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História Liberté - O Resgate


Escrita por: caulaty

Notas do Autor


Tô perdendo a noção de ridículo com o número de palavras por capítulo, mas tinha que ser assim dessa vez. Peço a compreensão docêis.

Capítulo 50 - O Resgate


Março a Outubro de 3645

 

Deus, há tanto a ser contado. Talvez não tanto pela quantidade de eventos, pois as coisas foram muito estáticas durante essa época, mas há tantas matrizes a serem observadas. Esboçarei a você (da melhor forma que puder) um pouco do cotidiano que desenrolou o retorno de Kyle e Gregory para casa. Lembre-se, porém, de que eu e você temos uma vista privilegiada das coisas. Você já sabe que eles retornarão, e aviso-lhe logo que esse acontecimento se dá no dia 03 de outubro, pouco mais de duas semanas antes do aniversário de Stan. Mas nenhum deles sabia disso ainda. Tinham apenas a visão microscópica das coisas, diferente de nós, que conseguimos enxergar o todo.

É cabível que eu contextualize todos os acontecimentos acarretados pela execução de Craig Tucker. O maior afetado, você pode imaginar, foi Token. Standish se sentou com ele em uma sala durante quase duas horas, Christophe presente o tempo inteiro – havia lavado o rosto, mas continuava com o sangue de Craig em suas roupas – e Standish paternalmente expôs todas as evidências. Token demorou a chorar. Sentia apenas raiva no início, ódio, culpa. Porque no fundo, talvez ele sempre tenha sabido que isso era uma questão de tempo, que Craig era uma bomba relógio prestes a explodir. Token era um homem racional, inteligente. A negação provinha do fato de que Craig era a coisa mais próxima de família que havia lhe restado.

Não me aprofundarei nos diálogos que ocorreram naquela sala, mas acho importante que demos uma espiada nela, ainda que sem som. Apenas a movimentação ansiosa de Token, os papeis sobre a mesa, Christophe com as mãos atrás das costas e parado em frente à porta como um cão de guarda. Token gritava com ele, mas Christophe não se movia. Tampouco o olhava com qualquer tipo de rancor. Pelo contrário, foi um dos poucos momentos em que os olhos de Christophe DeLorne expressavam um relance de compaixão, ainda que ele não soubesse como expressá-la. Não buscou se defender, mas Standish fazia isso por ele, segurando Token até que ele desatasse a chorar, agarrando-se a Standish como se fosse seu próprio pai. Um pai que Token nunca teve, pois jamais choraria nos braços do seu pai de verdade.

Naquela mesma semana, Stan e Kenny se sentaram no telhado do motel e dividiram uma garrafa de cerveja. Era uma parte de concreto na cobertura sobre a qual Michael havia lhes contado recentemente, um lugar perfeito para se isolar. Era preciso passar sobre as telhas de alumínio para chegar na parte de concreto. Lá de cima, enxergava-se a parte vasta e isolada da estrada e, mais ao longe, o amontoado de prédios da cidade. Tudo era em tons terrosos e cinzas. Às vezes se podia enxergar o sol alaranjado através das camadas de nuvem e poluição cobrindo o céu lilás. Sentavam-se bem ao lado da antena de TV, um ao lado do outro.

-Só sobramos nós. - Stan disse eventualmente. Kenny não tentava puxar assunto, não naqueles dias, não quando sabia que Stan precisava de silêncio. - Eu, você, Cartman, Wendy e Token. Só sobramos nós.

Kenny entendeu o que ele dizia. Ainda podia se lembrar do dia na cafeteria do pai de Gregory – céus, como estaria aquele homem ao saber que o filho foi pego? - quando nenhum deles fazia ideia de como atirar com uma arma. Tweek, Butters, Craig, Clyde, Gregory, Kyle. Claro, eles tinham outros colegas de infância que sobreviveram, mas dos seus amigos de infância, restaram apenas os cinco. Stan estava certo.

