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História Liberté - O Luto


Escrita por: caulaty

Notas do Autor


Olá, gente bonita. Eu entrego a narração do passado nas mãos do narrador para cobrir a parte da história que se passa na ausência do Kyle, coisas que ele não viveu. Os próximos capítulos serão todos contados pelo narrador. Quando o Kyle voltar à narração, eu também deixo uma nota avisando.

Boa leitura!

Capítulo 48 - O Luto


05 de março de 3645

 

-Eles estavam nos esperando. - A estática tomou conta das últimas duas palavras. Christophe empurrou a cadeira para trás, erguendo-se feito um gigante.

-O quê?! Eu não tô te ouvindo.

-Tem um traidor, Toupeira.

 

O som que veio em seguida foi o de um estrondo. Mais estática. E então, silêncio.

 

Olá. Sou eu. Sei que não estamos acostumados a nos encontrar aqui, nesse específico momento dentre todas as linhas temporais que existem. Kyle não está aqui. Você se lembra onde Kyle está essa noite? Eu também posso vê-lo de onde estou, ainda que seja em um espaço diferente. É esta a vantagem de morrer, é claro, não há evento fora da sua frequência. Você alcança tudo. E eu estou aqui para que você, pessoa viva, possa entender a totalidade do que aconteceu quando Kyle foi levado. Eu cumprirei a função de Kyle no ano de 45 como narrador desta história, já que ele não pode fazê-lo. Preservarei a narrativa no passado para não confundi-lo. Quando for possível, Kyle voltará a contar sobre suas experiências e tudo voltará ao seu devido lugar.

É sempre curioso revisitar uma época em que eu ainda era vivo.

De qualquer forma, deixe-me ambientá-lo: a sala de operações era um lugar bastante cinza. As paredes eram cobertas por jornais velhos, bloqueando a única janela. Havia duas mesas retangulares, estas comportando aparelhos de comunicação, e cadeiras velhas de inox nas proximidades. Christophe estava de pé, sua mão grande espalmada na superfície de madeira e a outra segurando o microfone da mesa, esbravejando:

-Gregory?! Gregory, seu merda, me respon… - Então veio o silêncio completo do outro lado da linha. Não houve qualquer intervalo entre o silêncio absoluto e o barulho estrondoso dos cabos do microfone sendo arrancados, antes que este fosse lançado para colidir contra a parede oposta, desfazendo-se em diversos pedaços. O Toupeira mal se deu conta do que havia feito, tamanho era o impulso crescendo dentro dele. Michael estava sentado bem à sua frente. Você se lembra de Michael, não? Esse menino pálido, de imensos olhos cuja íris é tão preta que se confunde com a pupila, uma expressão sempre blasé no rosto. Mas agora, céus, agora tudo a respeito dele comunicava genuíno terror. A boca entreaberta, as narinas dilatadas, as mãos ossudas trêmulas sobre as coxas, a garganta tensa demais para a passagem do ar. Ele observava o amigo, o companheiro de juventude, o homem-animal que parecia inquebrável porque já estava quebrado demais. Durante os próximos segundos, não houve qualquer barulho. A única coisa que se movimentava naquela sala era devido ao tremor das mãos de Michael, e até isso era silencioso.

Ele fechou os punhos, apertando os dedos, ocultando o esmalte preto descascado nas unhas. Esperou com o pavor de quem aguarda a explosão de uma bomba; Christophe permanecia imóvel, alto como uma montanha, estagnado como pedra, olhando para o nada absoluto. Para coisas que não estavam dentro daquela sala. Algo, então, aconteceu com o rosto de Michael. Uma dor tão aguda que secou seus pulmões. O som de Michael tentando sugar o ar pela boca para chamar o nome de Christophe, não Toupeira, mas Christophe… Que som perturbador foi aquele.

Doeria até em mim se eu ainda tivesse carne para doer.

As botas pretas e desamarradas de Christophe pisaram macio no chão, carregando seu corpo em um andar calmo e constante, passos cheios de certeza. Seus olhos continuavam vazios, sem focar em coisa alguma. Seu rosto rígido se parecia com o de um homem morto, apático, sem tensão alguma. Michael levantou-se abruptamente, um arrepio percorrendo sua espinha pela frieza que o outro emanava, como se Christophe tivesse acabado de se transformar em uma máquina. Para ser honesto, Christophe nem mesmo sabia que Michael estava ali.

-Toupeira. - Tentou chamar, apressando-se para segurá-lo pelo braço, mas tudo o que fez foi roçar os dedos, pois Christophe recuou com precisão antes que Michael chegasse até ele.

E continuou seu caminho, passando pela porta, seguindo pelo corredor. As pernas eram firmes, acredite você ou não, os passos de um homem que tem certeza de onde vai. Michael seguia atrás dele, mas não ousou chamá-lo outra vez. Não havia nada nesse mundo que pudesse pará-lo. Eles cruzaram com Bebe na esquina do corredor, ela parada em frente à porta da lavanderia com um sorriso cansado no rosto.

-Oi, Toupeira. - Disse, mas ele trombou em seu ombro por acidente, sem parar de andar. Ela se agarrou ao cesto de roupa suja e voltou o olhar confuso a Michael, que tinha os olhos vermelhos agora. Como se quisesse chorar. Ele parou onde estava, encarando-a durante sólidos cinco segundos. Ela deixou cair o cesto no chão. Nenhuma palavra foi trocada. Bebe se segurou ao batente da porta com uma mão e cobriu a boca com a outra.

As roupas ficaram ali, espalhadas pelo corredor.

Christophe não viu isso acontecer, pois seus pés não pararam por nem um segundo. Fielmente carregaram-no até a sala de jogos, onde a televisão estava ligada e havia uma música circense tocando ao fundo. Muitas vozes contentes preenchiam o ambiente, pessoas jogando sinuca e se insultando amorosamente, outras conversando nos pufes, ninguém realmente prestando atenção na tela iluminada. Cartman segurava um cabo de vassoura que usava como taco, esbravejando:

-Você tá roubando, McCormick! Eu tenho cara de idiota, por acaso?!

