceu em seus lábios. Tirou uma maçã da bolsa, estendendo-a para que eu pegasse de sua mão, mas antes eu precisei soltar um riso fraco. É óbvio que ele trouxe comida também. Era exatamente por esse tipo de coisa que eu sempre me sentia bem ao lado de Gregory, como se ele estivesse preparado para tudo e nada pudesse dar errado.

Clyde tentou por algumas vezes puxar conversa, incomodado com o clima tenso no silêncio daquele carro. Acredito que a maior parte disso tenha sido culpa minha, porque Gregory – apesar de silencioso – parecia bastante calmo, apenas concentrado. Mas eu não podia evitar aquela sensação que pesava sobre os meus ombros, sem nem me dar conta do quão tensos meus músculos estavam. Meu intestino também reclamava, me avisando que alguma coisa dentro de mim estava fora de lugar. Eu batia o pé compulsivamente no chão do carro. Comi metade da maçã, tomei três goles de água e passei o resto do tempo tentando não pensar em coisas que eu não podia resolver. Tanto tempo parado sem qualquer distração não podia fazer bem ao meu cérebro, não depois de um dia como aquele. A missão em si era o que menos me preocupava, especialmente depois que os confrontos de rua se tornaram algo quase que normal. Toda a minha energia era gasta com idiotices, com as palavras de Stan ecoando no meu crânio, com a memória do cheiro e o calor de Christophe; eu estava puto. Puto com eles, puto comigo mesmo por ter deixado a situação chegar aonde chegou. E não era hora de pensar sobre isso.

Eu não prestava atenção nas conversas breves entre Clyde e Gregory, mas podia ver através do retrovisor que Gregory revirava os olhos constantemente para as coisas que Clyde dizia, embora o pobre coitado nem percebesse. Foi difícil não esboçar um sorriso com a expressão confiante de Clyde enquanto Gregory esfregava a própria testa e me xingava mentalmente por tê-lo trazido.

Quando entramos na cidade, Gregory desligou o som. Provavelmente era algo que ele queria fazer há mais de uma hora.

Estacionamos há uma certa distância, mas ainda era possível enxergar a construção imponente que reconheci de imediato como o museu; parecia-se com um híbrido entre uma mansão antiga e uma igreja, com vitrais grandes e arredondados no último andar, colunas altas de mármore, uma escadaria que dirigia à entrada. Havia três grandes portas frontais que ocupavam o tamanho de dois andares, longas e estreitas, todas trancadas porque já fazia uma hora que o museu havia fechado para o horário de visitação. Ainda estávamos dentro do toque de recolher, o risco de encontrar sapadores na rua era menor até dez horas da noite. Apesar de já estar fechado, havia luzes de chão iluminando o museu de baixo para cima; você podia enxergar os minúsculos pingos de chuva caindo através da forte luz alaranjada que banhava a fachada do museu. Acima das portas, havia um longo retângulo que ia de uma extremidade à outra, mas eu não podia identificar as silhuetas pintadas dentro dele.

Bem à frente, no pátio da construção, encontrava-se uma imensa estátua de um homem montado em um cavalo. Ele erguia a bandeira americana com orgulho e usava um vistoso bigode na face. Era uma estátua recém-construída do salvador da Nação, o Presidente.

Apertei o banco da frente entre meus dedos e engoli fundo, soltando o ar dos pulmões enquanto Clyde desligava o carro e Gregory examinava a situação com cuidado. Antes de qualquer outra coisa, ele alcançou dentro da bolsa o pequeno aparelho de comunicação com a base, um dispositivo que cabia na calma da mão. Apertou o botão preto e aguardou. Logo, uma voz familiar de sotaque francês surgiu em má qualidade através do dispositivo:

-Ei, vocês já chegaram?

Gregory riu.

-Você expulsou o Michael da sala de comunicação?

-Tô olhando pra ele agora. Me responde.

-Sim, chegamos. Vamos entrar em… - Eu não conseguia ver sua expressão desse ângulo, mas Gregory ficou em silêncio de repente, remexendo-se um pouco no banco, removendo o cinto de segurança para inclinar-se para a frente. - Mas o quê…?

Eu tentei ver o que havia chamado a sua atenção, mas nada parecia fora do comum.

-O que foi? - Christophe perguntou através do aparelho.

-Nada. - Gregory respondeu com firmeza, sentindo a preocupação imediata na voz do outro. - Não é nada, eu só… Não vejo nenhum guarda. Deveria haver guardas, não?

Ele levou alguns segundos para responder.

-Bom, não necessariamente. Mas eles devem estar lá dentro, não vá despreparado.

-Eu nunca vou despreparado. Vou checar a situação primeiro.

-Certo. Nos mantenha atualizados.

-Pode deixar. - E com isso, retirou o polegar do botão preto e voltou a guardar o aparelho, levando sua mão à maçaneta da porta. Virou a cabeça em minha direção, gastando algum tempo para verificar se estava tudo bem comigo antes de separar os lábios novamente. - Isso é um pouco esquisito.