O que já era uma ferida arregaçada se tornou um pouco pior ao descobrirem que o responsável por aquilo tudo foi alguém que jogou bola com eles a infância inteira. Alguém com quem Kenny já dividiu tantos cigarros, com quem já riram inúmeras vezes por conta de suas piadas sádicas e despropositais, alguém com quem se importavam. Não conversaram sobre isso, entretanto. Porque ambos sentiam que um de seus amigos acabara de ser assassinado, o que não fazia sentido nenhum, não depois do que Craig fez. Kenny e Stan não conseguiram encontrar conforto algum em sua morte, sua punição, embora a raiva os fizesse pensar que deveriam.

Enquanto dava um gole em sua cerveja quente, Kenny se perguntava quanto tempo levaria para chegar ao chão quando se jogasse dali de cima. Faria isso naquela noite, quando todos já estivessem dormido.

 

Certo. Agora, olhemos para o dia 04 de abril. Cartman havia acabado de remover a tipoia. Ainda havia marcas leves em seu rosto, e por mais que resmungasse com frequência do acontecido, Cartman se orgulhava delas. Achava que os hematomas lhe faziam parecer mais forte. Seu nariz continuaria um pouco torto para sempre, pela maneira com que Damien o havia colocado no lugar.

A situação que quero narrar se passou no refeitório de manhã cedo. Poucas pessoas haviam acordado, mas o café da manhã já estava sendo servido. Christophe não havia dormido ainda. Comia suas torradas sem usar prato, as migalhas caindo sobre a mesa na qual estava sentado sozinho. O refeitório era grande o bastante para que se isolar não fosse uma tarefa tão difícil. Christophe tinha os cotovelos apoiados na superfície da mesa e os ombros caídos para frente. Bebia café preto puro e mastigava rápido. Suas olheiras estavam mais escuras do que de costume. Ergueu os olhos quando sentiu alguém se aproximar.

Cartman se sentou do outro lado do banco, bem à sua frente. Jogou a bandeja na mesa de forma barulhenta, contendo um prato com uma quantidade desproporcional de ovos mexidos e bacon, uma banana e suco de laranja. Christophe olhou em volta de forma breve, percebendo a quantidade absurda de bancos vazios, e no entanto, por alguma razão, ali estava Cartman sentado em seu campo de visão.

Ele não começou a comer. Apenas encarou o Toupeira sem dizer nada durante algum tempo.

-O quê? - Christophe finalmente perguntou, a boca cheia de torrada.

-Eu ainda tô esperando um pedido de desculpas.

A reação de Christophe veio com um atraso de três ou quatro segundos, em especial porque ele estava tentando se certificar de que o outro falava sério. Segurou seu copo plástico de café quente, os olhos ainda presos em Cartman; soltou um riso fraco antes de beber, balançando negativamente a cabeça como se ouvisse uma idiotice.

-Você fraturou a porra do meu braço de graça, mas não acha que me deve desculpas?! - Cartman indagou.

-Eu acho que fica aí a lição pra você não sair ameaçando as pessoas no meio de uma guerra civil. - O Toupeira colocou o último pedaço de torrada na boca, bateu as mãos para se livrar do excesso de migalhas e fez menção de se levantar, levando o café consigo, mas Cartman ergueu o braço e fez um movimento para que ele continuasse sentado. Christophe apenas o encarou com desconfiança.

-Fica, caralho.

-O que você quer, Cartman?

-Eu quero entrar no plano.

O Toupeira franziu o cenho como se não entendesse de imediato. Passou a língua sobre os dentes, dando uma olhada em volta, pensando antes de falar. Talvez porque, mesmo depois de tudo, ainda não confiasse em Eric Cartman nem que sua vida dependesse disso.

-Olha só, seu animal. - Cartman empurrou um pouco a bandeja e se inclinou para frente, apoiando as mãos na beirada da mesa. - Eu deveria quebrar as suas duas pernas pelo que você fez comigo, e acredite, eu quero. Mas nós temos coisa mais importante pra fazer. Porque eu sei que, apesar de você ser uma besta sem coração, Kyle e o veado do Gregory são as únicas coisas que importam pra você. Eu sei que você não passou esse último mês de braços cruzados. Eu também não vou ficar. O Stan… Ele o ama, provavelmente mais do que você, mas ele é frouxo demais pra fazer o que precisa ser feito. Eu não sou. Eu tô contigo, entendeu? Pro que você disser, qualquer pescoço que eu precise quebrar, eu tô dentro. Eu preciso… Eu preciso fazer alguma coisa.