-É lógico que tem, mas isso não quer dizer nada. Eu não tenho culpa se você é uma bosta nisso. - Kenny respondeu com um sorriso largo de satisfação, apoiando o próprio taco nos ombros por trás do pescoço, segurando-o pelas pontas. - Para de resmungar e joga logo, bundão.

-Vai se fod… - Antes que Eric pudesse terminar a frase, um punho fechado e duro feito uma rocha colidiu contra a sua bochecha direita, pegando-o tão de surpresa que o derrubou no chão imediatamente, todo o seu peso produzindo um estrondo ao aterrissar no piso gelado. O Toupeira não perdeu tempo ao montar nele, cego, enxergando apenas vermelho. Não acho que serei capaz de fazer você entender o quanto Christophe precisava sentir o sangue quente de Eric Cartman em seus punhos, entre seus dedos, mas todos que assistiram a essa cena enxergaram com seus próprios olhos aquilo que não se explica.

Em algum momento, não se sabe como, a música ao fundo parou. Tudo o que ficou para preencher os ouvidos foram aqueles sons medonhos de punho colidindo contra a carne, e de novo, e de novo, e de novo. Havia grunhidos, também, grunhidos que não pareciam ser emitidos por uma garganta. E Cartman revidava, você se pergunta? Fazia alguma coisa, tentava ao menos? É claro que tentava. Você sabe que tentava, já conhece o suficiente de Eric Cartman para saber disso. Protegia a face com os braços, gritava, tentava xingar Christophe de todos os nomes possíveis, mas não houve chance para o pobre Eric. Não pelo Toupeira ser maior e mais forte fisicamente. Na prática, é provável que ele nem fosse. O que arrancou de Eric Cartman qualquer chance de misericórdia foi o fato de que Christophe DeLorne, naquele momento, não o via como um ser humano. Deus, pobre desse francês desgraçado. Havia tanta dor dentro dele, tanta dor que ele não fazia ideia de como deixar transbordar, então ele reprimia, apertava, engolia, externalizando apenas com socos e sons animalescos.

O rosto de Cartman nem bem havia se curado do último confronto. Ainda havia marcas, hematomas doloridos, cortes que Christophe abriu novamente. Em determinado ponto, talvez não mais do que cinco segundos depois, Cartman começou a chorar de verdade. Porque o homem sentado sobre ele também não parecia humano. Christophe tinha as mãos ensanguentadas. E com essas mesmas mãos, segurou o rosto gordo e machucado de Cartman com um aperto ansioso, respirando pesadamente, encarando-o nos olhos inchados e cheios de medo.

-Você chora porque sabe o que fez. - Christophe murmurou praticamente sem separar os dentes. Esticou-se para alcançar o cabo de vassoura usado como taco, e foi aí que a paralisia em volta se quebrou. Ele gritava. - Você sabe o que fez, seu porco desgraçado!

Ele estava pronto para abrir um buraco no crânio de Eric com aquele cabo. Não havia uma célula em seu corpo que hesitasse. E até então, as pessoas ao redor assistiam à cena com medo. Não medo da violência, aquelas crianças estavam habituadas a isso. Muito mais do que deveriam estar. O que realmente os assustava era o estado catatônico, frio, mecânico com que Christophe proferia cada pancada.

Os braços enormes e quentes de Myles Standish (você sabia que esse é o nome dele?) envolveram o tronco do Toupeira e o puxaram para trás com tanta força, mas tanta força, tremendo de desespero e fadiga. Ao mesmo tempo, Kenny McCormick arrancou o cabo da mão de Christophe enquanto ele estava distraído gritando “eu vou te matar, seu filho da puta” inúmeras vezes. Inúmeras, até que as palavras não se parecessem mais com palavras, mas com algum outro som que se bastava na agonia da voz.

Standish era um homem treinado. Pôs um dos braços de Christophe em suas costas e manteve o outro em torno do seu peito, apenas segurando-o, apertando-o com força para desacelerar os batimentos de seu coração. A biologia é algo muito curioso. Você sabia que, antes do abate, os bovinos passam por um corredor muito apertado porque a sensação de compressão acalma os mamíferos? Talvez tenha alguma relação com estar no útero ou coisa parecida. De qualquer forma, foi isso que Standish fez com Christophe.

-Cara, você vai ter que relaxar, porque você me dá um medo desgraçado e eu não quero ter que te dar um soco. - Kenny disse com honestidade, nervoso, segurando os dois tacos de forma protetora contra seu peito, abaixando-se perto de Cartman, que tentava erguer o tronco com auxílio dos cotovelos.

-Vem, vamos lá pra fora. - Standish disse em uma tentativa de aliviar a pressão em torno do corpo de Christophe, mas a perspectiva de se soltar fez com que ele avançasse com mais força; Standish o puxou para trás.

-Admite! Admite que foi você, seu bosta! O que foi que te pagaram?! - Durante não mais de um segundo, ele se desprendeu do aperto de Standish e continuou imóvel como se esperasse por uma resposta. Cartman passava as costas do braço pela região dolorida abaixo do nariz, as sobrancelhas franzidas, os olhos confusos e alarmados. - Ou a sua vingancinha pessoal já foi suficiente? É por isso que eu ia “me arrepender” por te dar a merda da surra que você merece?! - Um segundo de silêncio. - Me responde, seu frouxo!

-Do que você tá falando?! - Kenny perguntou, levantando-se para se colocar entre Christophe e Eric. Você pode imaginar o quanto as suas pernas tremiam, mas Kenny era muito bom em disfarçar essas coisas. Estava muito mais assustado do que com raiva.

-Esse filho de uma puta vazou pros militares sobre a operação de hoje! Eles pegaram o Kyle, pegaram o Gregory por causa desse traidor de merda! - O ódio crescia em seu modo de falar, tornando o sotaque francês ainda mais carregado, fazendo com que ele se descontrolasse e avançasse para cima de Cartman como se Kenny fosse um obstáculo feito de bichos de pelúcia. Standish o puxou com mais vigor dessa vez, cuidando para não machucá-lo no processo, afastando-o antes mesmo que pudesse passar por cima de Kenny. Puxava Christophe em direção à porta enquanto ele gritava. - Eu vou te matar, Cartman! Amanhã você não acorda vivo, seu filho de uma puta!

