07 de junho de 3660
É madrugada. Quase três da manhã, se eu quisesse ser mais específico. Vale lembrar que, nesse horário, os detalhes já não importam tanto. Estamos no quarto de Kyle nesse momento; O Toupeira está sentado na beirada da cama, os pés descalços sentindo a textura macia do tapete branco que há do lado em que Kyle dorme. Nenhum dos dois está sóbrio. Christophe parece particularmente cansado, apertando os olhos vermelhos de sono e franzindo um pouco o nariz enquanto alcança a mão sobre o ombro esquerdo para coçar a parte superior das costas. Ele não usa nada para cobrir o tronco largo.
Enquanto isso, Kyle está de pé a poucos metros da cama, dobrando a calça para guardá-la dentro do armário. Ele só veste a mesma camisa branca de antes, agora com todos os botões abertos, e uma boxer preta que deixa a bunda dele uma gracinha. Mas Christophe não presta atenção nisso, se você quer saber, porque existe uma tensão no ar e ele não entende direito a razão.
Quer saber porque os dois estão aqui? Vamos fazer uma pequena recapitulação para poucas horas mais cedo: depois da primeira garrafa de vinho, os três jantaram no sofá. Não é algo que Kyle goste de fazer, mas já estava bêbado e contente o bastante para não se importar. Ele e Gregory passaram a maior parte do tempo com os ombros encostados, derretendo no sofá como os bêbados inúteis que são, o que quase arrancou um sorriso fraco de Christophe algumas vezes no meio das conversas. Gregory e Kyle também preservam o hábito íntimo de dar comida na boca um do outro para que experimentassem, tentando adivinhar o tempero, discutindo como se fosse uma coisa muito grave. Eles insultam um ao outro com muita facilidade, é hilário e bonito de assistir. Christophe manteve uma pequena distância física dos dois e apoiou os pés na mesinha de centro. Kyle já não o repreende mais por isso.
Depois do jantar, mais duas garrafas de vinho foram abertas. Christophe nem sequer tinha intenção de beber essa noite, até se dar conta de que não aguentaria nem mais um minuto sóbrio com os dois naquele estado. Bebeu sozinho quase meia garrafa de uísque. E verdade seja dita: caso estivesse em plena e sã consciência, provavelmente o Toupeira não teria aceitado com tanta facilidade o fato de que Gregory se esparramou no sofá ao final da noite e disse:
-O sofá é meu, vai dormir com seu namorado.
-Ele não é meu namorado. - Kyle respondeu soando inacreditavelmente embriagado enquanto se segurava no corrimão da escada, o que fez Gregory começar a gargalhar.
-Vai dormir com seu brinquedinho sexual então, eu não dou a mínima. - E enquanto falava, Gregory atirou uma almofada em Christophe, que a segurou com precisão e atirou de volta com uma força inesperada. A almofada atingiu o rosto de Gregory em cheio e produziu um som que fez parecer que o nariz de Gregory foi quebrado no processo. Mas não foi. Ele passa bem agora, desmaiado no sofá do andar debaixo.
Voltemos à situação atual.
A atenção de Christophe se volta à mesa de cabeceira, por onde os olhos passam distraidamente, sem absorver muito do que enxerga. Evita encarar o abajur durante muito tempo, pois foi exatamente esse mesmo abajur que Kyle agarrou para bater nele quando os dois caíram no chão, enroscados um ao outro, as mãos enormes de Christophe em torno do pescoço dele. É fato que o abajur nunca chegou a atingi-lo, porque a pancada no chão foi suficiente para trazê-lo de volta à realidade, mas a imagem de Kyle aterrorizado sobre ele segurando aquele abajur como se a vida dependesse disso… É o tipo da coisa que faz parte dele agora, que estará para sempre cravada em sua mente. E não por acaso, há algo na mesa de cabeceira que parece mais importante. Algo que arranca a sua atenção de qualquer outro objeto e qualquer outra lembrança. Ele franze as sobrancelhas grossas e se inclina um pouco para frente, esticando a mão para tocar o objeto, certificar-se de que aquilo é real.