-Você acha que é um problema?

Eu percebi as mãos de Clyde apertando o volante com um pouco mais de força, embora não pudesse enxergar seu rosto. Gregory balançou a cabeça negativamente.

-Não vamos nos preocupar com problemas que ainda não temos. Eu vou lá antes ver se tudo está como deveria estar. Não saiam do carro, eu já volto.

Sem esperar por alguma resposta, ele saiu graciosamente e bateu a porta quase sem fazer barulho. Gregory tinha elegância demais para ser uma pessoa tão forte quanto era.

Esfreguei meu próprio rosto com as mãos e recostei-me contra o banco, bufando como se apenas agora eu sentisse necessidade de me preparar para o que estava por vir. Não podia ser tão difícil assim; entre sem fazer barulho, pise sem fazer barulho, esteja preparado para mobilizar alguém a qualquer momento, atire apenas se for necessário. Mas não seria. Ou era por isso que nós esperávamos sempre. Agora, meus olhos encontraram os de Clyde através do retrovisor e eu percebi medo refletido ali. Quando percebeu que eu o observava, entretanto, ofereceu um sorriso fraco – que eu só identifiquei porque suas bochechas se moveram, eu não podia enxergar sua boca pelo espelho – e virou o tronco no banco para me encarar.

-Que merda o que rolou hoje. - Ele disse. Tentava soar empático, eu percebi logo de cara, mas franzi o cenho instintivamente mesmo assim. - Eu sinto muito.

-Do que você tá falando? - Perguntei apenas para entender exatamente o quanto ele sabia.

-Ah, o Stan surtar daquele jeito. - Clyde encolheu os ombros. Sua mão esquerda ainda segurava o volante, por alguma razão. - Não parece coisa dele.

Eu não soube o que responder a isso, então apenas continuei na mesma posição segurando a garrafa de água com as duas mãos, erguendo as sobrancelhas para dar algum tipo de resposta, não sentindo qualquer vontade de tocar nesse assunto. Clyde não era exatamente perceptivo, mas ninguém poderia chamá-lo de insensível; assim que percebeu a falta de reação, soou extremamente culpado.

-Desculpa, eu sei que as coias devem estar difíceis agora.

-Não tem problema. - Respondi enquanto encarava a janela, porque era a coisa certa a se dizer, independente de ser verdade ou não.

Apesar de não estar olhando para ele, senti que Clyde se ajeitou no banco para voltar à posição original. Imediatamente, me senti um idiota. Deixei que alguns minutos de silêncio se passassem enquanto considerava iniciar algum outro tipo de assunto, mas ao mesmo tempo, encarava a janela na esperança de que Gregory aparecesse de uma vez. Isso não aconteceu.

-Você e Craig parecem estar melhor agora. - Eu finalmente disse, umedecendo os lábios, pensando que seria uma boa ideia focar nos assuntos dele em vez de nos meus. Não era como se Clyde e eu tivéssemos muito o que conversar, embora eu ainda o considerasse um dos amigos mais próximos àquela altura da minha vida. - Parecia que vocês estavam passando por um período meio esquisito há alguns meses. Eu fiquei preocupado, mas sabe, eu não quis me meter.

-Ahn? Ah. Sim. - Ele sorriu, sua expressão parecendo muito mais receptiva do que eu esperava, apesar de haver essa melancolia incomum em seus olhos. Não se virou para mim, continuava me encarando através do retrovisor. - Acho que melhorou, mas sei lá. - Ele ficou em silêncio por um bom tempo. Tempo suficiente para eu acreditar que voltaríamos ao silêncio levemente desconfortável em que estávamos antes. Encarava o painel, mas eu podia ver que seus olhos estavam em outro lugar. Ele parecia tão triste. - Eu não sei se isso acontece com todo mundo, mas às vezes eu acho que Craig e eu só continuamos sendo amigos porque… Sei lá, a gente tá tão acostumado, foi assim a vida toda e a gente tem que conviver de qualquer forma. Eu ainda o amo muito, não é questão disso, mas a gente só fica próximo porque… Tá tudo tão virado do avesso, eu sinto que eu preciso de alguma familiaridade, entende? É uma merda, sabe, porque eu sinto muita falta de como as coisas eram antes. Com ele, digo.

Eu soltei um riso baixo e amargurado. Era quase irônico ele dizer isso justamente para mim, justamente naquele dia em especial.

-Eu sei como é. - Respondi baixinho.

-Então. Mas as coisas nunca mais foram iguais. E eu nunca entendi direito o que aconteceu. Acho que ele só não gosta muito da Bebe.

Clyde não fazia ideia. Eu sempre tive dúvidas de se ele sabia ou não, se ele imaginava como Craig se sentia e ignorava para não correr o risco de machucar a amizade. Mas não era isso. Eu podia ouvir em sua voz, ele genuinamente não fazia a menor ideia de que tudo era diferente porque ele era a única pessoa que Craig Tucker conseguiu amar de verdade em toda a sua vida. E não seria eu a contar isso a ele. Fazia sentido que ele não soubesse, afinal de contas, ele nem sequer percebia quando Gregory revirava os olhos bem na sua frente. Essa ignorância era o que o mantinha protegido das merdas. De alguma forma, talvez fosse a única razão pela qual ele ainda conseguisse ser feliz.

