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História Liberté - O Escuro


Escrita por: caulaty

Capítulo 5 - O Escuro


 13 de maio de 3660


 

O encontro que vou narrar merece uma sinfonia bastante dramática como plano de fundo, tamanha é a perfeição harmônica dos movimentos de cada um dos envolvidos. É lindo de ver, realmente musical, em câmera lenta. O ponto de encontro não é uma esquina propícia para o esbarramento, mas a chave da ocasião é que um dos homens não pode enxergar e o outro, exatamente na hora certa, decide abaixar a cabeça para ler seus papeis de relatórios antigos que acabou de coletar na sala de arquivos. A bota de combate preta de Christophe, imunda e molhada, pisa para fora da sala, sobre o longo tapete vermelho do corredor. No exato instante, Stan enxerga o caminho com a ponta da bengala, dependente do próprio instinto, pois não está acompanhado pelo fiel cachorro agora. O tapete grosso amacia o som dos passos e do tatear da bengala, o que contribui para a sintonia dos acontecimentos; se não fosse por aquele tapete, Christophe teria erguido o olhar alguns momentos antes. Mas não o fez. Não antes de Stan atingi-lo com a bengala, próximo demais para recuar a tempo. Uma das folhas cai e Christophe se abaixa para agarrá-la de mal jeito no ar antes de ver quem atingiu, imediatamente se desculpando.

A memória de Stan Marsh é algo extraordinário, especialmente depois da perda da visão. Nunca foi bom com nomes, mas para vozes e fisionomias, sempre teve talento. E quando perdeu a capacidade de reconhecer fisionomias, sua memória sensorial se desenvolveu ao ponto de Stan saber reconhecer as pessoas pelo cheiro, pela respiração, pelo andar, mas principalmente pela voz, mesmo que fizesse anos que não a ouvisse.

-Eu sinto muito.

Quando Christophe olha pra ele, sente um mal estar pesado nas entranhas. Logo se recupera, como se Stan pudesse ver seu rosto, disfarçando o choque. Alisa o próprio peito, deslizando a palma por dentro do colete de couro, apertando como se doesse.

-Stanley. - Ele diz em um cumprimento perturbado, acenando com a cabeça.

Os olhos azuis de Stan, tão vivos que nem parecem mortos, brilham de curiosidade. Ele até duvida do seu talento para reconhecer vozes, isso fica claro, provavelmente porque Christophe DeLorne estava, até então, morto e enterrado no fundo de sua mente. Fazia cerca de um ano e meio que não falava sobre ele; a última vez foi a manhã em que passou em frente à sala de Kyle e o ouviu chorando baixinho. Stan apenas ficou ali parado ouvindo, invadindo aquele momento íntimo sem que Kyle soubesse. Podia visualizar em sua mente tudo muito nítido: Kyle sentado de costas para a porta aberta, imerso naquele luto falso. Deve ser uma das coisas mais tristes do mundo, um luto sem um corpo sobre o qual chorar. Stan se sentia quase um voyeur, embora não houvesse deleite algum naquilo. O que o segurou ali foi a batalha interna entre o desejo de consolá-lo e a prisão daquele cotidiano gélido que os mantinha distantes.

Mas no fim das contas, Stan também era observado naquele dia. Gregory era elegante o suficiente para não fazer qualquer julgamento em voz alta, apenas disse a Stan:

-Kyle se convenceu de que ele está morto.

Gregory, naturalmente, falava daquilo como se fosse uma grande bobagem, pelo menos naquela época. Gregory sempre teve certeza de que, no dia em que Christophe morresse, ele sentiria em cada poro do seu corpo. O tempo chegou a contrariá-lo, é verdade, e até mesmo fez com que duvidasse da conexão que compartilhava com o Toupeira. Naquele momento, Stan não disse nada. Não se podia dizer que estava indiferente ao luto e à escuridão que pairava sobre o escritório de Kyle Broflovski, mas seu silêncio diante da afirmação de Gregory conversa muito com seu semblante tranquilo agora.