A mão passa pelo porta-retratos que contém uma foto do aniversário de vinte e cinco anos de Kyle, e eu gostaria de desviar a atenção a essa foto por um instante, apesar de Christophe não fazê-lo agora. Ele já encarou esse retrato com tristeza nos olhos em um outro momento. É uma foto bonita, uma cortina florida em amarelo e vermelho ao fundo, flores grandes que Christophe reconhecia. A foto foi tirada em Nova York. A iluminação era por luzes natalinas que penduraram simplesmente porque parecia festivo; não havia muitos recursos de decoração, você pode imaginar. Kyle está sentado em uma das pontas, mordendo um copo de plástico e piscando para a câmera enquanto Gregory deita a cabeça em seu ombro, um sorriso preguiçoso na cara. Henrietta está na outra ponta, o braço em torno dos ombros de Gregory, rindo enquanto olha para o Kyle como se nem percebesse a câmera de Kenny. Ele tinha um gosto por fotografia e gostava de revelá-las, um hábito morto já há muito tempo.
De qualquer forma, os dedos grosseiros de Christophe abraçam a forma pequena de um urso de madeira antigo, trazendo-o para mais perto do rosto para analisá-lo. Corre o polegar sobre o rosto do animal, a boca entreaberta com dentes minúsculos e mal definidos, um focinho quadrado demais, mas os olhos são bem-feitos. Christophe solta um riso baixo, alisando a textura dos pelos cravados na madeira de forma rústica, mergulhado em uma nostalgia dolorosa. Kyle fecha a gaveta do armário e olha por cima do ombro para enxergá-lo, sem perceber imediatamente o que ele segura.
-Não acredito que você ainda tem essa merda. - O Toupeira diz, mostrando o amuleto a ele. Bem, acho que posso chamar de “amuleto”. - Porra, eu nem lembrava que ele era tão feio.
Os olhos do Toupeira estão focados no urso novamente, então ele perde a expressão magoada que cruza o rosto de Kyle por não mais do que um segundo. Porra, ele ficou muito bom em engolir qualquer demonstração de sentimento que não quer transparecer em seu rosto, chega a ser impressionante. Durante alguns segundos, ele pensa que vai começar a chorar se abrir a boca. Isso é o álcool falando, mais do que qualquer coisa. Kyle fecha as portas do armário de forma mais agressiva do que o necessário. Christophe estreita um pouco os olhos, pronto para perguntar o que houve quando Kyle finalmente abre a boca:
-Como é que você consegue falar uma coisa dessas?
Coitado do Toupeira. Ele não faz a menor ideia do que disse de errado.
-Você acha bonito isso daqui? - É a resposta que ele dá, ainda não levando muito a sério. Em defesa dele, eu também atribuo isso ao álcool. É a única explicação para a risada que ele dá, embora curta e baixa, mostrando os dentes amarelos. Ele ri de um jeito diferente da maioria das pessoas, franzindo o nariz com uma expressão que poderia facilmente esboçar dor. Cai estranhamente bem nele.
Kyle se cala. O que nunca é bom sinal, todos nós estamos cientes disso. Ele apoia a mão na madeira lisa do armário e umedece os lábios, de lado para o outro homem, as pálpebras pesadas tentando se manter abertas enquanto ele encara o chão. Não se move. Christophe abre a palma com o urso de madeira posicionado no centro; é engraçado, porque no fundo ele sabe exatamente o quão ofensivo é fazer pouco caso desse objeto insignificante, mas não era essa a sua intenção. Isso nem passaria pela cabeça dele.
-Bom, “isso” foi a única coisa que sobrou pra lembrar de você. - Kyle responde enfim, a amargura transbordando em todos os aspectos. Ele não encara Christophe. - Mas provavelmente isso significou bem menos pra você do que eu pensava.
-É só um pedaço de madeira, Kyle. Você não precisa disso pra lembrar de ninguém.
-Foda-se, então, talvez eu devesse ter jogado fora mesmo.
-Por que você tá chateado? - Christophe pergunta genuinamente confuso, um brilho mais forte aparecendo nas pupilas enquanto ele espera que Kyle se vire.