-Você gosta muito dela, não é? - Eu perguntei com um sorriso fraco nos lábios, a minha voz saindo ainda mais gentil do que eu esperava. De repente, o pequeno fragmento de discussão que eu ouvi entre os dois na noite de Natal passou a fazer todo sentido.

-E tem como não gostar? - Ele disse rindo. - Eu não sou idiota, sabe? Eu sei que ela e a Wendy se amam, eu não espero nada. Mas mesmo assim, eu ainda gosto muito de ficar perto dela. E ela não me trata como se eu fosse ignorante, ela… Ela é tão diferente. - Quanto mais ele falava, mais melancólico parecia, apesar de o sorriso permanecer estampado em seu rosto. Finalmente, virou o tronco no branco e se sentou meio de lado para conseguir me enxergar. - Eu sei que o Craig só tava preocupado comigo, mas ele ficou bem puto no começo, quando eu soube que elas tavam juntas. Eu entendo, eu sei que eu fico meio… Eu choro, né? Eu chorava bastante, ele não tinha saco pra isso.

-Não tem nada de errado em chorar, Clyde. - Eu me percebia falando com a mesma ternura com que falaria com o meu próprio irmão se ele estivesse sofrendo. E por mais que Clyde tentasse sorrir, a ferida arregaçada em seu peito era perfeitamente visível através dos seus olhos castanhos. E não parecia justo. Não era justo que ele pensasse que perdeu seu melhor amigo por todos os motivos errados. Naquele momento, odiei Craig um pouquinho por nunca ter tido a coragem de contar a ele como se sentia.

Ao mesmo tempo, eu podia entender Craig tão bem. Isso aqui seria uma rejeição certa. Seria hipocrisia minha julgá-lo por isso.

-Eu sei. Mas não resolve nada. - Ele pressionou os lábios e desviou o olhar de mim, piscando algumas vezes. Balançou a cabeça para não imergir demais nos próprios pensamentos. - Ainda é foda. É tão difícil estar tão perto dela o tempo todo e ter que guardar isso pra mim, não poder tocar nela, não poder… - Clyde encarou o teto do carro por um segundo e riu baixo, voltando a atenção para mim com um sorriso de compaixão. - Acho que eu não preciso te explicar como é isso.

Não precisava mesmo. Mas me surpreendeu que ele dissesse isso. Eu não tive tempo para reagir, apenas continuei com os lábios entreabertos enquanto ele se endireitava no banco e a figura de Gregory aparecia a alguns metros do carro, fazendo sinal para que nós saíssemos. Certo. Todo o resto teria que ficar para mais tarde.

 

Desviei de algumas poças de chuva no caminho até o museu, mantendo as mãos nos bolsos do meu casaco preto. Não seguimos pela rua onde havíamos estacionado porque parecia muito exposto, embora não houvesse nenhum sinal de vida; ainda faltava meia hora para o toque de recolher, mas aquela não era uma área comercial onde devia haver mais movimentação. Talvez isso fosse bom. Andamos pela rua de cima, os vãos entre os paralelepípedos molhados acumulavam água da chuva fina que continuava caindo. Nenhum de nós se importava. Quando chegamos perto o suficiente, eu pude ver que o retângulo imenso sobre as portas do museu era, na verdade, talhado em alto-relevo no mármore bege com um fundo em madrepérola. Parecia contar um fragmento da história da Terceira Grande Guerra.

Gregory deu uma olhada no relógio antes de se virar para nós e repassar o plano:

-Certo, todo mundo lembra onde tem que ficar? - Nós assentimos em resposta. O mapa estava enrolado no meu bolso traseiro. - Quando estivermos lá dentro, ninguém fala nada que não seja estritamente necessário. Nós não sabemos ainda se vamos encontrar alguém ou não, então apenas tenham cuidado. Você – Ele se voltou ao Clyde. - fica de guarda no corredor e assobia se qualquer coisa acontecer. Kyle, você entra comigo. Assim que a gente estiver lá, já tentem reconhecer todas as rotas de fuga que nós repassamos. Não vão ter tantos guardas assim, a questão é não deixar que eles chamem os sapadores. Vocês estão bem?

Eu lancei um olhar preocupado ao Clyde, mas encontrei seu rosto estranhamente determinado. Aquilo acalmou meu coração. Fiz que sim com a cabeça, passando a mão pela coronha do revólver quase que instintivamente, fazendo uma pequena prece a um deus no qual eu nem acreditava, pedindo para que eu não precisasse matar ninguém naquela noite. Todos os problemas daquele dia pareciam muito distantes agora que estávamos diante do nosso objetivo.

