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História Liberté - O Traidor


Escrita por: caulaty

Capítulo 49 - O Traidor


07 de março de 3645

 

Havia sete pessoas na sala de operações. Talvez seja apropriado tomar algum tempo para olhar cada uma delas individualmente, a começar por Michael, para qual todos os olhos estavam voltados. Ele estava sentado à mesa com o telefone vermelho no ouvido, segurando-o com o ombro, uma das mãos segurando um cigarro e a outra apertando uma mecha de seus cabelos crespos e grossos. Michael sempre tinha olheiras, mas naquele dia, elas estavam muito mais profundas e muito mais escuras. Ele não dormia há 36 horas. Havia um copo plástico cheio de café preto bem à sua frente. O cigarro estava preso entre o indicador e o dedo médio, praticamente inteiro, as cinzas ardendo e ficando cada vez maiores. Quando ele tragava, era de forma compulsiva, como se precisasse disso para respirar. O esmalte preto de suas unhas estava bem descascado.

Token Black vestia branco e se parecia com uma torre, um farol no meio do mar agitado em uma tormenta. Tinha os braços cruzados, colocando-se de pé, encarando Michael do lado oposto da mesa. Sua expressão era ilegível, esculpida em pedra, mas seus olhos (as íris tão negras que se confundiam com as pupilas) brilhavam em angústia. Seu coração batia tão forte que pulsava em seus ouvidos, mas ninguém mais podia ouvir. Craig, no entanto, não conseguia parar de andar. Aquela movimentação constante perturbava a todos eles, mas ninguém se atreveu a pedir que parasse. Ele caminhava até um canto da sala, encarava a parede por alguns segundos, respirava pesado como um animal ferido, depois continuava a andar. Quando parou próximo a Token, o amigo tentou colocar a mão em seu ombro. Mas Craig se afastou. Queria chorar, era muito óbvio, e isso fazia com que ninguém o encarasse diretamente nos olhos. Como se não percebessem. Ah, essas tentativas vãs de conforto, quão inúteis elas são.

Standish era a única pessoa verdadeiramente calma entre eles. Também próximo à mesa, as mãos apoiadas na superfície logo ao lado de Michael, um olhar austero e preocupado em sua face cansada. Ele coçou embaixo do tapa-olho, depois o ajeitou e respirou fundo, percebendo de relance os meninos aflitos ao seu redor. Standish era o verdadeiro pilar, o centro, a pessoa a conter crises que poderiam explodir. Ele tentava se convencer de que estava preparado para isso, acostumado demais ao movimento cruel dessas crianças sendo levadas a lugares horríveis para que coisas horríveis fossem feitas com elas. Mas a verdade é que ninguém nunca se acostuma com esse tipo de coisa. Toda vez parecia ser a primeira.

Cartman mantinha-se na porta, ia e voltava de vez em quando. Seu braço estava imobilizado por uma tipoia. Ele o havia fraturado na queda, quando foi atacado pelo animal do outro lado da sala. Tinha os olhos vermelhos que delatavam um choro profundo e constante, e todos sabiam que essa era a razão pela qual Cartman se afastava o tempo inteiro, mas para ser bem honesto, ninguém dava a mínima para como cada um decidia lidar com sua dor.

E por fim, Stan e Christophe. Stan era a única pessoa – além de Michael – que conseguia se manter sentada. Na verdade, ele não tinha escolha. Suas pernas não funcionavam. Era resultado da fraqueza física consequente a passar dois dias sem comer. Tinha os cotovelos apoiados na mesa e o rosto escondido nas mãos, combatendo uma dor de cabeça corrosiva e constante. Naquele momento, Stan não chorava. Talvez já não houvesse mais água em seu corpo, talvez fosse fisicamente impossível chorar mais. Christophe, no entanto, não derramou e nem vai derramar uma lágrima. Ele permanecia no canto mais escuro da sala, o mais afastado possível de todos os outros, usando a parede como um suporte para se manter de pé. Por vez ou outra, fechava os olhos. Mexia-se muito pouco.

Kenny McCormick havia se enforcado no armário de seu quarto há duas horas, mas ninguém encontraria seu corpo e ninguém realmente sentiria sua falta até que ele voltasse como se nada tivesse acontecido. Não preciso perguntar a ele a razão disso para saber que Kenny está tentando se certificar de que Kyle, Gregory e Clyde ainda estão vivos. Quer procurá-los no outro mundo; Eu não poderia perguntar, mesmo se quisesse. Esse Kenny é inacessível para mim, visto que eu continuo vivo na realidade dele. Imagino que ele também esteja tentando buscar um alívio momentâneo. Fico curioso para saber se isso funciona ou não.

-Helen. - Michael disse para a pessoa do outro lado da linha, cuja voz mais ninguém podia escutar. - Descobriu alguma coisa?

Os últimos dois dias haviam sido incessantemente dedicados a descobrir o destino dos seus companheiros. Sabe, os Monarcas eram uma rede. Seus formigueiros estavam espalhados por todo canto do país, núcleos que concentravam rebeldes – em sua maioria, jovens – para treiná-los até que se tornassem soldados. Mas para além disso, para além dos formigueiros e dos rebeldes, a rede se estendia também para outros pontos de ligação que tornavam seu trabalho possível; pessoas do governo canadense, ou americanos infiltrados em bases militares, ou civis mais velhos que não tomariam a linha de frente, mas emprestariam suas habilidades à causa. É assim que uma revolução é feita; não somente da força que se ergue da terra e enfrenta o combate direto, mas também de pessoas comuns, estrategistas, agentes, médicos, cientistas, artistas, o que for.