Ao final da frase, Cartman soava quase desesperado. Mas seu rosto era firme como uma rocha. Christophe não levou muito tempo para se levantar, o café ainda em sua mão.

-Termina de comer a sua montanha aí e depois me encontra na Básica 8.

 

Vamos dar uma breve olhada em agosto, sim? Dia 23, para ser mais exato. E se você está preocupado com a passagem brusca de tempo, não se preocupe, nós já vamos voltar para trás. Um dia nublado e abafado, fazia 27 graus. Christophe estava sentado no banco do passageiro do carro preto, Michael no volante, Stan no banco de trás. Tocava uma música suave de uma coletânea que estava sempre no carro e ninguém sabia de quem era. Stan gostava da música, da melancolia e da letra, mas estava distraído demais para aproveitá-la.

Respirava fundo, abaixando a cabeça, apoiando os cotovelos nas coxas e as mãos na nuca. Christophe o observou de relance pelo espelho retrovisor.

-Tudo bem aí, Marsh? - Perguntou.

-Ahn? - Ele ergueu a cabeça, seus olhos fundos e pesados. - Sim. Tudo.

Ninguém disse mais nada. Christophe apoiou o braço na janela aberta do carro e esfregou a testa com sua mão, usando a mesma luva preta sem dedos. Apoiou um pé sobre o painel, revestido pela bota preta com tiras, exatamente da cor da calça que era folgada nas coxas e apertada nos tornozelos, cheia de bolsos para guardar coisas úteis. A regata era cavada o bastante nas mangas para expôr toda a lateral do seu tronco suado. Aquele calor era muito melhor do que o frio desgraçado que resistiu até quase metade da primavera naquele ano.

Não sei se você reconheceria Stanley agora. Sabe, a vida não parou nos últimos meses. Chegou o momento em que Stan precisou se levantar. Precisou existir sem Kyle no mundo (no seu mundo, isto é). Foi particularmente destruidor nas primeiras semanas, não apenas pela perda e pela incerteza, mas também pela sua própria identidade. Stan havia seguido Kyle até ali, perseguido-o na verdade, até as profundezas naquela vida clandestina que Stanley ainda não sabia se desejava. Estava a quilômetros de casa, longe de sua mãe, em um lugar ao qual não pertencia, e com Kyle ali, isso fazia sentido. Mas sem Kyle, sem aquela luz para que Stan pudesse correr atrás, ele estava no escuro e sozinho. E você pode pensar que isso é injusto, pois o motel é um lar, há Kenny e Wendy e todas as outras pessoas que, agora, eram como sua família. Mas a angústia de Stan não era externa, não estava nos outros, estava nele. Nunca teve a chance de entender o quanto a presença esmagadora e irresistível de Kyle em sua vida ofuscava todos os seus medos, impedindo-o de olhar para dentro de si mesmo com clareza.

Esse Stanley que estava sentado no banco de trás do carro que percorre as ruas mais destruídas de Nova York, esse Stanley já descobriu que consegue sobreviver. Já voltou às ruas e já matou novamente, já aprendeu a atirar muito melhor, já não sentia mais tanto medo. Eu não diria que ele endureceu, pois Stanley sempre foi uma das almas mais resilientes que já caminharam sobre a terra, flexível e doce, o que o tornava praticamente inquebrável. Ele era mais silencioso também. Vestia cinza, o que combinava com o cenário, com o dia e com seu estado.