-Vai ser divertido. - Gregory disse com um fraco sorriso encorajador, pondo a mão em meu ombro para apertar de leve antes de dar as costas e continuar caminhando, agora com mais pressa.

Demos a volta no terreno da construção para entrar pelos fundos, passando por um bosque de folhas secas que mais se parecia com um parque no meio da cidade. Aqueles três meses de treinamento ininterrupto começaram a fazer muito mais sentido enquanto nós precisamos escalar o portão de ferro, um de cada vez; eu provavelmente não conseguiria fazer isso com o condicionamento físico que tinha antes de chegar a Nova York. Gregory foi primeiro, a bolsa bem presa em volta do tórax, desviando com facilidade das pontas no topo que foram construídas dessa forma muito mais por uma questão estética do que para manter alguém afastado. Ele fazia parecer fácil. E era, com a força necessária nos braços e nas pernas. Fazer a travessia no topo era a parte mais difícil, mas não chegou a me fazer suar. A queda foi um pouco torta, coloquei pressão demais nos joelhos, mas ainda assim, consegui aterrissar de pé na grama. Clyde foi o último. Seu tamanho não ajudava e ele ficou com o casaco preso na grade; eu esperava impaciência e reprovação de Gregory, e no entanto, ele falava com calma e fazia Clyde sentir que sabia o que estava fazendo. Ele era exatamente a pessoa que se quer ter ao lado em uma crise. Com isso, Clyde se desprendeu e desceu da grade sem mais problemas.

Eu não conseguia evitar manter todos os sentidos em alerta, olhando para os lados o tempo inteiro, os ouvidos atentos a qualquer som que não fosse o do vento, da chuva, dos pássaros noturnos. Nós corremos o pequeno jardim dos fundos até chegar à parede externa do museu, o que dava uma sensação de cobertura e proteção. Olhei para cima. A construção parecia tão imponente que era intimidadora. Gotas finas de chuva caíam sobre minha pele quente, escorrendo em meu rosto. Pisquei algumas vezes. Enquanto isso, Gregory mexia na bolsa e Clyde já havia sacado a própria arma, segurando-a com as duas mãos, repassando mentalmente tudo que lhe havia sido ensinado até então.

Gregory retirou primeiro uma lanterna da bolsa, entregando-a a mim. Depois, puxou um pano de flanela que começou a enrolar em torno do próprio punho. Parecia com uma camisa. Nós estávamos logo abaixo da janela, mas ela era alta demais para que pudéssemos enxergar, então Gregory subiu em uma pequena elevação no rodapé da parede que cercava toda a construção. Era inclinado, não oferecia suporte o bastante para que ele se equilibrasse, mas se segurou no parapeito por tempo o suficiente para averiguar o que havia lá dentro. Sem aviso, estourou a parte inferior do vidro com um soco do punho protegido pelo pano, da forma mais macia e silenciosa que pôde. Mas vidro quebrando jamais será algo silencioso. O barulho nos deixou em alerta, aguardando qualquer tipo de reação. Esperamos quase dez segundos. Gregory nos lançou um olhar tranquilizador antes de desenrolar o pano da mão, deixando-o largado sobre o parapeito, removendo os cacos de vidro maiores para jogá-los no chão. Então, esticou a mão por dentro do buraco que abriu no vidro para destrancar a janela. Teve que descer do rodapé de pedra e subir novamente pelo cansaço nos braços, tentando ganhar apoio o bastante para abrir a janela. Ela deslizou sem grandes problemas.

-Cuidado com o vidro. - Ele nos disse antes de entrar.

Gregory era atlético o suficiente para parecer que nunca fazia esforço para nada. Já do lado de dentro, ele guardou o pano na bolsa, pegou a arma de Clyde e a minha lanterna para que nós pudéssemos subir com as mãos livres. Sentir as palmas pressionadas sobre minúsculos cacos de vidro me gerou aflição, mas eu tentei aliviar boa parte do meu peso apoiando o pé na parede ao subir, apoiando meus braços cobertos pelo casaco no parapeito, as mãos agarrando a parte de dentro. Se me cortei, não senti. Gregory ajudou a me puxar quando precisei passar as pernas pelo parapeito. Eu fiz o mesmo pelo Clyde.

Certo. Estávamos dentro.

Havia um cheiro forte de naftalina e mofo. Gregory me devolveu a lanterna já acesa; através do facho de luz branca, revelou-se uma sala não muito grande que se assemelhava a um escritório. A primeira coisa que percebi foi o tapete com desenhos em art-nouveau que contrastava entre duas cores – uma escura, uma clara – que eu não conseguia identificar por conta da iluminação precária. Havia uma lareira grande, um armário de ébano de onde a maior parte do cheiro de mofo parecia provir, um retrato enorme de moldura dourada do Senhor Nosso Presidente. Soltei um bufo sarcástico diante daquela imagem, uma pintura do grandioso homem posando como se fosse Napoleão Bonaparte, coberto por um manto vermelho. Gregory deve ter percebido que passei tempo demais com a luz voltada para o retrato, porque acariciou meu braço como quem diz “mantenha o foco” e me ofereceu um gesto com a cabeça. Eu assenti. Deixamos o escritório.