Isso era Helen. Uma analista de sistemas de meia idade que, nos últimos quatro anos, dedicara sua vida a localizar prisioneiros políticos. Helen trabalhava na base da Pensilvânia, para onde todos os prisioneiros capturados no nordeste do país eram levados para a “triagem”. Os prisioneiros raramente se lembravam desse processo, pois todos chegavam lá sob altas doses de tranquilizantes, apagados. Lá, eram feitos exames de sangue e tiravam suas digitais para identificá-los. As pessoas que realizavam esse processo eram profissionais comuns. Não sapadores, não torturadores, pessoas que nunca seguraram uma arma e nunca mataram ninguém. Pessoas como Helen. O que colocava o pão em sua mesa era isso; ela era mais uma peça dessa imensa maquinaria que era o sistema carcerário. Os prisioneiros eram identificados, analisava-se o grau de sua importância, os relevantes eram encaminhados para Washington, e o restante, para o Texas. Helen nunca entrava em contato com os prisioneiros, mas tinha acesso a todos os registros. E, sempre que possível, quando recebia uma ligação dos Monarcas através de uma linha irrastreável, Helen dava a eles todas as informações que pudesse descobrir.

Era assim que ela vivia consigo mesma.

Enfim.

Como eu já disse, a única pessoa que podia ouvir o que ela dizia era Michael. Você consegue perceber a responsabilidade que isso trazia para cada microexpressão do rosto desse garoto enquanto ele ouvia o que Helen tinha a dizer? Era o seu rosto que revelava tudo. Michael nunca foi um rapaz muito expressivo, vou te dizer, ele era uma das pessoas mais estoicas que já andaram na terra. Era difícil espremer algo dali para saber se as notícias eram boas ou as piores possíveis.

-Donovan. - Ele disse de repente. Craig parou de andar. Token endireitou a postura. - D-O-N-O-V-A-N. É.

Ficou em silêncio por mais algum tempo. De repente, suspirou aliviado, fechando os olhos. Tragou o cigarro e assentiu com a cabeça, mesmo que Helen não pudesse vê-lo. Os outros podiam. É interessante como cada um reage: Standish lançou um olhar protetor na direção de Christophe, sua mão alcançando o ombro de Stan simultaneamente para apertá-lo. Stan prendia o ar nos pulmões. Só percebeu o quanto estava tenso sob o toque da mão quente do homem ao seu lado. Token esfregou as têmporas, lutando contra o impulso desesperado de chorar. Craig encarava Michael com a expressão de um homem morto, desejando um cigarro como nunca desejou nada na vida. Cartman foi o único a romper o silêncio:

-E aí?!

Michael ergueu a mão para que ele esperasse.

-Você sabe se eles já chegaram? - Ele disse ao telefone. De repente, franziu a testa. Foi um movimento mínimo dos músculos, mas seus olhos se voltaram em direção a Token por alguma razão. - Como assim?

Os olhos negros de Michael caíram sobre a mesa. Depois, de relance, espiaram Token mais uma vez até que ele apagasse o cigarro e se levantasse. O movimento brusco assustou Stan. Nesse momento, Christophe se virou de frente para a parede, cerrando as mãos em punhos e pressionando-os contra os olhos, encostando a testa na superfície fria. “Eles estão mortos”, ele teve certeza.

-Helen, você tem certeza? - Michael perguntou.

-Que merda tá acontecendo?! - Cartman disse mais alto, adentrando a sala agora.

Nos próximos segundos, tudo se moveu muito devagar. Michael separou os lábios, mas nenhum som saiu. Seus olhos estavam fundos, minimamente arregalados para o que quer que escutasse naquele momento. Então, balançou a cabeça. Trocou o telefone de orelha, segurando-o com a mesma mão do cigarro, usando a outra para se segurar na mesa. “Eles estão mortos”, Christophe repetiu mentalmente. Stan sentiu vontade de apertar a mão de Standish em seu ombro, mas não o fez.

-Obrigado, Helen. - Foi a última coisa que Michael disse a ela. Levou quase três segundos para desligá-lo. E quando tirou o telefone do ouvido, Stan e Standish estavam próximos o bastante para ouvir um vago “eu sinto muito” saindo do outro lado da linha.

Stan precisou se sentar de lado e respirar fundo para não vomitar.

“Cortam, abrem, injetam, você… Eles não te matam, preferem trabalhar em tecido vivo. Ninguém volta de lá, porque aquilo não é mais gente.” As palavras de Christophe ecoavam dentro de seu crânio.

Não havia como se preparar para isso. Não havia. Durante aqueles dois segundos de silêncio, Stan teve certeza de que era isso que o mataria, porque não havia modo de viver em um mundo sem Kyle, onde nem mesmo lhe fora dado o direito de morrer. O chão se abriria ali mesmo para engoli-lo vivo, isso seria mais suportável do que qualquer coisa que estivesse prestes a sair da boca de Michael.

E, no entanto, suas próximas palavras foram:

-Ele está em Washington. - Michael disse isso olhando diretamente para Stan. Lançou um olhar breve na direção de Christophe antes de prosseguir. - Gregory e Kyle estão em Washington.