A ausência de contra-ataque, por mais que Kyle não queira, faz com que ele abaixe as defesas. Colocar essas coisas em palavras é muito mais difícil para ele hoje do que seria para o jovem de vinte anos que ele foi um dia. Então, ele esfrega o rosto com as duas mãos e enche os pulmões de ar para tentar encontrar alguma racionalidade no meio dessa mágoa sufocante que transborda dentro do seu peito, que ele nem sabe apontar exatamente qual é a causa. Para entender isso, você teria que ter acompanhado os últimos catorze anos da vida desse homem. É impossível, eu sei, mas eu posso te contar sobre as coisas mais importantes; sobre as noites em claro que ele passou encarando a janela como se esperasse o mundo ser engolido por um buraco na terra, porque Christophe não estava aqui e nada mais fazia sentido. Claro, ele segurava as pontas muitíssimo bem na presença de outras pessoas, enganando até mesmo Gregory por vez ou outra sobre como ele estava recuperado e não se sentia mais uma casca vazia caminhando por aí. Mas era mentira. Sempre foi mentira. Racionalmente, Kyle podia entender que não havia outro destino para os dois. Podia entender que foi a sua própria escolha ficar, não culpava ninguém por isso, nem a si mesmo. Saber dessas coisas, no entanto, não aliviava em coisa alguma a dor corrosiva de acreditar que nunca mais ouviria aquela voz de sotaque francês pesado, nunca mais se deitaria naquele peito, nunca teria a chance de viver o único amor forte o suficiente para fazer os dois acreditarem que era disso que morreriam. De amor.
Agora que eles estavam habitando o mesmo quarto, a mesma casa, a mesma vida, e o êxtase do retorno havia baixado minimamente, o peito de Kyle se enchia de todo tipo de medo e dúvida que ele não queria esclarecer. Não dúvidas sobre como se sentia, porque essa foi a única constante em sua vida desde que se percebeu apaixonado por Christophe DeLorne, mas dúvidas sobre até que ponto o outro se sentia da mesma maneira.
-Você não faz ideia de quantas vezes esse urso de merda foi a única coisa que me manteve são. - Kyle murmura entre os dentes, apertando o maxilar tenso, abraçando o próprio tronco em defensiva.
Eu posso ver a dor nos olhos de Christophe simplesmente por vê-lo desse jeito. Quase sinto o aperto em seu peito. Ele engole o acúmulo de saliva na boca e tenta segurar o riso de quem percebe alguma coisa muito irônica, porque sabe que isso vai tornar as coisas ainda mais delicadas, mas eu entendo porque ele acharia engraçado ouvir que ele “não faz ideia”. Veja bem, ninguém nesse mundo entenderia melhor do que ele o que é se agarrar a esse “pedaço de madeira” para manter a sanidade. Foi exatamente isso que ele fez quando Kyle foi preso; tratou o urso como um objeto sagrado, um amuleto que carregava consigo o tempo inteiro, um segredo que parecia ser a única coisa capaz de preservar a força de que ele precisava para fazer o que tinha que ser feito. Christophe entende perfeitamente o que a porcaria do pedaço de madeira significa. É exatamente por isso que ele pode dizer, melhor do que ninguém, com a clareza e maturidade que aquele rapaz revoltado do passado não tinha, que qualquer amuleto só pode ter a importância que é atribuída a ele.
-Isso não é sobre o urso, é? - Por fim, o Toupeira concluiu a obviedade. Isso engatilhou algo dentro de Kyle que o fez levantar a voz, esquecendo-se completamente de que havia outra pessoa dormindo naquela casa.
-Não, não é sobre a merda do urso! - Ele soa tão bêbado, é quase bonitinho. Passa de um estado furioso e impaciente a uma vulnerabilidade que tentou de todas as formas esconder. Esfrega a própria testa, já podendo sentir a dor de cabeça que terá ao acordar. - Eu só não consigo entender. Se eu… - Ele se cala, passando a língua pelos lábios e sacudindo a cabeça como se constatasse que está sendo um imbecil, prestes a pedir para que ele esqueça.
-Fala. - É tudo o que Christophe responde em um tom rouco, cuidadoso. Há carinho nessa única palavra que ele solta, mesmo que não seja explícito.
-Se eu soubesse onde te encontrar nos últimos catorze anos, eu nunca teria esperado tanto tempo. Nunca. Você sabia exatamente onde eu estava, mas você desapareceu, você me deixou pensar que você tava morto. E eu nem… Eu nem quero saber porquê, eu nem quero ouvir se você tinha outra pessoa ou se você simplesmente nem pensava em mim como eu pensava em você, eu não quero ouvir. Mas talvez eu precise ouvir, porque eu simplesmente não entendo. Assim como eu não entendo como é que isso – Ele aponta para o urso que Christophe aperta na mão, agora com mais força. - pode ser tão insignificante pra você.