Ah, a história de Christophe DeLorne e Stan Marsh dá um livro em particular. Você já sabe o estopim. É muito desagradável da minha parte provocar com fragmentos da história? Eu devo me ater à minha parte da narrativa e contar somente o que acontece, fato por fato? Você é tão quieto, companheiro. Na dúvida, prefiro pecar por excesso: convém dizer que Christophe e Stan nunca se desgostaram, mas nunca conviveram harmoniosamente, nunca concordaram em muitos aspectos. É preciso falar sobre o caráter íntimo de cada um deles para descrever com propriedade a grandeza desse encontro.

Stan é um homem ateu, porém, teólogo, leitor fervoroso de obras sobre cultura sagrada, de natureza gentil e silenciosa, de humor estável, que pouco se incomoda com as coisas sobre as quais a maioria das pessoas gosta de resmungar (eu nem me lembro de tê-lo visto reclamar alguma vez sequer em vida), mas indignava-se com injustiças dos homens e, a seu modo, sofria por elas, mais do que qualquer um que eu já tenha conhecido. Tinha uma maneira peculiar de batalha, e é assim que caracterizaremos cada indivíduo aqui apresentado: por sua forma de lutar. Stan sempre acreditou na virtude bondosa do homem e, uma vez que era a própria sociedade a corruptora dessa virtude, acreditava que a mudança se daria pela educação dessa própria sociedade, enxergando-a como uma criança birrenta e mimada, mas não maldosa. Para Stan, era a falta do senso coletivo, de compaixão, que implicava na fome, na miséria, pois aquele que nasce em berço esplêndido tem facilidade em ignorar aqueles que vêm da poeira, da escória. O rico teme a fúria do pobre, marginalizando-o, julgando-o como um bandido que simplesmente nasceu com o gene da perdição escrito na carne. Enquanto pobre, Stan foi objeto desse julgamento inúmeras vezes ao longo da vida, mas não odiava o luxo, tampouco seu proprietário, acreditando piamente que este era apenas mais um cego, um fantoche.

O que faltava a Stan era raiva; O Stan jovem que se uniu a La Resistance com seus firmes propósitos, não o homem amargurado que se põe em frente ao Toupeira agora.

E Christophe, você já pode imaginar, via qualquer classe opressora como nada mais do que um parasita propagador de uma cólera de, não somente descaso – como Stan sugeria -, mas desespero pelo poder e pelo ouro acima da vida de qualquer alma infeliz cujo sangue melasse o asfalto ou preenchesse os vãos entre os paralelepípedos, cujas crianças urrassem de fome e abraçassem-se uma à outra, e assim seriam encontradas mortas ao fim da madrugada, consumidas pelo frio, pela fome, mas as festas extravagantes continuariam correndo, a música continuaria a tocar, o champanhe continuaria escorrendo e a comida toda seria dada aos cães de raça. Ao final, os dois pequenos cadáveres dos irmãos abraçados seriam vistos como sujeira na calçada. “Que inconveniente”, pensariam os governantes, os banqueiros, as madames que voltassem do baile de gala ao nascer do sol para se deparar com aquela cena. Não compreenderiam como aquelas pequenas pragas se atreveram a rastejar para o lado rico da cidade para morrer, mendigando por um pedaço de pão.

É, meu amigo, foram tempos difíceis.

Christophe vira um lado da humanidade que Stan nunca teve a oportunidade de ver, isso é verdade, que injusta a minha comparação entre os dois. Se eu tivesse visto as coisas que ele viu, as prostitutas abandonadas vendendo seus filhos, o horror nas ruas cheias de ratos e doenças, a necrofilia, a exploração, a escravidão, eu também teria o maldito impulso de ferir qualquer um que fosse conivente, que alimentasse ou sustentasse esse mal.

O que faltava em Christophe era esperança.

Os dois tiveram muitas discussões ideológicas na época da revolução. Stan dizia, naqueles tempos, que ele havia se tornado a deformidade que desprezava. Christophe dizia que ele era covarde demais para fazer o que tinha que ser feito, que ele humanizava os monstros.