Nada a respeito de sua voz parecia contente com isso. E tudo bem. Talvez “contente” fosse exigir um pouco demais. Stan se sentiria muito culpado poucos momentos depois, por não se dar conta da razão pela qual a voz de Michael parecia tão sombria. Foi aí que surgiu a pergunta derradeira.

-E Clyde?

Foi Token quem perguntou. Craig Tucker já não sabia mais como articular palavras. Parte dele odiava Token profundamente por ter perguntado, por obrigá-lo a ouvir aquelas coisas em voz alta, porque ambos já deveriam saber o que aquilo significava. Tudo isso era corrosivo para Craig; a compaixão com que os olhos daquela sala se viraram em sua direção de repente, Craig sentiu vontade de matá-los. Todos eles.

-Ele foi pro Texas. - Michael finalmente disse. Pois não era a primeira e não seria a última vez que precisava dar essa notícia a alguém. Nunca ficava mais fácil, mas ele já aprendera a importância de dizer tais coisas em voz alta. Era a única forma de absorvê-las. E portanto, de superá-las. Adicionou, lentamente. - Mandaram ele pro Texas.

Durante sólidos dez segundos, Token se segurou. Virou-se em direção a Craig em câmera lenta, os olhos vermelhos e os lábios entreabertos como quem precisa desesperadamente dizer algo, mas não sabe o quê. O que se diz? Enquanto Craig esteve naquela sala, a dor insuportável no peito de Token parecia uma sensação vaga de um sonho, algo com que ele teria que lidar mais tarde, pois seu instinto inicial foi de acolher Craig em seus braços. Só restaram os dois, afinal de contas.

Tweek estava lá, se você quer saber. O que restou de sua presença, assim como a minha, estava de pé ao lado deles. Observando-os. Cuidando deles.

Mas Craig não se permitiu ser abraçado. Empurrou Token com violência o bastante para que ele cambaleasse para trás e batesse contra a mesa; atravessou a presença de Tweek e marchou para fora daquela sala com raiva, mas não era raiva realmente, era luto. Luto configurado em raiva porque Craig Tucker nunca aprendeu outra maneira. Cartman saiu da sua frente para que ele passasse, acompanhando-o com olhos vulneráveis como poucas vezes pôde-se ver em seu rosto robusto. Craig desapareceu daquela sala como um tufão, um fenômeno da natureza, deixando um rastro de amargura para trás.

Ninguém o veria chorar. Ninguém o veria implorando perdão. Ninguém o veria rezando. Ninguém olharia através de seu escudo, ninguém pegaria um relance de sua alma.

O que deu forças para que Stan se levantasse, ao contrário do que você pode pensar, não foi a notícia de que Kyle não havia se tornado uma cobaia, um teste de laboratório a ser torturado e revirado do avesso até que não sobrasse mais nada de sua forma humana. Não, saber que ainda havia uma chance não foi o que lhe deu forças para se erguer daquela cadeira. O que fortaleceu Stan é o que fortalece todos nós: a fragilidade de outra pessoa. Ele arrastou os pés na direção de Token, envolveu seus braços em seu tronco e permitiu que o homem – um menino, na verdade – deitasse o rosto na curva de seu ombro para chorar como uma criança. Token não retribuiu nos primeiros segundos. Continuou imóvel, encarando o nada, mais assustado do que qualquer outra coisa. Mas o calor e a amorosidade de outro corpo fez com que o rosto de Token se contorcesse em uma careta sem ele perceber, e quando se deu conta, estava apertando Stan com toda a força que havia em seus braços. E chorando. Chorando baixo e espremido.

Standish discretamente fez um sinal da cruz, beijou a própria mão e fez uma prece silenciosa.

Christophe continuou encarando a parede, agora com as duas mãos espalmadas na superfície, respirando pesado. Absorvendo que esse era o primeiro passo: eles não estavam mortos. Kyle e Gregory ainda existiam nesse mundo. E Christophe os traria de volta para casa.

 

Agora precisamos tratar de uma coisa importante.

Uma coisa que nenhum deles ousou falar sobre em voz alta, somente sussurros pelos cantos com as pessoas mais próximas. Michael e Henrietta trocaram algumas palavras sobre o assunto na cozinha no dia anterior, mas pararam assim que David apareceu na porta. Bebe e Wendy adormeceram conversando sobre isso na noite em que Kyle, Gregory e Clyde foram levados, mas na manhã seguinte, fingiram que a conversa não havia acontecido. Cartman não conversou com ninguém, mas também não pensou em outra coisa desde a descoberta. Assim como Christophe.

Havia um traidor entre eles.

Não era a primeira vez. Não seria a última.

Mas isso nunca deixava de abalar aquilo que parecia inabalável, o senso comunitário daquelas pessoas e a confiança que elas compartilhavam, mesmo entre estranhos. Os dois seis e sete de março foram dolorosamente silenciosos. As pessoas não queriam olhar umas para as outras, eram extremamente cuidadosas com as palavras e sentiam culpa por duvidarem de absolutamente todos. Pessoas com as quais tomam café da manhã, treinam diariamente, pessoas que as ajudaram nos confrontos de rua, companheiros. Todas as missões foram abortadas até segunda ordem. Rotas de fuga estavam preparadas e a vigilância do portão e de todos os pontos de acesso ao motel foram reforçadas. Todos estavam com as malas prontas, esperando que os sapadores invadissem a qualquer instante. Podia-se cortar o ar com uma faca, tamanha era a tensão. O Lar já não se parecia mais com um lar.