A parte debaixo era a que mais se parecia com um museu de verdade. Assim que abrimos a porta, nos deparamos com um espaço amplo de paredes douradas e brancas em detalhes riquíssimos e diversas pinturas de figuras importantes da nossa história. Um museu à noite, no escuro completo, não é exatamente um lugar aconchegante. Enquanto passávamos pelas pinturas em direção às escadarias, eu tive certeza de que elas estavam nos encarando e sorrindo para nós. De certa forma, estavam. Os fantasmas históricos estão sempre nos vigiando. O piso de mármore lustroso parecia-se com um espelho refletindo nossos passos, como se a sala fosse reproduzida sob nossos pés em outra dimensão. Passamos por baixo de dois lustres desnecessariamente grandes antes de chegar à escadaria. Toda a estética do museu me lembrava nossa universidade, especialmente a escada larga de tapete de veludo azul-marinho, corrimão dourado, tudo entalhado a detalhes meticulosos. Meus olhos se acostumavam à escuridão e os janelões permitiam que a luz da rua iluminasse nosso caminho. Ainda chovia lá fora.

Não havia um guarda sequer à vista.

De cada lado da escada, havia duas estátuas gigantescas, amas de mulheres que eu desconhecia. Uma tinha os braços abertos e era coberta por um manto assustadoramente detalhado em gesso branco, e a outra se parecia muito mais jovem, usava um vestido longo e tinha uma mão nos cabelos, como se flertasse com os transeuntes. Só pude vê-las de relance. As estátuas, na escuridão, se pareciam com pessoas de verdade.

A parte de cima consistia em um corredor imenso que atravessava a casa de um lado ao outro, cortado por duas pequenas salas com janelões gigantes que se pareciam com halls, mas ao atravessá-las, o corredor prosseguia com suas infinitas portas. Nossos sapatos quase não faziam barulho ao pisar sobre o tapete fino e longo. Dobramos para seguir pelo corredor da esquerda, atravessando o pequeno hall com um espelho gigante em uma das paredes e uma estátua de cavalo bem no centro. Clyde parou de andar.

-É aqui que eu fico, certo? - Sussurrou, colocando-se em uma posição de alerta, a arma firme entre suas mãos.

Gregory apenas confirmou com o dedo, indicando com a cabeça que eu não parasse de andar. O segundo andar era muito maior do que parecia; eu me lembrava do mapa do museu que Gregory me deu para estudar, como a maioria das salas tinham acesso entre si. Contei cada porta pela qual nós passávamos.

Uma. Duas. Três. Quatro. Cinco.

Paramos. Era a sexta porta. Exatamente igual às outras, branca, a maçaneta de madeira escura. Gregory a girou sem expectativa de que estivesse destrancada, preparado para tirar sabe-se lá o que mais da sua bolsa que resolvia todas as questões do mundo. Mas não foi necessário. A porta se abriu com facilidade, como se estivesse nos esperando. E nenhum de nós cogitou que isso fosse esquisito; sentimos apenas alívio. Adentramos a sala; Gregory teve o cuidado de fechar a porta atrás de si.

Aqui, o piso era de madeira clara. Era uma sala muito maior do que o escritório, mas lembrava aquele cômodo, de certa forma. Havia diversas gavetas de metal que, presumi, deveriam estar cheias de todo tipo de arquivo. Um lustre menor pendia bem no centro da sala, acima da estátua de um ser de asas grandes e cabelos longos; não havia tapete e tudo era cercado por um papel de parede de damasco azul acinzentado. Encostada à parede, havia uma mesa comprida de madeira escura. Gregory me jogou um par de luvas antes que nós iniciássemos os trabalhos.

-Toupeira. - Ele disse ao aparelho de comunicação. - Estamos aqui dentro. Não encontramos nenhum guarda.

Durante alguns segundos, o chiado preencheu o espaço antes que a voz de Christophe surgisse em meio ao barulho:

-Que esquisito.

-Talvez seja um só e ele ainda esteja por aí. Clyde está de vigia.

-O Clyde tá aí?

Gregory soltou uma risada com um tom de “pois é, eu sei”, aproximando-se dos arquivos. Eu já tentava encontrar a numeração de que precisávamos, mas mesmo quando soubesse em quais gavetas procurar, ainda assim levaria muito tempo.

-Isso aqui também não deveria estar trancado? - Perguntei ao Gregory, deslizando uma das gavetas “de 100 a 200” com facilidade. Ele encolheu os ombros.

-Toupeira, a gente vai começar a procurar aqui.

-Tá.

De repente, uma outra voz que definitivamente não era a de Christophe surgiu através do aparelho:

-Ele tá com o cu na mão aqui há três horas, eu não aguento mais.

Eu sorri ao reconhecê-lo. Michael. Ri baixo enquanto tirava todas as pastas vermelhas da gaveta para colocá-las sobre a mesa, balançando a cabeça negativamente enquanto Gregory e eu trocávamos um olhar familiar, um sorriso fraco brotando também nos lábios dele. Era carinhoso, apesar de ele revirar os olhos.