É claro que esse combate contribuiu para o desfecho que se deu entre eles alguns anos atrás. Mas por mais íntimas que fossem as ideologias de cada um, havia algo ainda mais profundo por trás. Havia Kyle Broflovski. Nesse quesito, a tragédia morava no fato de que eram semelhantes demais, Stan e Christophe. Amavam-o mais do que a vida permitia e fariam qualquer coisa por ele, pelo menos quando eram jovens, fortes e cheios de paixão, de fúria. É certo que, nesses tempos, não há muito o que amar. Agarram-se ao pouco que resta de luz e saúde em cada um deles. Perceba que agora eu volto a conjugar meus verbos no presente; há uma razão para isso.

Voltemos ao encontro.

Perceba também que Christophe demonstra sinais óbvios de ansiedade. Limpa a garganta, preparando a voz que costuma ser naturalmente firme. Há um princípio de suor nas axilas, uma leveza estranha sob os pés, um nó no estômago e há também o silêncio. Stan pode farejar essas coisas como um lobo. Kyle não se demora a aparecer na porta atrás do Toupeira, mas para quase que imediatamente, como se ele mesmo fosse apanhado no meio de um ato imoral, uma coisa muito nefasta, simplesmente por ter sido quem trouxe Christophe DeLorne, o homem que deveria estar morto, de volta para dentro da fortaleza deles.

-Eu sei que é você. - Stan prossegue, seus olhos azuis tão focados, ainda que estáticos, no homem à sua frente que um desavisado acreditaria que eles podiam ver. - Não é porque eu sou cego que...

-Eu sinto muito. - Christophe interrompe.

Não se sabe se pela covardia do silêncio ou se pelo esbarro, ou pela própria cegueira de Stan. Talvez seja pelo Kyle, que está de pé a poucos metros e Stan sabe disso também, mesmo sem enxergar uma luz sequer há anos. Quantos anos mesmo? Não me lembro.

Fato é que Christophe se dá conta de que tem muito pelo qual se desculpar com esse homem. E mais: sente um desejo cruel de se ajoelhar quando vê, transparente como o cristal do lustre de Gregory, toda a escuridão que mora dentro dele agora. Eu o entendo, isso assusta.

Christophe não se ajoelha, mas estende sua mão para agarrar a de Stan com agonia, esmagando de leve os dedos do outro devido à força comedida. Deixa escapar o ar pelas narinas ao que vai tentar dizer alguma coisa, mas só emite um gemido curto e abafado de imprecisão, pois nada do que queria lhe dizer poderia, de fato, ser dito em voz alta. Não há ninguém próximo o suficiente que possa confirmar o que eu estou dizendo, nem mesmo Kyle, mas eu juro que os olhos amendoados de Christophe estão úmidos. Nenhuma gota escorre, isso tudo é mera especulação, mas o Toupeira acaba por nitidamente oferecer um sorriso amargo, desses que deixam um gosto terrível na boca, e cobre as costas da mão de Stan com a sua outra palma. Enquanto eu era vivo, nunca tive contato com um Christophe tão exposto quanto o que vejo agora. A cegueira de Stan deve facilitar.

-Eu sinto muito. - Ele repete.

Stan não reage ao toque, apenas às palavras.

-Imagino que sinta. É muito fácil sentir pelo pobre ceguinho, não é?

-Não foi isso que... - O Toupeira começa a se justificar, mas para quase imediatamente que se dá conta da redundância da sua própria frase. Solta a mão de Stan calmamente, como se tivesse sido um ledo engano segurá-la e ele pudesse fazer de conta que não aconteceu, que ninguém viu. Umedece os lábios com uma ansiedade silenciosa.

Não reconhece essa sombra que envolve Stanley Marsh nos dias de hoje, mas é muito fácil identificá-la, porque Christophe é acompanhado por uma sombra dessa natureza há mais anos do que pode se lembrar; Nunca tinha imaginado para Stan um demônio tão obscuro que fosse deformar aquela característica tranquila e inabalável do homem que conheceu na juventude. E posso adiantar que isso tem menos a ver com a perda de visão do que se imagina. Christophe sabe disso.