Voltemos à tarde de sete de março.

Quando Christophe deixou a sala de operações, as pernas trêmulas e o peito aliviado, sentiu a mão familiar em seu ombro e já sabia que encontraria o rosto de Standish ao se virar. Aqueles olhos preocupados que ele odiava tanto. Christophe usava luvas pretas nesse dia, daquelas que não tem dedos, protegendo as feridas de suas mãos. Recolheu o ombro, com o impulso de continuar andando, mas Standish o segurou com a pergunta sincera:

-Você está bem?

Talvez em outras circunstâncias, Christophe teria tornado tudo imensamente mais difícil. Talvez tivesse respondido com algo rude, algo como “o que isso te importa?”, mas não o fez. Porque Christophe estava exausto e podia ver que Standish também. Balançou a cabeça, fechando os olhos por um segundo, algo que parecia não fazer há trezentos anos. Durante esse segundo, perguntou-se como seria a sensação de dormir. Quando separou as pálpebras, apenas encolheu os ombros.

-Tô. - Foi sua resposta, a única que tinha a oferecer.

Standish ficou surpreso pela facilidade com que obteve a resposta, ainda que ela fosse mentirosa.

-Eu só quero ter certeza de que você não vai… Agir sem pensar. Eu sei que tudo parece em carne viva agora.

Christophe se permitiu apoiar suas costas na parede. O corredor em que estavam era estreito, escuro, de forma que não podiam se enxergar muito bem. Durante alguns segundos, o silêncio foi tudo que houve. Standish podia ver os contornos daquele rosto tão jovem, tão marcado, tão velho. Deus, como era injusto, Standish pensava. Aquele menino não conseguia amar ninguém, não por ser incapaz, mas por não saber como. Por nunca ser amado de volta. E agora, como todas as outras coisas com as quais Christophe se importou na vida, Kyle foi arrancado dele. A guerra não fazia sentido, a fome não fazia sentido, mas essa pequena tragédia era muito mais próxima, o bastante para abalar a fé que Standish ainda tinha nas forças superiores.

-Ele não devia ter ido. - O Toupeira murmurou para si mesmo, tão baixo que Standish precisou se inclinar, chegando mais perto dele. Aqueles olhos castanho-esverdeados se ergueram para encará-lo com amargura. - Sabe, eu só consigo pensar que… Não faz sentido ele ter ido. Era pra ter sido eu, deveria ter sido eu.

Standish encolheu as sobrancelhas como se levasse um soco no estômago ao ouvir aquelas palavras proferidas em um sotaque francês pesado. Por um instante, pensou que Christophe estivesse, enfim, confiando nele o bastante para desabafar alguma coisa que precisava sair. No entanto, esse não era o caso. O Toupeira riu um riso breve e grosseiro que talvez fosse sarcástico, ou talvez ele enxergasse graça na ironia daquele absurdo.

-Ninguém podia ter feito nada pelo Donovan, aquele idiota, ele fez de tudo pra estar naquele carro, mas o Kyle… Você o colocou naquela merda daquele carro quando me escalou pra cuidar das armas num turno que nem era meu. Eu não sei se o Gregory te pediu isso, porque ele sabia que eu o arrancaria daquele carro à força se não tivesse tudo sido tão… Eu tinha que ter ido. Eu não devia estar aqui.

É importante que eu te faça entender o quão assustadoramente calmo ele parecia. As palavras deixaram sua boca nessa voz carregada, gutural, todas as frases na mesma entonação. Ele estreitou os olhos, mexeu um pouco a cabeça, falou bem próximo ao rosto de Standish. E, ao terminar, apenas continuou andando pelo corredor como se nada tivesse acontecido. Standish não respondeu. Esse era o seu papel, não responder. Apenas encarou as costas de Christophe se afastando, parecendo absolutamente miserável, mas há tantos anos aquele homem deixava que o Toupeira o culpasse pelas coisas que o fariam se sentir melhor, em controle, se tivesse alguém para culpar. Não era culpa do universo. Não era culpa do acaso. Era culpa de Standish.

Exceto que não era. Standish não se lembrou disso de imediato, mas o pensamento lhe ocorreria dentro de nove horas, quando já estivesse na cama tentando adormecer.

Esse foi o primeiro passo para descobrir a quem aquela culpa pertencia.

 

12 de março de 3645

 

Craig estava sentado sozinho no salão de jogos. Vestia um suéter vermelho de Clyde. Acomodado no pufe onde Clyde sempre se deitava. Segurando em suas mãos o livro preferido dele (e o único livro que Clyde leu em toda a sua vida, sejamos francos, o garoto mal havia sido alfabetizado). Era um exemplar de “O Senhor Rato”, um livro infantojuvenil com ilustrações antigas. Era a única coisa sobre a qual Clyde falava nos últimos tempos. Pedia para que Craig lesse palavras que ele não conseguia entender, e por mais que Craig insinuasse que ele era um imbecil por isso, no fundo, era sua coisa preferida no mundo inteiro. E havia acabado.