Foi Henrietta quem abriu a porta para que Standish passasse, praticamente carregando um Toupeira cego e descontrolado, e foi ela também quem a fechou para que os dois tivessem privacidade no pátio. Seus olhos negros, no entanto, observavam através do vidro da porta durante um bom tempo, enquanto o silêncio tenso e aterrador se instalava naquela sala cheia de pessoas.

Céus, os olhos de Kenny McCormick naquele momento. Como se Christophe o tivesse esmurrado com aquelas palavras antes de ser arrastado para fora. Kenny continuou ali de pé, sem mover um músculo, respirando diferente, os lábios jamais se selando, os olhos caídos e cheios de água e medo e tantas outras coisas. Coisas que não têm nome. A dor em seu peito era física. Tão física que ele o tocou com a mão, apertando as pálpebras, segurando o tecido da camisa entre os dedos como se respirar fosse uma tarefa impossível. E então se virou para Cartman, encontrando uma expressão de absoluto choque. Cartman não tinha lágrimas se formando rapidamente em seus olhos, como era o caso de Kenny. Havia algo muito mais escuro tomando conta do seu rosto ensanguentado.

-Levaram o Kyle? - Ele perguntou quase sem voz, apenas os lábios se movendo e o ar escapando. E então, seus olhos avermelhados se ergueram para Kenny. - Levaram pra onde?!

-Depende. - Michael respondeu, parado em frente à porta. Encarava o nada o tempo inteiro. - Eles… - Sua voz vacilou. Ele engoliu seco. Seus olhos estavam bastante úmidos, mas era do tipo de lágrima que nunca chega a escorrer. - Eles são do governo agora. Alguém… Alguém nos entregou. Alguém de dentro.

Cartman se levantou. Kenny não se moveu para ajudar, por mais que quisesse. Não conseguia fazer outra coisa senão olhá-lo assustado. Cartman cuspiu sangue no chão, próximo ao pé de Kenny, seus olhos fundos fitando o amigo. A boca se torcia como se ele sentisse um gosto amargo.

-Você acha que fui eu? - Perguntou.

-Por que o Toupeira acha isso? - Kenny respondeu em defensiva.

-E eu lá vou saber?! Você vai acreditar nesse doente da cabeça?!

Kenny não respondeu porque não sabia. Nada parecia claro naquele momento. Começou a se sentir sufocado pela quantidade de gente naquela sala, então tomou o caminho pelo corredor, trocando um olhar tenso e demorado com Michael na passagem. Apenas sozinho no escuro do corredor, com os passos diminuindo cada vez mais, Kenny McCormick conseguiu chorar. Cobria o rosto e se apoiava na parede porque o próprio peso era demais para ser suportado. Nem sequer percebeu que parou de andar.

 

-Esse desgraçado vai ter que dormir uma hora! Que diferença faz, matar o gordo agora ou depois?! - Christophe gritava, agora de frente para Standish, empurrando-o com o próprio corpo, os braços imobilizados. A respiração era seca e pesada. Parou para encarar Standish de perto, o homem alguns centímetros mais alto do que ele, e por um segundo, pensou em cuspir em seu rosto. - Por que você tá protegendo ele, seu traíra de merda?!

Standish soltou seus pulsos, mas não tardou a segurá-lo pelos braços, mantendo Christophe perto de seu corpo.

-Não é ele que eu estou tentando proteger! - Standish gritou subitamente, seu rosto próximo ao do Toupeira. É importante observar o desespero em seus olhos. Engraçado, não? Como as pessoas reagem de formas diferentes às notícias ruins. A sensação dentro do peito de Standish é como se ele acabasse de ser dilacerado, mas você não diria isso olhando de fora. Tudo o que se pode ver em seu rosto é a preocupação, o anseio de acolher, a necessidade de manter tudo sob controle como os pais fazem.

Apesar de esse aquele ser um homem que sentia como se tivesse acabado de perder três filhos.

Christophe o empurrou com toda força que havia nos braços trêmulos de tanto bater na cara de Eric. Standish o soltou por escolha. Mas depois disso, o Toupeira não fazia ideia de para onde ir, do que fazer. Começou a andar. Passar as mãos pelos cabelos, grunhir e andar em círculos para tentar, desesperadamente, aliviar um pouco daquela energia explosiva que borbulhava dentro dele a ponto de quase enlouquecê-lo. Os dedos sujos de sangue mancharam seu rosto de vermelho. Ele suava.

-Christophe. - Standish chamou com uma voz pequena, afetuosa. Mas as próximas palavras saíram firmes, a única maneira de ser ouvido. - Você não sabe o que aconteceu, não sabe se foi esse garoto mesmo. Se você o mata e depois descobre que ele não teve nada a ver com isso, esse é o tipo da coisa que te mataria. Eu sei, eu te conheço.

-Você não me conhece! Você não sabe de merda nenhuma, Standish!

-Eu sei que não foi pra isso que o seu pai te criou! - Ele não pôde evitar gritar também, mas se arrependeria em poucos segundos.

-Pai?! - Christophe ria com amargura. Mas o riso era mesclado a tomadas de fôlego tão bruscas que ele precisou apoiar as mãos nas próprias coxas, negando com a cabeça. Quando endireitou o tronco, voltou a se deslocar com impaciência. - Eu nunca tive pai, o que me importa o que o Lennart pensaria agora, se ele tá debaixo da terra sendo comido pelos vermes?! Ele não era meu pai, você não é meu pai, você não sabe merda nenhuma sobre mim. Então sai da minha frente pra eu poder dar um fim nesse desgraçado, porque se você acha que eu não passo por cima de você…

-Christophe…

-Não encosta em mim.

Mas Standish se aproximou de forma tão macia que o outro mal percebeu. Antes que se desse conta, Christophe estava encurralado contra a parede dos fundos da casa onde Standish dormia. “Encurralado” é a palavra mais apropriada, de fato, porque ele se encolheu em si mesmo como um bicho em vez de tentar empurrar Standish. O homem levou as mãos grandes e macias aos seus braços novamente, dessa vez sem apertá-lo, e Christophe fazia tanta força dentro de si mesmo que os músculos já começavam a doer, porque cada célula de seu corpo lutava para conter algo que era impossível. Ele nem percebeu que começou a tremer.