E ele também não tem pretensões altruístas o suficiente para tentar retomar o vínculo, tentar tirar alguns esqueletos desse armário. Muito menos para ser saco de pancada de alguém, não importa o quanto ele se sinta devedor desse homem. A verdade é que o Toupeira aprendeu, depois de anos sendo calejado, a ter gentileza com aqueles que estão ao seu redor, mas bem fundo dentro dele ainda mora a criatura de pavio curto que precisa se defender até mesmo daqueles que não o atacaram. Consegue respirar fundo, impacientemente, desviando de Stan para seguir seu caminho. Vira o rosto para lançar um olhar breve ao Kyle, que continua parado próximo à porta, e há repressão nos seus olhos. Teria sido fácil demais se ele simplesmente se afastasse, não teria?

-Todos pensaram que você estivesse morto. Kyle deve ter ficado feliz. - Stan diz antes que ele tenha a chance de se afastar demais. Continua no mesmo lugar, de costas para ele, como se falasse sozinho e não se importasse minimamente com a reação do outro. Isso poderia se confundir com a limitação da cegueira, mas Stan sabe exatamente onde ele está. A sensibilidade dele com a movimentação do ambiente é assustadora. Talvez ele até saiba que Kyle está na porta, observando-os.

Agora, eu não sei dizer com certeza se essa frase veio com o intuito de provocar ou não, realmente não sei. Soa baixo demais para o Stan, independente do quanto ele estivesse magoado, mesmo depois de anos, com o desfecho do triângulo entre eles. Eu não acredito que a intenção crua tenha sido venenosa. Mas Christophe e Stan, como eu já disse, investiram em anos construindo e alimentando um desgosto um pelo outro, e só um dos lados carrega um profundo sentimento de culpa pelo que aconteceu.

Christophe não tem dúvida alguma da natureza maliciosa do comentário.

-E você não, eu presumo.

-Eu sabia que você acabaria voltando.

Christophe franze as sobrancelhas grossas e desliza o polegar pela superfície lisa dos papeis pressionados contra o seu peito, encarando Stanley enquanto ele se vira devagar, revelando seus olhos imensos e azuis como o próprio oceano, tão vagos, sem qualquer ponto focal. É verdade o que Stan diz, ele nunca conseguiu aquietar aquele instinto arrebatador de que era uma questão de tempo até o outro ressurgir das cinzas da revolução para a realidade deles. Mais do que nunca, o Toupeira se sente como um invasor. Ele engole o acúmulo de saliva na boca e, enfim, volta a seguir o caminho pelo corredor estreito que leva ao salão principal. Stan se apoia na bengala com as duas mãos, esperando, ouvindo os passos das botas de combate sujas contra o tapete felpudo com a sensibilidade auditiva que uma pessoa que enxerga jamais poderia ter. Quando Christophe desaparece no final do corredor, Stan também segue na direção oposta, passando pela porta da sala de arquivos em que Kyle continua parado, de pé, observando-o.

Stan para em frente a ele. A respiração de Kyle é tudo que ele ouve naquele corredor vazio. Isso faz com que ele sinta vontade de oferecer um sorriso triste, dizer alguma coisa, mas não o faz. Apenas continua a andar, tateando o caminho com sua bengala.


 

* * *


 

Kyle tinha passado o dia inteiro pensando no momento em que entrasse no banho e pudesse finalmente ficar sozinho sob a água quente para aliviar a tensão que corroeu seus ossos o dia inteiro. Agora, finalmente, ele esfrega o couro cabeludo com shampoo e sorri para si mesmo, aliviado, aproveitando a sensação deliciosa da ducha forte massageando as costas. Eu conheci Kyle praticamente a minha vida inteira, eu sei muito bem que o chuveiro é o lugar seguro dele. O banheiro do quarto dele tem uma qualidade antiga, elegante, basicamente como o resto da casa. O piso de ladrilho tem um aspecto de art nouveau em creme escuro e o papel de parede é vitoriano em verde claro com uma certa luminância dourada. A bancada é branca, a superfície é de madeira escura e a pia é de mármore quase da mesma cor do piso. Essas coisas dizem o suficiente sobre quem Kyle é, como ele decora seu banheiro. Algo bastante revelador sobre ele é o fato de que acende velas aromáticas antes de entrar no chuveiro. É um ambiente delicioso, eu preciso admitir. Ele deixa só as luzes embutidas do espelho acesas, todas essas frescuras que contribuem para que ele relaxe, isolado do caos do mundo lá fora.