No dia 12 de maio, Stan teve um ataque de pânico na sala de operações. “Ele está morto”, ele repetia. Várias e várias e várias vezes, cobrindo as orelhas, encolhendo-se, em meio a uma discussão fervorosa entre Christophe e Trent sobre quanto tempo o plano levaria para ser executado. Não se sabe ao certo o que ocasionou o ataque, se foram os gritos, a pancada na mesa ou a própria mente derrotista de Stanley. Essas coisas nunca são concretas. Sabe-se apenas que Christophe virou-se para ele devagar e, em um rompante que nasceu de um impulso invisível, o punho de Christophe colidiu com força contra a bochecha esquerda dele. No instante seguinte, o Toupeira o segurou de pé para que ele não caísse. Stan gemeu de dor, cobriu a bochecha com a mão e passou alguns segundos com a cabeça baixa, os cabelos negros mais longos cobrindo seu rosto. Ao erguer o olhar triste, Stan parecia são novamente. Sussurrou:

-Obrigado.

Eu diria que esse foi o momento em que Christophe e Stan começaram a entender um ao outro.

Agora, em agosto, aqui estão eles.

Dirigiam por uma rua estreita com prédios imensos cercando-os pelos dois lados da rua. Todos eles pareciam abandonados, com as janelas de vidro destruídas, a pintura descascada, as paredes sujas, algumas até em ruínas, as ruas malcuidadas e cheias de lixo, pichações, móveis velhos e largados para quem quisesse pegar. Havia bares ali, mas nenhuma loja. Apesar da aparência das construções, elas não estavam realmente abandonadas. Havia pessoas morando ali, pessoas que não eram vistas como pessoas. Michael estacionou em frente a um edifício tão antigo que crescia mato entre as fraturas na parede e parte do teto estava destruída. Olhou para os outros dois com seus enormes olhos pretos, com cautela, perguntando silenciosamente se eles estavam prontos. Christophe e Stan não sinalizaram nada com a cabeça. Apenas saíram do carro.

Eles subiram a estreita escada do prédio até o terceiro andar. Era um ambiente claustrofóbico, Stan pensava. Seguia atrás de Christophe, observando os degraus que rangiam como se fossem ceder sob o peso, as teias de aranha nas paredes e a movimentação dos mendigos que moravam ali.

Michael bateu na porta do apartamento 302. Foi uma batida bastante específica, um código que comunicava “sou eu”. Cartman destrancou a porta, mas não ficou para recebê-los na entrada. Nem mesmo a abriu. Quando Michael empurrou a porta – que sempre emperrava na metade do caminho devido ao piso de madeira elevado – um cômodo pequeno e abafado se revelou. Não havia energia elétrica, e as paredes eram vedadas por jornais, mas a luz do dia ainda penetrava através do papel fino. Stan não sabia quando foi a última vez que viu jornal em papel. Isso nem existia mais no Colorado.

Havia um cheiro horrível de urina dentro daquele lugar. Assim que os três entraram, Christophe trancou a porta e Michael começou a amarrar os cabelos crespos para trás, enquanto Stan ainda tentava reconhecer o ambiente. Ele os seguiu quando se dirigiram em direção a um quarto; só havia o arco da porta e as dobradiças, mas a porta em si havia sido arrancada. Sabe-se lá que tipo de coisas já se passaram naquele lugar. Para o outro lado, havia uma cozinha tão imunda que Stan preferia não pisar nela.

É claro que, uma vez que ele pisasse no quarto, também desejaria não tê-lo feito.

Havia uma cadeira no centro do quarto e um homem sentado. Ele não parecia machucado, mas a sua imagem foi suficiente para revirar o estômago de Stan. Ele parou próximo à porta e desviou o rosto em direção à parede, cujo papel cinza estava descascando. O homem tinha um saco de pano cobrindo sua cabeça, tinha as duas mãos amarradas para trás. Movia-se, estava acordado. Vestia apenas sua calça de exercício azul, mas seu tronco estava nu. O cheiro de urina vinha dele.

-Jesus Cristo. - Stan disse baixinho.

Christophe repousou a mochila marrom no chão e começou a estralar o pescoço, enquanto Michael se ajoelhava para procurar a câmera dentro da mochila e Cartman mexia em uma caixa de ferramentas. A coisa toda começou a embrulhar o estômago de Stan, a ponto de ele se perguntar se realmente deveria ter vindo.