Não há como se preparar para esse tipo de coisa.

Craig Tucker estava seco por dentro. Ninguém poderia notar a diferença, visto que ele sempre agiu como se tivesse tantos sentimentos quanto uma parede de concreto. A única pessoa que enxergava era Token. Todos os outros esperavam por um rompante explosivo de violência, algum tipo de reação humana, mas Craig não os oferecera nada disso. Fodam-se eles. Fodam-se todos eles.

-Ei, Tucker. - Ele ouviu uma voz vindo da porta. Virou-se para enxergar o Toupeira, o que era curioso, mas também um alívio. Porque Christophe era como ele. Não era alguém tentando perguntar se estava bem, se precisava de alguma coisa, tentando tratá-lo como algo diferente do que ele era. Craig gostava do Toupeira.

-O quê?

-Me ajuda a carregar os sacos de lixo lá pra fora.

Craig alisou a capa do Senhor Rato uma última vez antes de se levantar. As letras douradas do título eram em alto-relevo, e talvez essa tenha sido a única razão pela qual Clyde decidiu lê-lo para começo de conversa. Aquele idiota, Craig pensava. A presença do Toupeira, felizmente, reprimia toda e qualquer vontade de chorar que ele poderia ter. Era uma reação natural do seu corpo. Craig deixou o livro sobre o pufe e se levantou, acompanhando o Toupeira até o beco dos fundos onde ficavam os latões de lixo.

Christophe abriu a porta dos fundos e deixou que Craig andasse na frente.

Sabe, tudo isso era muito natural. Tão natural que, de todas as coisas que Craig sentiu ao perceber o cano da arma pressionado diretamente na parte de trás da sua cabeça, surpresa não foi uma delas. Como poderia ser? Gostaria que você pudesse ver a expressão dele. Ele riu. Soltou o ar pelas narinas em um bufo fraco e deixou que esse sorriso irônico surgisse em seus lábios. Ele e Christophe tinham um senso de humor bastante parecido. Craig sabia que isso era uma questão de tempo. Esperou por isso.

-Até que demorou. - Foi a resposta de Craig, calma e contida. Sabia que não sairia vivo daquele beco. E mal podia esperar para ver Clyde novamente.

 

11 de março de 3645

 

Seres humanos vivos são muito curiosos, a maneira com que cada um escolhe lidar com a impotência. Bem, talvez eu nem devesse chamar isso de “escolha”, visto que cada um faz o que pode para sobreviver. Stan, por exemplo, passou a maior parte desse tempo deitado na cama que dividia com Kyle. Kenny e Wendy apareciam em seu quarto com certa frequência para garantir que ele comesse e bebesse água. A luz nunca era acesa. A mala feita em um rompante de raiva, quando Stan finalmente teve forças para ir embora, essa mala continuava intocada ao lado da porta. Stan não trocava de roupa ou tomava banho há três dias. O tempo passava arrastado e só parecia tornar tudo imensamente pior.

Christophe, por outro lado, era incapaz de se deitar. Dormia apenas duas horas por dia, se tanto. Investia todo o seu tempo em exercícios físicos; fazia cem, duzentas flexões sem parar, socava o saco de pancadas até destruí-lo, tudo sem prestar atenção no que seu corpo fazia. Os movimentos eram mecânicos a ponto de ele não sentir dor e cansaço, dados os altos níveis de adrenalina. E sua cabeça latejava o tempo todo, a mente funcionando a mil. Christophe era um homem prático. Diante de um problema, qualquer problema, ele não desperdiçava tempo com lamentações. Buscava formas de resolver. O plano já tomava forma em seu cérebro.

Era a única maneira que ele tinha de se sentir no controle. Era a única coisa que o impedia de fazer merda também.

Eram cinco da tarde quando Standish adentrou a sala de treinamento, onde Christophe enrolava gaze nos nódulos dos dedos. Seus punhos sangravam. Ele estava coberto de suor. Não havia mais ninguém ali. Olhou de relance para Standish, estranhando a seriedade que tomava conta de sua expressão, seu único olho reluzindo mais do que o de costume. Ele não tinha aquele sorriso imbecil que sempre queria nascer em seus lábios. Christophe achou estranho, mas continuou em silêncio, prestando atenção no que fazia.

-Você pode vir até a minha sala? - Standish perguntou.

O coração de Christophe ficou apertado, mas os olhos de uma pessoa viva não perceberiam isso.

-Descobriu alguma coisa? - Ele retrucou, finalizando as ataduras.

Standish umedeceu os lábios, levantando um pouco o queixo como se considerasse dizer algo, mas mudou de ideia no último instante.

-Só… Venha, por favor.

E ele foi.

 

A sala de Standish era pequena e abafada. Christophe havia secado a maior parte do suor com uma toalha antes de segui-lo, mas seu cabelo continuava úmido, e sua pele, quente. A escrivaninha tomava conta da maior parte do cômodo, assim como as duas estantes de inox tortas e cheias de objetos, a maioria arquivos. A mesa era bagunçada. Nenhum dos dois se sentou. Standish estava estranhamente silencioso, o que causava uma sensação terrível na boca do estômago de Christophe. O homem ficou parado de frente para a escrivaninha, mexendo em alguma coisa que o Toupeira não podia enxergar.

-O que você quer?