Isto é, até que um troglodita abre a porta com violência, porta essa que ficava, como mencionado, dentro do quarto dele. Porta essa que nunca foi trancada antes, que Kyle nunca sequer considerou trancar porque morava sozinho há tanto tempo que não fazia sentido. E vou te contar uma coisa, não se faz isso com um ex-guerrilheiro. Esse tipo de pessoa está sempre em alerta, sempre esperando pelo pior. Christophe deveria saber disso muito bem. Kyle, assim como todos que participaram ativamente da revolução, poderia ter deixado um filho da puta inconsciente com um pote de shampoo se fosse necessário. O susto passou em questão de dois segundos, mas a adrenalina já corria pelo seu corpo inteiro. Não foi tranquilizador também quando o Toupeira de repente esticou a cabeça para dentro do banheiro com toda casualidade do mundo.

-Kyle. - Ele chama.

O box do chuveiro é de vidro marrom escuro, mas completamente transparente. O que torna o vidro um tanto fosco agora é o vapor da água quente que cai do chuveiro. E Kyle toma o segundo cagaço da noite, pressionando as costas no azulejo gelado, gritando contidamente, levando a mão ao peito.

-Christophe! - Ele esbraveja, abrindo a porta do box violentamente, colocando metade do tronco pra fora. É adorável como Kyle acredita piamente que essa expressão escrachada em seu rosto de “que merda você está fazendo aqui” será suficiente para que Christophe perceba a inconveniência da situação. Ele se encolhe um pouco, tentando esconder tudo aquilo que não quer que ele veja, em especial o que há entre as pernas.

Mas Christophe não elabora os códigos sociais como as outras pessoas, então apenas pergunta:

-Onde é que você guarda o martelinho pra amaciar a carne? E uma faca bem grande, mas com serra, nada daquela merda lisa.

Kyle fica um tempo imóvel, encarando, tentando entender se ele fala sério. Escorre espuma do seu cabelo pelo ombro e várias gotas pingam no tapetinho logo na saída do box. Não há absolutamente nada no rosto do Toupeira que indique alguma graça. Ele apenas encara de volta, esperando.

-Por favor, Christophe, me diz que não tem um general russo amarrado no meu porão.

-Não fala besteira. Se tivesse, eu estaria te perguntando onde você guarda os alicates.

Pela primeira vez, há um sorrisinho sacana enfeitando os lábios do Toupeira. Esse sorriso não brota com tanta frequência quanto deveria, mas Kyle é muito grato por isso, porque sempre que o sorriso sacana aparece, as pernas dele ainda tremem. Talvez isso tenha muito a ver com as lembranças que esse sorriso traz, de um tempo distante.

Mas o êxtase não dura muito tempo, logo ele se lembra que está puto da vida e fecha a expressão imediatamente. O frio que entra pela porta entreaberta faz com que ele estremeça por inteiro, cada poro arrepiado. Escorre espuma pela testa dele, mas Kyle consegue afastar com a mão antes que chegue aos seus olhos. Suspira.

-O martelo fica na última gaveta, embaixo do forno. E tem uma coleção de facas numa pasta de veludo na sala de jantar.

O Toupeira só assente com a cabeça e vai fechar a porta, mas Kyle o interrompe, levantando a voz para sobrepôr ao som da água caindo:

-É sério, Christophe, o que você quer com isso?

-O que você acha? Eu tô cozinhando.

Nessa nota, Christophe fecha a porta com pressa para voltar para o que ele inconsequentemente largou no fogão aceso. Kyle demora alguns segundos para processar o que acabou de acontecer. Antes mesmo de tomar consciência, já fecha a porta do box e coloca a cabeça sob a pressão da água para enxaguar o shampoo e o que resta de sabonete pelo seu corpo, rapidamente e sem prestar muita atenção. Eu não sei exatamente do que ele tem tanto medo, mas parece aterrorizado, fechando a torneira e pulando para fora do box, molhando o tapete e o piso do banheiro enquanto puxa o roupão bordô pendurado atrás da porta e se cobre, sem se dar ao trabalho de se secar antes. Ele corre escada abaixo como se precisasse apagar um incêndio.