-Eu sei que dói. - Standish disse com uma voz rouca, triste, pesada. É quase impossível descrever a expressão infeliz que as linhas em seu rosto formam. - Eu sei, filho.

Christophe apertou os olhos e deixou escapar um murmuro fraco, completamente inaudível, encostando a testa no peito de Standish. Assim, eles ficaram.

Talvez você não pare para pensar no quão jovem Christophe era nessa época, porque ele é do tipo de pessoa que jamais teve olhar de criança, mas mesmo assim. Aos olhos de Standish, é apenas um menino. Christophe não chorou, se você quer saber. Relaxou os músculos pouco a pouco, permitindo-se descansar o rosto no peito do homem até que sua respiração descontrolada voltasse ao normal, isso foi o mais próximo que ele chegou de despencar. Standish não tentou abraçá-lo; entendia muito bem o limite das coisas. O que fez foi cobrir a nuca de Christophe com sua mão e, durante os poucos segundos que Christophe lhe permitiu, oferecer a possibilidade de compartilhar a dor para que o fardo ficasse um pouco mais leve.

 

Kenny abriu a porta do quarto cautelosamente, branco feito um fantasma. É curioso usar essa expressão quando se é um fantasma, visto que nós não somos brancos, mas enfim. Fato é, Kenny tinha o rosto pálido e os olhos bastante vermelhos quando adentrou o quarto, usando um suéter de lã bege que caía folgado em seu corpo magro. Fechou a porta com delicadeza, fungando – mas o nariz estava trancado demais – e gastou bons segundos assim, segurando a maçaneta com os olhos fechados, apertando os lábios, todas as palavras entaladas na garganta como algo físico, materializado em um soluço choroso que ele não queria (não podia) liberar na presença de Stan.

Stan apenas olhou suas costas de relance enquanto continuava a desfazer a mala grande. Retirava as peças de roupa com uma agressividade nas mãos que não lhe pertencia. Stan era uma pessoa gentil, veja bem. Gentil de verdade, algo que não se via muito no mundo na época em que fui vivo. Era particularmente doloroso vê-lo dessa maneira, o rosto e as mãos inchados pelo confronto daquela tarde, seu corpo encharcado em mágoa revertida em ódio. Ele pensava que esse era o pior momento que já atravessou, pensava que seu coração não poderia doer mais do que já dói, mas isso é uma bobagem. Sempre pode doer mais enquanto se tem algo a perder. E Stan tinha. Não sabia disso, mas tinha.

Kenny estava ali para trazer a notícia. Só depois disso, Stan Marsh entenderia o que era dor de verdade.

-Stan. - Murmurou em sua voz fraca. Se Stan não estivesse tão amargurado, teria percebido a diferença na voz do melhor amigo ali mesmo. Mas estava de costas, sem enxergar seu rosto, nem sequer sentindo vontade de reconhecer sua presença.

Continuou realizando o mesmo movimento repetitivo de separar as roupas e jogá-las no espaço vazio da gaveta que Kenny separara para ele. Dividiriam o quarto dali em diante, esse era o plano para emendar a ferida arregaçada no peito de Stan.

-Eu não quero conversar agora, cara. - Respondeu distraidamente. Já fazia horas desde que a briga havia terminado, mas mesmo assim, a respiração de Stan continuava oscilante e dolorosa.

Kenny apoiou as costas contra a porta fechada, ergueu o rosto em direção ao teto e respirou fundo, estremecido, lágrimas quentes escorrendo pelas bochechas. Esse foi o momento em que Kenny reuniu todo resquício de força que lhe sobrara.

-Stan. - Chamou mais firme, fitando as costas do amigo.

-O quê?! - Stan se virou de maneira quase violenta, ainda segurando uma camiseta azul, franzindo o cenho.

Foi então que ele viu. Viu, na expressão de Kenny McCormick, tudo que precisava ver. O nariz rosado, os olhos úmidos, os lábios trêmulos, mas acima de tudo, aquela expressão carregada de compaixão, a expressão de uma pessoa que não quer dizer em voz alta o que sabe que vai destruir o outro. Kenny gostaria de jamais precisar proferir as palavras. E de fato, não precisou. As linhas no rosto de Stan relaxaram aos poucos, todo resquício de raiva desaparecendo em pleno ar, como se nunca tivesse existido. Ele deixou a camiseta cair no chão.

-Cadê ele? - Stan perguntou. A voz não saiu fraca. Não saiu trêmula. Deu alguns passos para frente. Kenny se esqueceu de respirar, o corpo inteiro rígido, o olhar doloroso de se encarar, mas Stan não desviou nem por um segundo. - Cadê ele?! - Perguntou mais alto, agora parecendo furioso.

-Eles o pegaram. - Kenny murmurou, encolhendo-se como o grito do outro o ferisse fisicamente. Era a voz fina de quem é forçado a dizer o que não suporta. Começou a balançar a cabeça, sabendo que as próprias palavras não fazia sentido. Não podia ser real. É isso que os vivos tendem a pensar diante da desgraça. - Alguém… Era uma emboscada.

Stan passou por ele feito um furacão, empurrando-o para abrir a porta violentamente. Kenny chamou seu nome, esquecendo-se da própria dor de forma momentânea, tomado apenas por preocupação. Mas Stan não parou de andar, não parou de descer as escadas e atravessar o pátio como se esperasse ver o rosto de Kyle Broflovski, porque aquilo não era verdade, não podia ser verdade, não fazia sentido algum. É engraçado, você não acha? Como todas as coisas são colocadas em perspectiva assim, de repente, diante da possibilidade de perder. Foi ali mesmo que Stan perdoou Kyle por tudo. Só precisava vê-lo. Era disso que Stan Marsh precisava para respirar de novo.