Uma pausa longa. Standish considerou pedir para que ele se sentasse, mas imaginou logo em seguida que seria uma requisição inútil. Virou-se de frente para o garoto, respirando fundo, segurando a beirada da escrivaninha com suas mãos. Seus cabelos longos caíam por cima dos ombros, mais rebeldes do que de costume. Ele os puxou para trás e os amarrou com o elástico que havia em torno do seu pulso. Usava um colete velho por cima de uma camisa branca manchada.

-Sabe, eu fiquei pensando sobre o que você disse. Que teria sido diferente se eu não tivesse mudado o seu turno. - Voltou a descansar as mãos sobre a beirada da mesa. - Eu não pensei muito sobre isso na hora porque não me parecia importante. Você estava chateado, eu não queria discutir de qualquer forma, mas depois… Alguma coisa me parecia esquisita. Então eu fui verificar a escala do dia cinco. - Standish o encarou sem dizer nada por um tempo, como se esperasse uma reação, mas Christophe apenas esperou. Então, Standish se virou para puxar uma folha do punhado que havia sobre a mesa e esticou o braço para entregar ao outro.

Christophe tomou o papel em sua mão esquerda e franziu a testa antes mesmo de lê-lo, sem entender onde ele queria chegar com isso. Seus olhos vagaram por uma lista de nomes designados a funções diversas, até encontrar “supervisão do armamento”. E o nome “Craig Tucker” escrito em tinta azul ao lado, no garrancho que era a letra de Myles Standish.

-E daí?

-Não fui eu que mudei o seu turno. O garoto Tucker veio conversar comigo, disse que combinou com você essa troca de turno porque você não estava bem para carregar as cargas pesadas. Imaginei que fosse por conta da briga, então não vi nada demais.

Os dedos de Christophe amassaram levemente o papel quando o quebra-cabeça terminou de se formar em sua mente. Subiu seu olhar a Standish e segurou o contato visual durante um bom tempo. Por fim, estendeu a folha de volta a ele.

-Imagino que ele tivesse algum motivo para querer que você estivesse ocupado naquele dia. - Standish prosseguiu. - Você pode imaginar porque ele mentiria sobre isso?

-Isso não é o suficiente.

-É, eu também achei que não. - Standish se virou para colocar a folha de volta à superfície da mesa e puxou um envelope grande e marrom, de onde tirou um outro punhado de folhas. - Não é o suficiente para saber que foi ele, mas é o suficiente para me fazer vasculhar algumas coisas. - Ele deu a volta na mesa para se colocar do outro lado, espalhando as folhas sobre a mesa, empurrando outras pastas para abrir espaço. Christophe se aproximou para enxergar. - Eu verifiquei todos os dias em que ele trabalhou na sala de operações, o que daria acesso ao telefone. Pedi que Nichole conseguisse todos os registros de ligações dessas quatro datas. - Ao perceber a mudança no olhar de Christophe, ele complementou. - Eu não disse a ela para que eu precisava, não se preocupe. Mas veja aqui. - Ele apontou com o indicador em um número que não significava nada em particular para Christophe. Estava circulado em vermelho. - No dia 21 de janeiro, ele fez uma ligação para esse número. Depois, no dia 7 de fevereiro. E mais uma vez, dia 4 de março.

-De quem é esse número? - Christophe pegou uma das folhas para analisar os dígitos de perto.

“49650-17803”

-Começa com 49. - Standish disse.

-É um número do governo. - Christophe constatou, murmurando para si mesmo. - Filho da puta.

-Isso não prova que as ligações foram feitas por ele, mas todas aconteceram enquanto ele deveria estar na sala. E sozinho.

Durante algum tempo, Christophe se desligou de tudo que acontecia ao redor. As palavras de Standish eram um som distante em uma língua desconhecida. Christophe ouvia um apito, como uma chaleira no fogo, mas esse som só existia dentro de sua cabeça. Ele fechou os olhos e massageou as têmporas com a mão livre. Quando ergueu o rosto para encarar Standish, não sobrou fragilidade nenhuma em seu olhar.

-Por que você tá me mostrando isso?!

A pergunta pegou Standish de surpresa. Ele ajeitou as folhas para ganhar tempo.

-Achei que era seu direito.

-Você sabe o que eu vou fazer com isso, não sabe? Não era você que até outro dia tava tão preocupado que eu matasse uma pessoa inocente?

-A única coisa que falta é uma confissão. E isso, eu sei que você consegue.

O Toupeira riu. Soava incrédulo. Largou o papel sobre a mesa e deu dois passos para trás, esfregando a boca com a mão, posicionando a outra no quadril, balançando a cabeça negativamente. Como se Standish estivesse fazendo algo cruel, oferecendo uma droga e sabendo muito bem que ele seria incapaz de se controlar. Essa estava muito longe de ser a intenção de Standish, mas você já deve saber disso.

-Você acha que eu vou esperar que ele confesse alguma coisa?! Se eu colocar as mãos nele, Standish…

-Eu sei o que acontece com traidores. O que precisa acontecer. Ele é o nosso cara, Toupeira. Eu achei que… Que você fosse querer ouvir isso da boca dele. É por isso que te chamei aqui, porque de todas as pessoas, isso me parece um direito seu. E tudo bem se você não quiser, se isso for pessoal demais. Eu arrumo outra pessoa.

-Não. Eu faço.