Eu não o culpo por pensar que sua cozinha está revirada do avesso. Eu também esperaria encontrar molho de churrasco escorrendo pelas paredes, todas as panelas imundas e espalhadas pela mesa, baratas tomando conta, massa gordurosa no teto como resultado de uma explosão. Surpreendentemente, está tudo no lugar, tão limpo e organizado quanto sempre foi. Kyle pisa no último degrau com os pés descalços e molhados, respingando onde ele está. A escada é estreita, em espiral, cercada pelas paredes de tijolo, dando direto na cozinha.

Christophe levanta a cabeça e deixa escapar uma risadinha curta pela imagem absurda de Kyle parado ali, sem fôlego, de roupão, ainda com o cabelo um tanto ensaboado, a cor ruiva parecendo muito mais escura do que naturalmente por conta dos fios molhados sob a meia-luz alaranjada da cozinha.

-O que deu em você? - ele pergunta, tranquilamente amaciando um filé de carne crua bem avermelhada, com uma mão firme, barulhenta. Está de frente para ele, parado de pé ocupando o balcão no centro da cozinha, logo abaixo da luz fraca que banha somente a parte central, criando um ambiente mais escuro em torno. Do outro lado do balcão, ficam as banquetas, onde sentam para comer de vez em quando.

-Eu achei que “cozinhando” fosse algum codinome pra construir uma bomba ou coisa do tipo. Isso é carne humana?

Há um cinzeiro logo ao lado do Toupeira, com um cigarro aceso, a fumaça azulada subindo incansavelmente perto do seu rosto. Ele larga o martelo sobre a tábua de madeira e pega o cigarro para uma tragada, prendendo-o entre os lábios quando dá as costas ao Kyle para mexer no molho que ferve no fogão, usando a colher de pau.

-Sinto te decepcionar, mas é carne de boi. - Ele tira o cigarro da boca para soltar a fumaça com prazer, mexendo compulsivamente o molho vermelho. - Não me fala que você virou uma porra de um vegetariano, por favor. Você já é viado, Kyle, existe um limite pra essas coisas.

-O quê? Não. Eu nem... - Kyle observa meticulosamente o balcão, aprovimando-se para apoiar os cotovelos no mármore, estudando Christophe de perto enquanto ele está de costas. - Eu nem sabia que você cozinhava.

-Eu moro sozinho há dezessete anos, Kyle. Quem você achou que cozinhasse pra mim?

Kyle encolhe os ombros.

-Não sei. Eu sempre tive a impressão de que você caçava gambás e cozinhava num espeto na fogueira. Ou mordia esquilos vivos.

Essa explicação, por mais grotesca que seja, condiz assustadoramente com o que eu imaginaria se me perguntassem como o Toupeira sobrevive. É difícil associá-lo com qualquer atividade doméstica. É curioso demais vê-lo esmagando o cigarro no cinzeiro, depois tirando a colher de pau do molho e passando o mindinho pela superfície da colher, acumulando o molho pelo dedo e chupá-lo. É assim que ele experimenta para poder dizer se falta sal. Ele responde com uma risada curta porque sabe que é verdade. Kyle dá a volta no balcão e alcança a faca para começar a picar a carne em pedacinhos, retomando o serviço que o Toupeira deixou de lado.

-Eu pensei que talvez, se você visse que eu sei cozinhar, pensaria duas vezes antes de me expulsar daqui.

-Eu não te expulsei.

Christophe desliga o fogão e vira de frente para ele, encostando-se na bancada, mas Kyle continua de costas; Apenas vira o rosto de lado por um instante, enxergando o Toupeira pelo canto do olho, como se houvesse um predador perigoso atrás dele.

-Ah, não? Então eu devo ligar pro Gregory e dizer que eu não quero ficar na casa dele? Porque Gregory é muito neurótico com usar sapatos dentro de casa e tudo lá cheira a lavanda, é perturbador.