-Manda ele ir fazer algo útil, tipo caçar um alce, porque a gente vai chegar morrendo de fome. Agora nos deixem trabalhar.

Apesar da qualidade do som ser uma merda, eu podia escutar Michael e Christophe discutindo praticamente sem palavras. Quase podia enxergá-los, Michael se estendendo sobre ele para aproximar a boca do microfone enquanto Christophe literalmente o empurrava colocando a mão grande no rosto dele. E eu ri sozinho, abrindo pasta por pasta para conferir o número. Alguma coisa curiosa crescia dentro de mim, acalentando todos os medos que haviam se construído durante a viagem. Era uma sensação de que, independente de todas as coisas, havia um lar esperando por nós. Eu já não me sentia mais órfão. Nós éramos nossa própria família. Ter Gregory e Clyde ali comigo, ouvir a voz de Christophe de Michael, tudo isso me fazia sentir que as coisas dariam certo. Que nós sobreviveríamos a qualquer coisa.

Aquela seria a última vez que eu me sentiria dessa forma em muito, muito tempo.

-Ele vai servir o alce inteiro na mesa do jeitinho que matou, se preparem. - Foi a última coisa que Michael disse antes de Christophe empurrá-lo de verdade, mas ainda pudemos ouvi-lo gargalhando ao fundo, daquela sua maneira blasé de fazer qualquer coisa. Michael tinha uma das risadas mais feias que eu já ouvi. Eu adorava.

-Manda notícia, Gregory. - Christophe disse antes de ligar, soando extremamente sério. Preocupado, na verdade. Mas ele disfarçava qualquer fragilidade com grosseria, eu já o conhecia bem o suficiente para saber.

Durante os próximos dez minutos, não trocamos palavras. Ficamos de pé em frente à mesa fazendo pilhas das pastas de arquivos que já tínhamos conferido. Eu olhava as vermelhas, Gregory olhava as amarelas. Elas estavam fora de ordem, o que tornou o processo muito mais complicado do que precisava ser. Começamos a empilhá-las na ordem numérica para facilitar o trabalho, mas quando cheguei ao 175, percebi algo estranho. Eu já havia encontrado de 177 até 200, talvez com alguns números faltantes, mas todos os outros números à minha frente pareciam ser até o 169 ou a partir do 180. Nenhum sinal da 176.

-Gregory. - Chamei baixinho. Ele tinha a cabeça baixa para estudar as próprias pastas, utilizando a luz da lanterna apoiada sobre a mesa.

-Hm?

Abri a boca para responder, mas um barulho estrondoso praticamente fechou minha garganta. Nós dois nos voltamos para a porta, congelados durante alguns instantes, esperando que fosse apenas Clyde mexendo no que não devia. Meus olhos passavam da porta ao rosto tenso de Gregory, mas ele não me olhava de volta. Uma das primeiras coisas que nos ensinam em qualquer treinamento para uma missão é: nunca se desespere. Não importa o quão ruim algo pareça, desespero sempre aumenta infinitamente o risco. Não tire conclusões precipitadas. Então, vieram as vozes que confirmavam um problema maior do que apenas um guarda. Pareciam vários pés pisando no mármore do hall; botas grandes e pesadas. No corredor, por conta do tapete, elas não fariam barulho. Sabíamos que estavam a alguns metros. Gregory sacou a arma e ergueu a outra mão em um gesto de “calma”, aproximando-se da porta. Uma sombra havia caído sobre seu rosto; mesmo no escuro, eu podia enxergar seu peito subindo e descendo com dificuldade. Meu coração já bombeava o sangue a toda velocidade pelas minhas veias.

-Cadê eles?! - Ouvi uma voz desconhecida gritando, ecoando pelo silêncio morto do museu. Os passos haviam cessado. Larguei todas as pastas e me afastei da mesa, encarando as minhas próprias mãos trêmulas antes de respirar fundo para acalmá-las. Merda. Merda. Puxei a coronha do revólver e o encarei em minha mão como se não fizesse ideia do que fazer com aquilo, sentindo um calor anormal subindo do meu peito pelo meu pescoço e tomando conta de toda a minha cabeça, de dentro para fora, especialmente nas minhas bochechas. Demorei para reconhecer aquilo como uma vontade de chorar, mas nenhuma lágrima se formou em meus olhos. Meu estômago doía. Veio um estrondo de pancada que quase me fez dar um salto para trás, mexendo com toda a minha possibilidade de autocontrole. Clyde. Meu Deus, Clyde. E a voz de um homem mais velho seguia gritando. - Cadê eles, filho da puta?!

-Sou só eu! Sou só eu, eu juro, não tem mais ninguém! - Clyde respondia com uma voz esganiçada de dor, um choro desesperado.