As pernas se cansaram de correr. Era como se raízes se formassem dentro de seu peito, entrelaçando-se umas às outras, tomando conta de todos os órgãos, impedindo-o de encher os pulmões. A boca continuava aberta, sugando o ar. Os olhos vagavam por todas as partes, pela silhueta das árvores no escuro, a luz esverdeada da lua no céu, os bancos de pedra do pátio, a fonte, nenhum sinal de Kyle em lugar algum. Como se ele nem existisse. Como se Stan tivesse sonhado com ele esse tempo todo.

A coisa toda só se tornou real quando Stan chegou à sala de jogos. Havia sangue no chão, mas Cartman não estava mais lá. Os rostos carregados por sombras se viraram para ele com olhares que Stan ainda não podia entender. Wendy foi quem se aproximou primeiro, jogando os braços em torno do pescoço dele, escondendo o rosto molhado em seu ombro, apertando-o com desespero; foi uma tentativa de conforto, mas Stan continuou rígido sob o toque dela e não a abraçou de volta. Seus olhos estavam fixos na televisão.

Vieram os estouros.

Alguns sons assustados preencheram a sala, a maioria apenas em tomadas bruscas de fôlego. Muitos olharam para o teto como se a resposta estivesse ali. Um. Dois. Três estouros. Wendy se desprendeu de Stan para tampar os ouvidos no segundo. Pip se aproximou cautelosamente de Stan e tocou seu braço. Kenny também se manteve próximo. Havia uma precipitação tensa no ar; aquilo que, antes, não passava do rumor delirante de um homem traumatizado, algo que poderia ser interpretado de diversas formas, agora tornava-se extremamente palpável. Era real.

Outras pessoas adentravam a sala em curiosidade. Muitos rostos pareciam confusos. Henrietta e Michael estavam próximos à porta, observando Stan de longe, trocando olhares ilegíveis.

Na televisão, veio a tela do pronunciamento extraordinário. O primeiro rosto foi o de Gregory. Seu rosto ficou congelado na tela por sólidos cinco segundos, causando maior impacto naqueles que não sabiam, arrancando diversos sons que não poderiam ser compreendidos ao todo. Stan teve certeza de que desmaiaria quando o rosto de Kyle apareceu em seguida; se quer saber, acredito que o que manteve Stanley de pé foi a mão carinhosa de Kenny em sua nuca, um toque suave de conforto, lembrando-o de que não estava sozinho. E nunca estaria.

Depois, veio o rosto de Clyde.

-Ah, não. - Kenny disse, cobrindo os olhos.

Poucos segundos depois, Craig Tucker adentrou a sala. Tinha as mãos nos bolsos e um olhar despreocupado, uma pequena ruga confusa entre as sobrancelhas devido à agitação. Aproximou-se de Token, que estava encostado no braço do sofá com os braços cruzados e uma expressão aterrorizada. Mal percebeu a chegada de Craig, que não encarava a tela da televisão.

-Alguém viu o Clyde? - Perguntou, virando-se para os outros rostos conhecidos. - Eu procurei por todo lado, onde aquele idiota foi?

A televisão já voltara à programação normal.

Não há palavras que definam a maneira com que Token olhou Craig Tucker naquele momento. Ah, a antecipação de dar notícias destruidoras. Saber que a pessoa continuará pisando em chão firme se você mantiver os lábios fechados. Ser responsável pela ruína de alguém. Os seres humanos vivos têm essa mania tão estranha de tomar responsabilidade pelo que não lhes cabe. Bem, já vimos tudo o que se tinha para ser visto aqui.

 

Duas horas depois, o grupo maior havia se dispersado. A sala de jogos tinha todas as luzes apagadas, mas as luzes do pátio penetravam através do vidro da porta fechada. Henrietta, Michael, Pete e Firkle eram os únicos ainda ali, todos de pé observando o homem sentado no chão lá fora, sozinho. Christophe nem mesmo reconhecia a presença deles. Estava abraçado aos joelhos, a cabeça baixa, o olhar focado em um ponto específico do piso de pedra. Os góticos, todos vestidos de preto, guardavam-no com cautela e de longe.

-Você acha que ajudaria se ele tivesse alguém pra socar? - Michael perguntou a Henrietta. E, virando-se para o garoto mais baixo ao seu lado. - Vai lá, Pete. Fala pra ele te dar um murro.

-Vai você.

-Isso não vai ajudar. - Henrietta interrompeu, cruzando os braços embaixo dos seios.

-Eu tenho um licor bem forte aqui. - Firkle mencionou enquanto puxava um cantil de alumínio do bolso.

-Quem vai levar? - Michael perguntou, um “eu não quero ir” bastante implícito em sua voz. Não era covardia ou falta de consideração. Michael entendia que não era dele que Christophe precisava. A pergunta foi retórica.

Henrietta arrancou o cantil da mão de Firkle, respirou fundo e deslizou a porta de vidro para pisar lá fora, sentindo uma brisa gelada contra o rosto. Sua expressão era séria, uma ruga infeliz entre as sobrancelhas, a boca em uma linha reta, mas seus olhos eram gentis naquela noite. Coisa que raramente acontecia.

Ela levantou a barra do vestido preto até os tornozelos e se sentou no chão, as costas apoiadas contra o muro, bem ao lado de Christophe. Dobrou os joelhos e respirou fundo, encarando a lua, não surpresa por sua presença ser ignorada. Bateu com as unhas compridas contra o cantil algumas vezes.

-Você tá aqui fora há um tempo. - Ela constatou.

O Toupeira virou o rosto para enxergá-la, os olhos semicerrados como se a claridade o incomodasse, por mais fraca que fosse. Henrietta abriu o cantil e ofereceu, sem avisar qual era o conteúdo. Mas Christophe não fez questão sequer de cheirar. Abaixou a cabeça novamente e cobriu a nuca com as mãos. Seu crânio parecia prestes a explodir. Quando Henrietta tentou tocar seu ombro, ele recuou como se o toque machucasse. Ela recolheu a mão imediatamente.

Esperou. Conhecia aquele homem bem o suficiente para saber quando era necessário deixá-lo em paz durante dez, vinte segundos.

-Quer conversar? - Ela perguntou, já sabendo a resposta.

O Toupeira negou com a cabeça.