Umedecendo os lábios, Standish assentiu. Antes que Christophe pudesse se virar para deixar a sala, as palavras transbordaram sem que Standish pudesse pensar muito sobre elas:

-Faça rápido. Se for possível.

Christophe estava de lado, sem encará-lo diretamente. Tinha a cabeça baixa, o cenho franzido, como se aquele pedido o ofendesse profundamente.

-Ele tem que pagar. - As palavras saíram espremidas. “Eu quero que doa”, era o que ele estava tentando dizer. Standish sabia disso.

-Pra ser honesto, Christophe… Eu não acho que você será a punição dele. Pelo contrário, talvez você seja a libertação. O preço já foi alto o suficiente.

“É por isso que ele ficou”, o pensamento ocorreu ao Toupeira. Essa era a única coisa que ainda não fazia sentido. Craig tinha que saber que seria pego uma hora ou outra, tudo era uma questão de tempo, então por que ele continuava no mesmo lugar? Era possível que sua fuga ainda estivesse em andamento, mas no fundo de seu peito, Christophe sabia que Craig não foi embora porque não havia sobrado mais nada. Quando Clyde foi levado, céus, uma ironia dessas tinha que ser engraçada em algum nível. Christophe não sentia vontade de rir. Clyde levou consigo qualquer chance que Craig Tucker tinha de se reerguer. Estava ali, exposto às pessoas cujas vidas ele destruiu, esperando ser devorado pelos lobos. No coração amargo de Christophe, não, isso não era punição suficiente.

 

12 de março de 3645

 

Onde nós paramos?

Ah, sim.

Gostaria tanto de poder lhe mostrar a cena tal qual enxergo daqui, mas vou dar o meu melhor para descrevê-la e você, se possível, dê o seu melhor para visualizá-la. Certo? O esboço é o seguinte: temos um homem extremamente alto, pálido, de cabelos muito pretos, vestindo o suéter vermelho do homem que amou a vida inteira, mas que nunca teve. Esse homem tinha o semblante tranquilo, um sorriso diabólico nos lábios e os olhos mortos. O outro, no entanto, tinha os olhos mais vivos que já existiram. Vivos demais para serem humanos. Este segurava um revólver preto de cano longo pressionado no crânio do homem de sorriso diabólico. Eles não se enxergavam, pois um estava atrás do outro. Não propriamente atrás, mais voltado para a diagonal, de onde Christophe poderia enxergar perfeitamente o momento em que a bala estouraria um pedaço do crânio de Craig e se alojaria em seu cérebro. O beco era escuro e o céu era carregado pela poluição sobre suas cabeças, mas ainda se podia ver a minguante lua verde caso eles olhassem para cima. Não olhariam.

O dedo de Christophe estava pronto no gatilho. Ele vestia um casaco preto naquela noite, feito de couro sintético, um casaco que tinha desde a adolescência. A cor escura escondia as manchas, mas não os rasgos. Puxou o cão do revólver. Craig fechou os olhos, pronto para o disparo, mas nada aconteceu. Após longos segundos, ousou virar um pouco a cabeça, sentindo o cano roçar em seu couro cabeludo com o movimento. Não chegou a enxergar o outro por completo, mas agora, o Toupeira estava em sua visão periférica. Novamente, Craig riu.

-Você está tremendo. - Ele disse. - Engraçado. Nunca achei que você fosse do tipo que treme pra matar um homem.

Christophe não respondeu de imediato. Tinha o olhar tão fixo na região acima da orelha de Craig, onde apertava o cano do revólver, que mal piscava. Sua respiração também era trêmula. Ele suava. Não era medo. Não era nervosismo. Era raiva. Pura e genuína raiva.

-O que te ofereceram? - A pergunta finalmente saiu em uma voz rouca que nem parecia a de Christophe. Ele mal separava os dentes para falar. Sua mandíbula nunca estivera tão rígida.

-Ah. Entendi. Você quer ter uma conversa pra entender meus motivos antes de me matar.

Acho importante dizer, como uma pessoa que já foi viva: Craig estava com medo. Todos nós o temos quando nos damos conta de que não há saída, que é assim que tudo acaba. Mesmo que você deseje a morte, mesmo que estar vivo não faça sentido, ter carne é ter medo. É o instinto mais primitivo que te leva a lutar pela própria vida, e quando não há luta, há medo. Mesmo quando há luta, há medo. Mas morrer não dói. Craig ainda não sabia disso. Logo, saberia.

É por isso que ele debochava. É por isso que ele ria. Porque tinha medo, e essa era a única maneira de tentar sair desse planeta miserável com alguma dignidade. Porque não lhe sobrou mais nada.

-Por que eu responderia qualquer coisa se nós dois sabemos como isso vai terminar? - Craig perguntou.

-Eu posso fazer isso durar horas se é isso que você quer. - Christophe respondeu. Deus, como falar era difícil para ele. Seus olhos ardiam, mas não era de choro. Ele contraía o braço com força para tentar controlar o tremor da mão. Contorcia os músculos da face como se sentisse dor, ainda que de maneira sutil.

Craig riu. Era um argumento justo.

-Você quer saber se eles me ofereceram alguma coisa valiosa o suficiente pra entregar a vida do seu… O quê, mesmo? Até onde eu sei, você era o cachorrinho dele.

-O que te ofereceram? - Christophe repetiu a pergunta exatamente no mesmo tom de voz.