Tudo isso sai agora em um vômito de palavras porque perder Christophe uma vez sem nunca tê-lo tido realmente já beirou o insuportável. E agora que Kyle o tem, agora que Kyle se sente tão pronto para passar por cima de qualquer coisa para que funcione, a ideia de estar vivendo tudo isso sozinho é muito mais apavorante do que a ideia de ser estrangulado enquanto dorme.
O Toupeira não desvia os olhos dele até o momento em que Kyle termina de falar. Só então, permite que o olhar caia para o tapete sob seus pés, enxergando-o no vão entre as pernas separadas. Sabe, uma coisa é muito clara para mim; a única coisa que Christophe deseja é poder fisicamente remover todas as angústias do peito de Kyle, mas ele sabe que nem mesmo palavras dariam conta disso. As explicações das quais Kyle precisa são muito maiores do que ele seria capaz de dar nesse momento exausto e embriagado no meio da madrugada. O silêncio dele não é sinal de descaso, você sabe disso. Ele coloca o urso de volta na mesa de cabeceira, voltando o olhar ao Kyle, que ainda não parece ter dito tudo o que precisava. Após um silêncio longo, ele continua:
-Você não tem noção de como eu me senti sozinho.
-Vem cá. - Christophe diz, erguendo a mão para ele.
E Kyle nem hesita. Talvez porque, no fundo, fosse exatamente isso que ele estava buscando, ainda que não soubesse disso. Ele caminha a passos lentos e para entre as pernas de Christophe, mas o olhar melancólico continua estampado nas íris verdes. Ele segura os ombros de Christophe e aperta um pouco, o corpo angustiado, as pálpebras se fechando com o toque das mãos quentes do Toupeira subindo pelas suas coxas até a cintura, por baixo do tecido fino da camisa. Eles se olham de perto por alguns segundos. O coração de Kyle já bate em outro ritmo quando sente o cheiro da pele dele. Talvez amor seja exatamente isso.
-Eu tô aqui. - Christophe praticamente sussurra, trazendo-o mais perto até que Kyle suba em seu colo por instinto, apertando-o com firmeza. A mão sobe pelas costas dele, deslizando quente sobre a pele, o que suaviza um pouco essa expressão dura que Kyle tem no rosto. Christophe fecha os olhos por um instante, roçando os lábios pelo maxilar dele, a textura grosseira da barba crescendo no rosto se arrastando contra a pele lisa de Kyle. É isso, vê? É assim que eles se comunicam e nunca há mal-entendidos. Com os lábios grossos e úmidos de Christophe espalhando calor pelo pescoço sensível de Kyle, que é incapaz de rejeitar qualquer toque desse homem depois de só rejeitá-lo durante dois anos, até ter certeza de que o havia perdido. Eles se beijam. É um beijo morno e lento, apenas os lábios se encaixando e se movendo preguiçosamente enquanto a mão de Christophe acaricia a coxa nua de Kyle. Quase não é sexual, essa carícia. - Você não tá sozinho. - O sussurro vem abafado pelos lábios de Kyle. Nenhum dos dois fecha os olhos, mas é difícil de enxergar assim tão perto.
Kyle afasta o rosto apenas dois ou três centímetros, um dos braços enroscado no pescoço de Christophe enquanto a outra mão escorrega pelo peito nu do homem. A pele dele é sempre tão quente, essa foi uma das coisas que Kyle guardou consigo durante todos esses anos. A lembrança dessa temperatura. Na narrativa do passado, nós nos aproximamos muito do momento em que Kyle começou a se encolher junto ao corpo de Christophe no meio da noite porque precisava desse calor, exatamente como faria um filhote de leão junto ao pai.
-Por quanto tempo? - Ele pergunta baixinho, com voz de quem não quer saber a resposta.
-Eu não sei.
Christophe não sabe mentir para as pessoas que ama. Nem mesmo quando ele sabe que seria apropriado, nem mesmo quando sente vontade, ele não sabe mentir. Talvez seja por isso que ele escolha as palavras com tanta cautela, porque todas elas serão verdadeiras. E o rosto de Kyle revela de imediato o quanto ele preferia ter ouvido uma mentira. A mão do Toupeira que descansava sobre a coxa dele agora sobe à bochecha para alisá-la com o polegar, como se tivesse medo de que ele tentasse se afastar.