Henrietta alcançou o maço amassado de cigarros que guardava entre os peitos, puxando um para fora com a boca, procurando o isqueiro dentro do próprio maço.

-Quer fumar?

Novamente, tudo o que recebeu foi um gesto de negação. Isso sim era preocupante. Ela protegeu o cigarro com uma mão e tentou acendê-lo com a outra, três vezes, até que a ponta alaranjada se iluminou. Após uma tragada longa de alívio, Henrietta fechou os olhos e encostou a cabeça no muro, suspirando de maneira cansada. Havia uma camada grossa de rímel em seus cílios.

-Quer só sentar aqui e ficar em silêncio? - Foi sua melhor tentativa. Christophe apenas encolheu os ombros. Ela abriu um sorriso triste, sutil, os cantos da boca se levantando minimamente.

Cerca de cinco minutos se passaram.

Havia algo de interessante na postura de Christophe; tinha os joelhos levemente flexionados, os antebraços apoiados nas coxas, apenas as laterais dos pés encostando no chão. O tronco caía para frente, o queixo quase encostava no peito, os olhos encaravam o nada. Ele quase parecia vulnerável, o rosto tenso como o de alguém que tenta aliviar uma dor física. E você pode imaginar o que se passa dentro dele? Eu nem consigo. Havia duas pessoas no mundo que conseguiram penetrar essa casca rígida em torno dele, e agora, as duas se foram. Pode imaginar esse tipo de solidão? Claro, Henrietta estava ali, bem ao seu lado, mas Henrietta era parecida demais com ele, encolhida demais dentro da própria concha para invadí-lo.

-Ele não vai sobreviver. - Christophe murmurou de repente, lembrando-se de respirar, fechando os olhos enquanto apoiada os pés no chão e os trazia para mais perto de seu corpo, dobrando os joelhos. Abraçou o próprio tronco sem perceber.

-Broflovski?

-É.

Ela franziu o cenho, trazendo o cigarro aos lábios enquanto pensava. Manchou a ponta do cigarro com seu batom vermelho-escuro.

-E por que você diria isso?

-Porque é verdade.

-Não sei, Toupeira. O garoto ainda não viu muita coisa ruim, mas ele sempre me pareceu bem forte… Diferente do coitado do Donovan. E ele não está sozinho, está com o Gregory.

É importante ressaltar que as palavras de Henrietta não foram uma tentativa de conforto. Foi como apontar um fato, uma coisa racional.

-Eu não… Não tô dizendo que ele vai morrer lá dentro. Ele não vai. - Christophe virou para fitá-la nos olhos. - Porque eu não vou deixar. Mas ele, quem ele é hoje, esse garoto que ainda não viu muita coisa ruim, ele não vai sobreviver. - Balançou um pouco a cabeça, passando a mão pelos cabelos sujos, respirando fundo. Desviou o olhar novamente, agora como se falasse para si mesmo. - Eu não sei quem caralhos eu vou tirar da prisão, mas não vai ser o Kyle.

Havia tanta dor naquela voz que os olhos de Henrietta começaram a arder. Ela não se lembrava da última vez que havia chorado, e não foi naquela noite que lágrimas escorreram pelas suas bochechas redondas, mas Christophe não precisava explicar coisas que ela conhecia de perto. Os dois conheciam tortura, sabiam o que era ter sua liberdade arrancada, entendiam de morte e de dor, não como uma coisa abstrata e distante, mas como parte integral de quem eram. Aqui sentavam-se duas criaturas que tiveram seus espíritos quebrados há tanto tempo que nem eram capazes de se lembrar da sensação de ser inteiro. E jamais desejariam isso a ninguém, nem mesmo em nome de se tornar mais forte.

Dessa vez, quando Henrietta tocou seu braço, Christophe não tentou se afastar.

Ela não ofereceu nenhuma mentira confortável, não tentou convencê-lo de alguma ilusão que, por um momento, faria com que ele se sentisse melhor. Porque, para ela, isso seria desrespeitoso. Tragou uma última vez o cigarro e, então, passou para ele. Christophe aceitou. Inalar a fumaça relaxou seus ombros de imediato. O Toupeira segurava o cigarro entre o indicador e o dedo médio, coçando o olho direito com seu polegar, fungando baixo.

-Marsh já sabe? - Ele perguntou.

-Sim.

Christophe mordeu o interior da bochecha e sacudiu a cabeça de repente, esfregando a testa com a mão esquerda, apertando os olhos como se o crânio doesse.

-Putain de vie. - Ele murmurou.

-Eu me preocupo com aquele garoto. E com Tucker, também. Às vezes não sei se é pior para quem vai ou para quem fica. - Ela o observou com olhos cansados, um carinho fraternal brilhando em suas íris. - É estranho. Eu sinto como se estivesse perdendo meu irmão de novo.

Christophe apenas fumou. Henrietta recolheu a mão de seu ombro.

-Nós vamos trazê-los de volta. - Henrietta disse com sinceridade. - Os três.

 

 

Stan se isolou onde acreditava que mais ninguém o encontraria; o beco atrás da cozinha onde ficavam os latões de lixo. Não conseguiu ficar no quarto que dividiria com Kenny, onde Pip, Wendy e Bebe apareciam com frequência para olhá-lo com compaixão, mastigando as próprias dores, com rostos preocupados de quem esperava um ataque psicótico a qualquer momento. Kenny saía para chorar o tempo inteiro, o que sempre fazia o estômago de Stan revirar. Stanley é uma pessoa tão peculiar, você não acha? Um coração tão imenso, uma alma tão gentil, e ao mesmo tempo, um rapaz que nunca soube externalizar as coisas que sente. Quieto, fechado, melancólico, sozinho. Deus, você tinha que vê-lo agora. Stan sempre foi do tipo de pessoa que sofre para dentro. Ele se encolhia, literalmente, cobrindo a cabeça com os braços, escondendo-se nas próprias pernas, como uma criança perdida no meio da rua.

Agora, ele já não chorava mais.