-Você não precisa... - Kyle interrompe a própria fala e sacode a cabeça. - Eu nunca disse que não te quero aqui, você fica até arrumar um lugar fixo.

-“Lugar fixo”. Você diz, uma casa com cerquinha branca, lareira, um cachorro brincando no quintal? Como todo mundo faz. - Sua voz agora é um pouco incômoda, irônica. Há algo agressivo em sua forma de falar, como ele gesticula com a mão, mas Kyle continua de costas para ele e a nuca úmida é tudo o que Christophe consegue encarar. O outro continua em silêncio, cortando a carne com graça e firmeza no movimento. O Toupeira bufa e acrescenta: - Como todos vocês fizeram.

-Bom, é. Eu acho que já passou da hora de você fazer o que todos nós fizemos. - Kyle coloca a faca ao lado da tábua e se vira de lado, põe a mão no quadril e apoia a outra no balcão. - Você já vive na clandestinidade há tempo demais. A Anistia política pôs um fim nisso tudo, Christophe, a revolução acabou.

-Aqui. - Ele responde perturbado, parecendo um bicho encurralado contra o fogão. - Você não faz ideia de como as coisas são lá fora.

-E o que isso quer dizer? Você vai voltar pra Europa?

-Eu não sei, Kyle.

Aqui vai a verdade: Kyle tem vontade de pedir, pelo amor de Deus, para que ele não volte. Mas esse tipo de coisa não chegaria a sair da boca dele, porque não é assim que as coisas funcionam entre os dois. Ele sabe que pedir que Christophe pare de fazer a única coisa que sabe fazer, que é lutar, seria como dar um tiro na pata de um lobo e prendê-lo numa jaula. Mas isso não o impede de querer. Querer muito. Então ele cobre o rosto com as duas mãos e respira fundo. Christophe desencosta da bancada e se aproxima um pouco mais dele, agora preocupado.

-O que foi? - Pergunta, desconfortável, tentando esticar a mão para tocá-lo, mas não sabe como.

-Nada. - Kyle responde com um sorriso fraco, abaixando as mãos. - Eu não quero que você vá a lugar nenhum. Não por minha causa.

-Então qual é o problema?

O problema é que Kyle foi deformado nos últimos oito anos pela ausência dele, pelo rompimento brusco e pelo assombramento da história não terminada faz com que ele tenha tanto medo desse homem de carne e osso, de pé na sua cozinha experimentando o molho bolonhesa com o dedo, sujando suas panelas, fazendo com que Kyle precise pensar em todas as coisas que poderia ter vivido com ele, as infinitas possibilidades daquele início de gostar despretensioso que ficou pendurado durante tantos anos. Kyle continua esperando que essa coisa imensa entre eles, como a planta a qual alguém se esquece de dar água, apenas murche e morra sozinha, naturalmente. Mas ele não pode dizer isso ao outro. Não pode, por Deus que não pode encarar aqueles olhos ferinos e dizer que já caiu naquela cova antes, que já foi sugado uma vez pelo cataclismo devastador que era Christophe DeLorne e não tinha saúde mental para enfrentar aquilo de novo.

Essa foi a única razão pela qual hesitou com a ideia de aceitá-lo em sua casa para começo de conversa.

Christophe aceita o silêncio dele como resposta.

-Por que você não volta pra terminar o banho? - Ele diz casualmente ao Kyle, com uma voz quase gentil, jogando o pano de prato por cima do ombro. - Eu vou arrumar tudo aqui, Dona Broflovski, prometo.

Ao mesmo tempo em que há ironia na voz rouca dele, há também uma entonação tão charmosa, quase alegre, que Kyle nunca ouviu dele antes. O Toupeira já volta sua atenção para a carne fatiada sobre o balcão e as várias camadas de massa fina de lasanha e queijo que ele está prestes a derreter. Corre as duas mãos pelo top da cabeça, alisando o cabelo pra trás, exaltando os músculos e as veias dos braços expostos pela regata verde militar. Kyle se afasta arrastando os pés silenciosamente, com os olhos horrivelmente verdes bem fixos no homem de pé na sua cozinha.

-Claro. - Ele sussurra distraidamente, umedecendo os lábios, antes de subir as escadas.



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