-Dói, não é? Eu sei. Dói pra caralho. Ser essa… Sombra. Saber que ele nunca vai te querer. Achei que eu estivesse te fazendo um favor ao me livrar dele.

-Você fez um favor a si mesmo se livrando do Clyde?

Christophe fez a pergunta como se não fosse apenas uma crueldade cuspida, mas sim algo que ele genuinamente queria saber. Foi aí que as bochechas de Craig ficaram úmidas por aquelas lágrimas que escorriam com tanta facilidade, sem qualquer efeito em sua respiração, era apenas água transbordando dos olhos. Não muita. Já estavam ali antes do nome de Clyde surgir, embora o nome de Clyde tenha pairado sobre eles o tempo inteiro. Craig encarava o muro a poucos metros, contra o qual os latões de lixo estavam encostados. Havia uma pichação colorida no muro.

-Me ofereceram o que oferecem pra todo mundo. Uma identidade nova. Uma passagem pra Tailândia, onde eu poderia ser qualquer outra coisa longe dessa merda miserável que vocês chamam de vida. Uma saída, foi isso que me ofereceram. Eu perguntei se me arrumariam outra identidade falsa pra eu levar alguém comigo, se eu conseguisse entregar o Gregory também. - Lá estava o sorriso sádico novamente. Christophe podia ver o canto do rosto dele. - Era pra eu e o Clyde estarmos a milhares de quilômetros daqui agora, em algum lugar quente. Essa porra desse frio… Ele não sabia, claro. Só saberia quando ele não tivesse mais escolha. E ele aceitaria, porque era covarde. Era pra ele… Era pra ele ser covarde. - Craig secou os olhos com a manga do suéter. Sua voz soava bastante sóbria, inalterada pelo choro. - Aquele imbecil. - Com alguns segundos em silêncio, conseguiu segurar aquelas lágrimas que não haviam descido durante toda a sua vida.

-É isso que a vida dos seus companheiros vale. Duas passagens pra Tailândia.

Dessa vez, a gargalhada de Craig foi terrivelmente honesta. Sacudiu a cabeça como se não acreditasse no que ouvia. Sentiu vontade de encarar Christophe, mas seus olhos permaneceram fixos no muro.

-Sabe, é hilário. Eu sempre te achei um animal, mas pelo menos você era honesto. Agora… Deus, vocês… Passavam tanto tempo ocupados com o draminha adolescente de vocês, achando que são tão importantes, tão corajosos, vocês nunca passaram de um bando de veados sem consideração por ninguém. É hilário que você pense ser melhor do que eu como se não fosse entregar a minha cabeça numa bandeja por uma chance fora daqui com ele. Você e o Broflovski estavam lá quando o Tweek foi pisoteado feito um cachorro, vocês podiam ter feito alguma coisa, mas não. Só vocês importam no mundo, não é? Honestamente, eu teria entregado o Kyle de graça.

Até essas últimas palavras, Christophe não se moveu. Mas assim que Craig terminou sua frase, sem hesitação alguma, a mão de Christophe afastou a arma da cabeça dele e deu um tiro certeiro em seu pé direito, puxando o cão do revólver de imediato. Craig gritou, um grito esganiçado de dor genuína que ecoou a céu aberto. O estouro do tiro chamaria a atenção de muitos, mas a maioria das pessoas já esperava por isso. “São as coisas se acertando”, Wendy explicou a Bebe com uma voz infeliz antes que sua namorada pudesse sair do quarto para procurar a origem do barulho.

Craig caiu, mas só por um momento. Caiu de lado, olhou para cima e se percebeu sob a imponência daquele homem que parecia um gigante agora. Sangue grosso escorria pelo chão áspero e Craig respirava como um animal ferido, o nariz encolhido de dor, segurando o próprio pé.

-Sabe qual é a parte mais fodida nisso tudo, Tucker? - Christophe soava perfeitamente sob controle agora, pressionando o cano do revólver contra a testa suada de Craig. - É você usar os nomes de duas pessoas boas pra justificar que você é um covarde. Tweek teria tanta vergonha de você. Donovan teria tanta vergonha de você.

Agora, Craig já não ria mais. Era ele quem tremia. Tremia pela dor penetrante que subia pelo seu pé e tomava conta da perna inteira, tremia porque a morte já estava respirando em seu cangote, tremia porque sentia o peso da verdade nas palavras mal articuladas de Christophe. O dedo do Toupeira voltou a flertar com o gatilho. Sua expressão não esboçava raiva, parecia-se mais com desprezo. Havia pena em seus olhos. Pena, não piedade.

-Você não faz ideia do que diz, seu merda, ninguém nunca… - Estas seriam para sempre as últimas palavras de Craig Tucker na terra. O estouro veio antes que ele tivesse a chance de terminar. Um tiro certeiro que perfurou sua testa e estourou a parte traseira do seu crânio devido à proximidade do cano do revólver. Sangue e pedaços de Craig voaram sobre Christophe, sujando seu rosto e seu casaco velho.

O corpo caiu de lado com os olhos abertos.

O Toupeira fechou seus próprios olhos, umedecendo os lábios, sentindo gosto do sangue de Craig. O líquido era quente contra sua pele gelada. Christophe estremeceu. Guardou a arma. Não fez questão de limpar o rosto, não de imediato.



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