Foi aí que minhas pernas se moveram sem pensar, carregando-me em direção à porta sem enxergar nada do que havia pela frente, mas uma barreira me impediu de continuar. Gregory se virou rapidamente para colidir o peito contra o meu e me empurrar para trás, segurando-me pelos braços com uma força certeira. A pressão quase machucava, mas me trouxe de volta à realidade. Olhei Gregory bem de perto, meu rosto se contorcendo em uma careta de dor, implorando por tudo que fosse mais sagrado que nós não deixássemos Clyde para trás. Gregory não tinha mais a frieza habitual tomando conta de seu rosto. Pressionou os lábios com força como se pensasse, os olhos azuis reluzindo compaixão, mas a expressão era irredutível. Ele apenas negou com a cabeça.

Clyde começou a gritar. Eu me afastei de Gregory de forma agressiva, apertando a coronha entre meus dedos com o braço caído pela lateral do corpo e cobri a boca com a outra mão. A última vez em que senti tanto medo em minha vida foi no aniversário do Presidente. Eu me perguntava se seria assim a vida inteira, se todo momento aterrorizante que eu vivesse traria de volta todos os demônios anteriores, porque meu corpo revivia cada segundo de Tweek sendo pisoteado e os gritos arrebatadores dos civis na rua, mas dessa vez, era diferente. Dessa vez, Gregory estava lá para segurar meu braço e me forçar a erguer a cabeça e encará-lo, seus olhos me dizendo “agora não”. Foi apenas isso que me permitiu mover as pernas que não paravam por nada nesse mundo de tremer. Enquanto isso, outra voz esbravejava:

-Não se faz de trouxa, garoto. Cadê o Pássaro Vermelho?!

Clyde gritou de novo, um grito agonizante de pura e genuína dor que invadia os ouvidos como se ele estivesse bem à nossa frente. Eu só tentava não pensar no que estavam fazendo com ele enquanto Gregory apertava o meu pulso e me puxava como se soubesse exatamente para onde ir. Eu nem tinha me dado conta de que ele havia agarrado a lanterna, mas ele a apagou antes de começar a correr – ou andar rápido, da forma menos ruidosa possível – utilizando-se da luz que penetrava as janelas para não bater nos móveis. Eu enxergava apenas silhuetas. Nós atravessamos um arco que dava para um quarto que devia ter pertencido a alguém importante algum dia. Gregory soltou meu pulso quando sentiu que eu não ficaria para trás.

-Eu não sei de quem vocês tão falando, não tem mais ninguém aqui, caralho!

-A gente não veio por um merdinha feito você. Cadê a Águia Dourada? A gente sabe que eles tão aqui. - O homem deu uma ordem imponente para que os homens se espalhassem. Durante alguns segundos, tudo que ouvimos foram passos correndo. Clyde não gritava mais, mas eu ainda podia ouvi-lo chorando através das paredes finas.

Nós combinamos rotas de fuga, estudamos todas as saídas e passagens da casa, para onde ir caso algo desse errado. Mas naquele momento, a inutilidade dos preparativos ficou muito clara para mim. Não há tempo para se localizar no espaço, pensar quais saídas podem dar aonde, transpôr o mapa para o espaço físico onde você se encontra. Você só pensa em sobreviver e não faz ideia de como. Gregory, ao contrário, movia-se como um guepardo que enxergava todos os obstáculos, mesmo no escuro, atravessando as portas de um cômodo ao outro até o momento em que chegamos a um outro corredor, não o principal. Estávamos longe demais para escutar o Clyde agora.

Mas assim que nos aproximamos da esquina do corredor, os pés de Gregory quase escorregaram no tapete para frear e eu bati em suas costas, enxergando as luzes de lanternas que cresciam e os passos barulhentos das botas, as agitações dos soldados. Gregory me empurrou para recuar, adentrando o primeiro quarto que encontrou, apenas um arco sem porta. Eu não conseguia respirar. Meus pulmões latejavam de tanto esforço, meus pés me diziam que não aguentavam mais me sustentar, mas a quantidade de adrenalina correndo em meu corpo inibia qualquer pensamento, qualquer dúvida, qualquer coisa que fosse me fazer cair. O cômodo em que adentramos era uma biblioteca, com uma grande porta dupla grande de maçaneta arredondada, que Gregory abriu sem se preocupar com o barulho àquela altura. Fechou a porta atrás de si com força assim que entramos, olhando para os lados até encontrar qualquer coisa que pudesse bloquear a passagem. Mas eu demorei algum tempo para perceber que ele puxava uma escrivaninha com uma força nos braços que eu nem sabia que Gregory tinha. Talvez nem ele soubesse. Assim que entrei no cômodo, apoiei uma mão na parede e abaixei a cabeça para respirar fundo, apertando os olhos com força, cobrindo minha própria cabeça com a outra mão. Merda. Puta merda.

-Kyle! - Ele gritou para mim.

E eu dizia a mim mesmo, repetidamente: “Engole tudo, só engole, não deixa nada sair agora. Não quebra agora. Não pode ser agora.” Ergui a cabeça bruscamente e assenti, correndo para ajudá-lo a terminar de posicionar a escrivaninha pesada em frente a porta. Aquilo não impediria ninguém de entrar, mas ganharia tempo. Não havia qualquer outra saída naquela sala, apenas a janela.