-Não houve um dia desde que eu fui embora que você não esteve comigo. - A forma com que Christophe segura o rosto dele já não é tão carinhosa quanto agoniada, os dedos fazendo mais pressão do que o necessário porque ele, envolvido demais pelo whiskey em seu sangue ou simplesmente pelo amor mais devorador que já sentiu na vida, precisa que Kyle entenda coisas que ele não consegue dizer. Sua respiração intensa toca o rosto de Kyle pela proximidade. E os olhos verdes o encaram de volta com tanto desejo misturado a uma boa dose de pavor. - Eu tô aqui agora. Eu não queria estar em nenhum outro lugar nessa merda de mundo inteiro.
Isso é tudo que ele pode garantir. E ele diz isso à pessoa certa, porque todo o modo como esses dois homens escolheram viver os ensinou que nada jamais estará garantido, que o dia seguinte é sempre distante demais para ter certezas e o agora é a única coisa que importa. Talvez Kyle tenha se esquecido um pouco disso ao estabilizar a própria vida, mas Christophe o traz de volta a esse estado de luta constante, de radicalismo e animosidade. E é dessa forma que Kyle o beija, segurando os cabelos castanhos com força demais, puxando-o contra si como se eles fossem desaparecer a qualquer segundo.
Kyle amou uma boa quantidade de pessoas nos últimos catorze anos. Bem, talvez “amor” seja uma palavra violenta demais, mas se importou com muitos homens com os quais tentou dividir o corpo e o coração da única forma que podia. E Christophe também, se você quer saber, deu conta de se apaixonar nesse meio tempo. Como é natural. Mas pela forma com que eles se agarram um ao outro agora, a forma com que se beijam e cheiram um ao outro como nunca puderam fazer antes, eles sabem que aquilo que compartilham aqui não existe em nenhum outro lugar. Não para eles. Isso continuaria sendo verdade mesmo que eles nunca encontrassem o caminho de volta um ao outro.
Tempo é apenas tempo. Ah, como isso fica claro uma vez que você morre. E talvez Christophe esteja mais próximo da consciência dos mortos do que dos vivos, pela quantidade de pessoas que perdeu ou pela maneira como vive, porque ele sempre soube disso. Que o tempo não tocaria em nada do que existe entre eles. Não tinha pressa de voltar, de atropelar os acontecimentos, não tinha medo de perder Kyle porque nunca o teve para começo de conversa. E mesmo hoje, agora, não o tem. Porque Christophe DeLorne sabe que ninguém nesse mundo é capaz de possuir outro ser humano. Estão aqui porque é onde querem estar.
Christophe se deita na cama agora, Kyle por cima dele, as bocas jamais se separam como se esse fosse o ar que eles precisam para sobreviver. Demos a eles um pouco de privacidade, sim?
Ah, mas ainda há algo que quero contar.
Kyle adormeceu já faz mais de três horas. Estão deitados de frente um para o outro, nus e enroscados, a pele levemente umedecida pelo suor debaixo dos lençóis. Quando Kyle pegou no sono, tinha o rosto escondido no peito de Christophe e abraçava o tronco dele apertado, mas já se moveu durante o sono algumas vezes, então ele permanece inconsciente da presença de outra pessoa em sua cama. E não se preocupe, não estamos diante de outro ataque. Porque Christophe nem mesmo chegou a fechar os olhos para tentar dormir. Não. Passou essas três horas acordado, embora nem faça ideia da quantidade de tempo que passou. Só sabe que está prestes a amanhecer e pode ouvir o canto alto dos pássaros lá fora.
Ele apoia a cabeça na própria mão, o cotovelo apoiado no travesseiro, observando o rosto do outro. Kyle não parece em paz nem mesmo quando dorme, uma pequena ruga de preocupação presente entre as suas sobrancelhas, os ouvidos atentos apesar do seu estado. Na intimidade do escuro desse quarto, nasce esse sorriso sacana e satisfeito que ele nunca mostra pra ninguém. E não é um processo consciente; acho que ele nem mesmo sabe que está sorrindo. Kyle abraça o próprio travesseiro, a bochecha amassada contra a superfície macia, deixando os seus lábios mais protuberantes. Há um pouco de orgulho no sorriso de Christophe, se você quer saber. Orgulho porque Kyle nunca pareceu tão perigoso quanto é de verdade. O menino de dezenove anos que Christophe conheceu, aquele que não entendia porra nenhuma sobre guerra ou morte, mas que tinha um fogo impossível de ser ensinado, agora não passa de uma lembrança distante que ele sempre guardará com afeto. Em partes, depois que passou a amá-lo, Kyle foi a única pessoa para a qual Christophe desejou uma vida ordinária, medíocre e feliz, muito longe de toda a escuridão que passaram.