Não ouviu o Toupeira se aproximar. Eu sempre achei curioso, como pode um homem tão grande e indelicado ser tão sorrateiro? Mas ele era. Stan só notou sua presença quando ouviu um som estranhíssimo de algo mole e úmido batendo contra o chão, muito perto de seu pé. Ergueu a cabeça assustado, os olhos grandes e pesados pela tristeza. A primeira coisa que viu foi o pedaço de carne crua atirado ao solo, sangrando. Recolheu o pé impulsivamente e franziu o cenho, erguendo o olhar cansado ao Toupeira que continuava parado casualmente ali, esperando por alguma coisa. Sua mão estava pingando de sangue animal por conta da carne. Passou pela cabeça de Stan que aquilo nem fosse parte de um animal; não duvidaria nada que fosse carne humana.

-Caralho, você é um animal mesmo. - Stan disse sem qualquer intuito de ofender, apenas uma constatação.

-É pro seu olho. - Christophe fez um gesto com a mão ensanguentada próxima ao rosto. - Ajuda com o inchaço.

O cérebro exausto de Stanley ainda levou alguns segundos para computar aquilo como um gesto de boa fé. E, quando conseguiu, não pôde evitar o sorriso cínico que brotou em seus lábios, incrédulo. Balançou um pouco a cabeça, voltando a abaixar o rosto, cobrindo a nuca dolorida com a mão. Havia uma dor latejante atrás de seus olhos, mas isso não tinha necessariamente alguma relação à briga daquela tarde.

O rosto de Christophe também era marcado por hematomas, talvez até piores do que os de Stan, mas se destacavam muito menos em sua face; fosse pelas cicatrizes que já habitavam aquele rosto desde sempre ou o fato de que sua pele era mais escura, menos pálida do que a de Stan, que agora era pincelada por um roxo muito forte.

Havia uma garrafa de vodka ao lado de Stan no chão. Ele a segurou pelo pescoço e entornou um gole demorado. Secou a boca com as costas do braço, espiando o homem de pé à sua frente, incomodado por aquela sombra imponente que o cobria. Bem, quase não havia luz naquele beco. Era lua cheia.

Com um suspiro resignado, encolhendo os ombros, Stan retribuiu o gesto: ergueu a garrafa para que Christophe bebesse. Ele aceitou. Logo em seguida, sentou-se ao lado de Stan.

Ficaram em silêncio durante algum tempo, ambos os rostos voltados para o céu. De repente, Stan voltou a encarar o pedaço cru de carne.

-Eu sou vegetariano. - Disse sem saber porquê. O álcool o havia anestesiado o bastante para articular palavras agora.

-Eu não disse pra comer, eu disse pra botar na cara. - Diante da hesitação do outro, Christophe ergueu a garrafa e continuou. - O bicho já morreu mesmo, anda.

Stan não podia entender o quanto aquele homem era literal. Não estava prestes a explicar seu incômodo com carne crua, sangue, o embrulho que trazia ao estômago e as memórias que aquilo provocava. Porque, se fosse bem honesto, tudo isso parecia pequeno agora. Stan estava meio bêbado, meio destruído, sem saber exatamente o que havia restado. Apenas pegou o pedaço de carne, sentindo a textura fria e mole em seus dedos, e o repousou sobre o olho inchado cuidadosamente. Ainda estava dolorido, ele percebeu ao tocar. Era uma sensação bastante desagradável.

Alguma coisa transbordou dentro dele. Stan pressionou a carne contra seu rosto com mais força e apertou os olhos, estremecendo, sentindo as lágrimas se construindo dentro dele mais uma vez. Porque Stan Marsh conheceu Kyle a sua vida inteira, nem sequer tinha lembranças de passar algum momento longe dele, Kyle era parte de tudo o que Stan se tornou como pessoa. A razão para ele estar ali, a tantos quilômetros de casa, sem notícias de sua mãe, tentando acreditar em alguma coisa maior. Kyle era o que o mantinha em movimento, o turbilhão que sempre dava fim à calmaria, à constância que era Stan. Era como se um pedaço seu tivesse sido arrancado. Como estar sem um membro, sem perspectiva de sobreviver sem ele, mesmo sabendo que isso não o mataria. Tudo isso voltou como um emaranhado em seu peito, trancando sua garganta. A única forma de alívio era o choro. Choro dolorido, choro apertado, não mais orgulhoso, puro como o de um bebê.

-Você não vai chorar, vai? - Christophe perguntou quando ele começou a se encolher, soando perturbado.

-Vou. - Stan respondeu com amargura. - Vou, caralho. Nem todo mundo é sociopata como você, Toupeira. A pessoa mais importante da minha vida acaba de morrer, pode ter certeza de que eu vou chorar.

Christophe não se irritou. Esticou a mão com a garrafa, que Stan tomou bruscamente para si.

-Nunca mais repete uma merda dessas. - O Toupeira disse em um tom apático. - Ele não morreu.

-Ainda.

Se não fosse pelos goles de vodka, talvez Christophe o tivesse mandado calar a boca. Mas não havia energia para isso em nenhum dos dois. Ele suspirou fundo, massageando o ponto entre as sobrancelhas, pensando antes de falar. Algo que pouco fazia.

-Olha só, Marsh. Duas coisas podem ter acontecido. Ou eles foram levados para o estado de Washington, ou para o Texas. Em Washington, eles serão presos no White Garden, é para onde levam todos os prisioneiros políticos. E lá, eu vou te dizer, aquele lugar faz o inferno parecer uma colônia de férias. O presídio fica em uma porra de uma ilha. - Ele virou o tronco de frente para Stan, as pernas dobradas, uma mão apoiada no chão. - Fazem coisas que você nem consegue imaginar. Mas é lá que você quer que ele esteja. E eu tenho certeza de que é lá mesmo. Kyle não seria útil pra eles no Texas.

-O que acontece no Texas, afinal de contas?! - Stan perguntou, retirando o pedaço de carne do rosto para largá-lo no chão. Limpou o sangue fino de sua pele com uma das mãos.

Christophe fez uma careta momentânea como se sentisse um gosto amargo na boca, hesitante em responder. Endireitou-se.