Mas isso fazia parte da rota de fuga.

-A gente não pode ir embora. - Eu disse a ele, minha voz espremida, oscilante. - A gente não pode deixar ele aqui.

-Você ouviu o que ele disse?! Ele fez isso pra proteger a gente, você quer estragar tudo aparecendo lá sem poder fazer merda nenhuma?! - Ele caminhava até a janela enquanto falava comigo, aquele tipo de grito sussurrado, retirando o aparelho da bolsa. Eu não vi o que aconteceu em seguida porque cobri o rosto com as duas mãos, deixando o revólver cair sobre o tapete, encolhendo meu próprio corpo, balançando negativamente a cabeça. Não. Não o Clyde. Não era nem para ele estar aqui. Eu sabia que era inútil pensar nisso agora que as vozes ficavam cada vez mais altas, que nós só poderíamos ajudá-lo de verdade saindo daqui, mas aquela onda veio em um choro apertado enquanto o meu peito se contraía tanto que eu pensei que fosse morrer sem ar durante alguns instantes. Tudo isso para tentar segurar, tentar dar conta de mim mesmo. Mas quando ergui a cabeça, o olhar no rosto de Gregory…

Foi a coisa mais assustadora que eu vi em toda a minha vida. Até aquele segundo, mesmo enquanto corríamos pelo museu, eu nunca tinha visto coisa parecida tomar conta do rosto dele. Gregory estava parado em frente à janela, a boca entreaberta e os olhos fundos, úmidos, mas fechou as pálpebras suavemente e… E desistiu. Foi exatamente isso que eu vi diante de mim, Gregory apenas desistiu. Ao me aproximar dele, eu entendi porquê. Através da janela, havia um mar de homens de branco em seus carros blindados, com seu armamento gigantesco, apenas esperando que nós descêssemos. O museu inteiro estava cercado. Eles estavam esperando por nós. Eu não sabia de onde tinham vindo, não fazia ideia, mas absolutamente não havia para onde fugir.

-E agora? - Perguntei, virando meu rosto para ele. Mas Gregory se afastava lentamente da janela, a boca ainda aberta para que o ar pudesse entrar com dificuldade, o olhar caído ao chão, a cabeça ainda balançando. - E agora, Gregory?! - Gritei. Ao mesmo tempo, as pancadas na porta começaram.

Ele apertou o aparelho em sua mão e o aproximou da boca devagar.

-Toupeira. - Disse com uma voz apertada, que tremia para se manter contida. Quando Gregory fechou os olhos, eu pude enxergar uma lágrima manchando uma das bochechas. Ele a limpou rapidamente.

-Eu tô te ouvindo mal pra caralho.

Ouvir a voz de Christophe foi o limite para que eu também começasse a chorar. Passei as duas mãos pelo rosto, esquecendo meu revólver ali no chão, sacudindo a cabeça. Não.

-Eles estavam nos esperando.

-O quê?! Eu não tô te ouvindo.

-Tem um traidor, Toupeira. - Foi a última coisa que ele disse antes de largar o aparelho no chão e correr para perto de mim, as pancadas na porta ficando mais fortes, empurrando a escrivaninha para trás. Mais homens pareciam chegar conforme os segundos se passavam. Gregory me segurou pelos ombros com seus dedos magros, apertando com mais força do que pretendia, encarando-me com olhos grandes e vermelhos, o cabelo bagunçado, suor escorrendo pelo rosto, mas ele não chorava mais. Estava ofegante. Ele secou minha bochecha de forma grosseira. - Kyle, me escute. Eu não sei o que vai acontecer daqui pra frente, mas eu preciso que você seja forte, tá bom? - Ele me falava com uma expressão carregada de dor, uma voz que tentava não soar desesperada, como um pai assustado falando para uma criança. E eu apenas o encarava com os olhos arregalados, os lábios tentando formular algum pensamento, ouvindo atentamente. Gregory falava rápido porque sabia que tinha pouco tempo. Eu só tentava engolir o choro por ele, assentindo freneticamente. - Você vai sobreviver a isso. Eu prometo que vai. Tudo que eu puder fazer pra que eles não te machuquem, eu vou fazer. Mas não importa o que eles façam, eu preciso que você não diga nada. Nada, Kyle, entendeu?

Finalmente, a porta estourou. Mas nenhum de nós tirou os olhos um do outro.

-O pior vai ser comigo, você é um Broflovski, eu não acho que eles vão te machucar. Mas se eles… - A fala atropelada foi interrompida por um tiro de algo que eu não sabia o que era. Gregory passou mais dois segundos olhando para mim antes de cair. Eu o segurei em meus braços, prestes a gritar seu nome quando fui atingido também. Eu não soube exatamente o que houve com meu corpo. Não senti dor. Não senti nada.

E tudo ficou escuro.



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