Kyle se mexe um pouco. Não sei dizer o que foi que o despertou, mas quando ele sente a proximidade de alguém acordado tão próximo assim, recua rapidamente em um reflexo assustado, arfando sem som. O registro de uma ameaça continua em seu corpo, não importa o quanto Kyle tente lutar contra isso. Ele não apagou por completo, estava em um estado superficial de sono. A reação é tão instintiva que não há como controlar. Se isso machuca Christophe, ele não demonstra. Apenas coloca a mão na lateral da coxa de Kyle sobre o lençol e diz:
-Tá tudo bem.
Os olhos de Kyle estão pesados pelo sono, as pálpebras inchadas dificultam a visão. Ele deita a cabeça no travesseiro novamente e respira fundo, a consciência transitando entre o sonho e a realidade. Sua mão cobre a de Christophe preguiçosamente.
-Que cagaço.
-Desculpa. - O Toupeira responde com uma voz pequena.
Kyle deixa escapar um gemido preguiçoso em vez de dizer que ele não precisa se desculpar, acariciando seu pulso antes da mão exausta esquecer de se mover. Continua de olhos fechados, o rosto voltado para o teto, todo o seu corpo implorando para deslizar de volta à inconsciência tranquila.
-Por que você tá acordado? - Kyle sussurra com uma voz arrastada, jogando o braço por cima da cabeça e soltando um bocejo longo que o faz parecer um filhote de leão. Já fizemos essa comparação hoje, não é mesmo? Pois bem.
Christophe não sorri mais. Encolhe os ombros e desliza o corpo para mais perto dele enquanto Kyle vira-se totalmente para esparramar o corpo com a barriga para cima sobre o colchão macio, deixando que Christophe se encaixe ao seu lado, passando o braço por baixo da cabeça dele e levando a mão pelos seus cabelos, mas esquecendo de acariciá-lo. O Toupeira beija a lateral do pescoço dele antes de acomodar o rosto na curva do ombro, descansando uma das pernas sobre as de Kyle, piscando algumas vezes. O quarto fica gradativamente mais claro com o sol se erguendo lá fora. Após um bom tempo em silêncio, Kyle se força a abrir os olhos e vira o rosto para ele, sorrindo fraco ao encontrá-lo assim tão perto. É uma visão que ele gostaria de ter todos os dias, eu nem preciso olhar em seu íntimo para saber.
-Tudo bem? - Kyle pergunta baixinho, sem força para falar.
Há tantas coisas que Christophe tem vontade de contar a ele. Nessas três horas acordado no calor da cama, teve tempo suficiente para se perguntar porque caralhos não havia contado exatamente o que aconteceu para decidir que era hora de voltar, exatamente o que o impede de dormir e o atormenta todas as noites, piorando imensamente os pesadelos que sempre fizeram parte de sua vida. Christophe quer contar sobre as piores coisas que fez, quer dizer a ele que vai segui-lo até o inferno a partir de agora porque já experimentou a vida sem ele e não tem intenção de soltá-lo nunca mais. Quer dizer a ele que continuou a amá-lo como um cão, independente de todas as outras pessoas. Quer dizer que vai ficar. Que deveria ter ficado, mesmo catorze anos atrás, embora saiba que isso não é verdade. Mas Christophe não dirá nenhuma dessas coisas. Não sabe como dizê-las, e ainda que soubesse, o medo o paralisa. Medo de que Kyle o enxergue de maneira diferente caso ele abra todas as coisas que precisam ser abertas.
Medo de que Kyle o veja como o monstro que ele realmente é. Que acredita ser, pelo menos.
Então, em vez de dizer qualquer coisa, Christophe ergue um pouco a cabeça para encaixar os lábios nos de Kyle de forma mais faminta do que pretendia, puxando-o contra si pela nuca e apertando em sua mão uma mecha do cabelo dele, apertando os olhos com força. À luz do dia, acordado, Kyle saberia que isso significa alguma coisa. Mas no escuro, na imersão do sono e do sexo feito há poucas horas, Kyle apenas sorri contra os lábios e retribui lentamente.
Em poucos minutos, ele cairá de volta ao sono. E Christophe continuará acordado.
Eu não sou o único fantasma que habita esse quarto neste exato momento, sabe? Há uma criança de pé logo ali, próxima ao armário. Um menino. Toda vez que Christophe pensa nele com muita força, ele aparece.
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