-Testes biológicos nos prisioneiros. É isso que acontece. Cortam, abrem, injetam, você… Eles não te matam, preferem trabalhar em tecido vivo. Ninguém volta de lá, porque aquilo não é mais gente. As coisas que acontecem com os corpos naquele lugar… - Ele fez uma pausa. - Aquilo não é mais gente. - Repetiu.

Stan tinha os lábios entreabertos e os olhos aterrorizados. Nenhum som saiu. Christophe levou algum tempo para perceber a expressão dele.

-Mas não é lá que ele está. Ele ainda tem utilidade, e muita. Ninguém que é útil vai pro Texas. Lá é o lixão.

-Eu pensei… Que isso fossem só rumores.

-É, bom, não são. - O Toupeira respondeu com um riso infeliz, quase cínico, pegando a garrafa da mão de Stan para entornar mais um gole, seguido por uma careta pela ardência do líquido descendo em sua garganta. Devolveu-a logo em seguida.

-Meu Deus, cara. - Stan esfregou o rosto com a mão livre. Agora, parecia dez anos mais jovem. - Então… Você tá dizendo o quê, tem uma chance?

-Tem uma chance.

-Como?!

Ele levou muito tempo para responder. Não fez contato visual, ao ponto de Stan se ajoelhar de frente para ele, segurando a garrafa de pé em seu colo com as duas mãos, encarando-o em uma expectativa corrosiva que fez o Toupeira se arrepender de ter dito qualquer coisa.

-Como, Christophe?!

-Eu não vou te envolver nessa merda, Marsh.

-Não vai…? Isso não é escolha sua. - Stan lhe deu alguns segundos para discutir, mas tudo o que o homem fez foi abaixar um pouco a cabeça e massagear a nuca com dor. Foi aí que Stan ficou realmente furioso. Levantou-se bruscamente, atingido por uma tontura imediata, gesticulando com a garrafa aberta de vodka. Ele parecia tão embriagado, mas boa parte disso era apenas dor. - Sabe qual foi a última coisa que eu disse pra ele?! “Eu preciso que você vá tomar no cu”. Foi isso que eu disse, porque eu tava tão… Eu tava com tanta raiva, eu queria tanto machucá-lo, e agora… - Ele engasgou por um momento, cobrindo a própria boca com a mão manchada de sangue, sacudindo a cabeça. Engoliu tudo o que tentou subir pela garganta e transbordar pelos olhos. Deus, como falar era difícil. - Essa não pode ser a última coisa que eu disse pra ele na vida, Toupeira. Não pode. - Stan deixou os braços caírem ao longo do corpo e observou o outro por um momento, sentindo as lágrimas quentes rolando pelas bochechas. Fungou uma vez. Christophe, que até então só olhava para frente, ergueu o olhar a Stan de maneira dolorosamente respeitosa. - Se você pretende fazer alguma coisa, se existe um jeito de tirá-los de lá… Você não pode me tratar como se eu fosse um moleque incompetente. - Stan deu um passo à frente. - Ele é meu melhor amigo, cara. Se você não respeita mais nada, se o meu relacionamento com ele não significa nada pra você, respeita pelo menos isso.

Christophe sentiu vontade de rir. Não teve forças para fazê-lo, mas a vontade estava lá, porque aos seus olhos, tudo isso parecia irônico demais. Veja, esse é um momento interessante. Durante esse tempo todo, esse ano que passaram juntos, os três, Stan e Christophe compartilharam sentimentos muito parecidos sem fazer ideia. Ambos nunca se sentiram suficientes, ambos achavam que o outro podia oferecer coisas que eles jamais poderiam. Kyle era a melhor e pior coisa que os dois tinham na vida, e agora, ele não estava mais lá. Eles podiam se enxergar por uma outra luz na ausência dele.

-Eu não acho que você seja um moleque incompetente, Marsh. Não mais. - Ele poderia tentar explicar como sente um impulso inexplicável de proteger Stan das coisas imundas que eles teriam que fazer porque sabia que esse era o desejo de Kyle, mas Christophe jamais diria uma coisa dessas em voz alta. - Ele não vai sair barato.

-“Barato”? Ele é uma porra de um produto?!

-Aos olhos deles, sim. É exatamente isso que ele é. Eles têm algo nosso, nós precisamos de algo deles. Só tem um jeito de libertar prisioneiros, e não é bonito, mas funciona. A pressão popular pode ajudar.

Stan lembrava-se do relato de Michael sobre como libertaram Henrietta da prisão; a primeira conversa que tiveram com aquele grupo, apenas há três meses, mas parecia ter sido anos atrás. O tempo se movia assim agora. Sentiu um arrepio na espinha, o estômago ficou mais apertado, mas Stan manteve um rosto rígido.

-Nós conseguimos tirar os três? - Perguntou baixinho.

Christophe encolheu os ombros.

-A boa notícia é que a vida de um embaixador vale muito mais do que a nossa. Talvez… - Ele manteve os lábios entreabertos, encarando o latão de lixo na parede oposta, sem desejo algum de encontrar os pesados olhos azuis de Stan. - Se tivermos que escolher dois, Gregory vai querer ficar. - Foi uma das coisas mais difíceis que Christophe DeLorne teve que dizer em toda a sua vida. Durante alguns segundos, não respirou. Fechou os olhos. - Se for só um, tiramos o Kyle. Dois, Kyle e Donovan.

Stan apenas negou com a cabeça, mas não disse nada. Apoiou a mão no muro no qual estavam encostados, tentando lutar contra o ácido subindo pelo seu esôfago. Que tipo de escolha é essa, entre uma vida e outra? E que direito eles tinham de tomá-la? Durante esses segundos, Stan quase recuou. Quase admitiu que não tinha forças para isso. Quase caiu de joelhos e se entregou. Mas algo a respeito da presença de Christophe, por qualquer motivo, o manteve são. Stan se abaixou, recolhendo o pedaço de carne e estendendo-o a Christophe.

-A sua cara tá pior do que a minha. - Disse.

Durante um momento, Christophe apenas o encarou sério. Mas um riso frouxo escapou dos seus lábios infelizes enquanto ele aceitava a oferenda. Stan se sentou novamente. Eles beberam juntos em silêncio.



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