O homem se chamava Maxwell Handerson, embaixador inglês na Antiga América. Um homem de 56 anos, Stan lembrava-se de ter lido no perfil que lhe foi entregue sobre ele. Quatro filhos. Diplomata precioso desaparecido há dezesseis horas. Stan jamais se esqueceria dos sons que Maxwell fazia. Gemidos fracos de alguém que tinha certeza de que estava prestes a morrer.

-O que acontece agora? - Stan finalmente perguntou, ansioso para dizer qualquer coisa que abafasse os sons daquele homem.

-Agora nós provamos que estamos com ele. - Michael respondeu, ligando a câmera. - Ei, Max. Tá pronto? - E, voltando-se para Cartman. - Pode tirar o negócio.

Quando Cartman puxou o saco de pano, tudo ficou mais difícil. O homem parecia um pouco mais velho do que era, talvez pela forma como as suas linhas de expressão eram marcadas pelo horror genuíno em seu rosto. Havia fita isolante tapando a sua boca. Ele tinha uma ferida na testa, mas o sangue já estava seco.

-Vocês machucaram ele?! - Stan perguntou.

-Ele tentou fugir. - Christophe respondeu com impaciência. Aproximou-se do homem para arrancar a fita de sua boca. Stan jamais se esqueceria da forma como Maxwell olhou Christophe DeLorne, como se a própria morte se aproximasse dele. Christophe, no entanto, parecia completamente inafetado por isso. - Foi só uma pancadinha.

O Toupeira se afastou dele. Maxwell encarava os quatro homens daquela sala como um filhote de animal assustado. Talvez tenha percebido em Stan uma possibilidade de compaixão, e foi nele que seus olhos repousaram.

-Aqui, ó. Eis o que vai acontecer. - Michael disse em seu tom apático de sempre, erguendo a câmera que ainda não gravava. - Você sabe quem é Kyle Broflovski?

O homem olhou de relance para Stan uma última vez antes de assentir.

-Ótimo. Você vai olhar pra essa câmera e vai ler isso daqui. - Ele apontou com a cabeça na direção de Cartman, que levantava uma placa de papelão com escritos. - Calmo e articulado, ok?

Maxwell assentiu novamente. Michael pressionou o botão e a luz vermelha se acendeu. O homem pigarreou e tentou conter o tremor na voz antes de começar.

-“Meu nome é Maxwell Handerson, Embaixador da Inglaterra atuando nos Estados Unidos, na embaixada que reside na cidade de Nova York.” - Stan percebeu que ele estava tentando lutar contra as lágrimas. Olhou de relance para os rostos de Christophe, Michael e Cartman, mas os três pareciam concentrados e indiferentes. Stan pensou que fosse vomitar. - “Na noite de três de abril de 3645, fui encurralado e tido como refém pela Organização Radicalista dos Monarcas. Eu não estou sendo submetido a tortura ou qualquer outro tipo de ferimento. Estou recebendo água e comida. A condição para a minha liberdade é a libertação imediata dos prisioneiros políticos Kyle Broflovski e Gregory de Yardale. Eles...” - Sua voz falhou. Ele apertou os olhos, respirando fundo, o rosto trêmulo de pavor. Naquele momento, Stan entendeu o peso do nome dos Monarcas. Quando ele olhava em volta, enxergava pessoas nas quais confiava, pessoas próximas, amigos. Quando Maxwell olhava em volta, enxergava terroristas sem escrúpulos. Stan sentia vontade de vomitar. Era exatamente isso que eles haviam se tornado. - “Eles dão três dias para receber uma resposta do governo americano. Não haverá negociações. Caso o governo não se posicione, ou negue a troca, eles… Começarão a me desmembrar. Um membro será enviado à Embaixada a cada 24 horas. Quando não houver mais o que cortar, eles me matarão.” - Cartman trocou a placa. Maxwell a leu primeiro antes de falar em voz alta. - “E então, um novo sequestro acontecerá. Da próxima vez, o alvo será… Os familiares dos congressistas.”

 

Stan nem saberia explicar como saiu daquele cômodo. Foi um impulso tão brusco que suas pernas se moveram praticamente sem permissão. E ao chegar na sala, elas se esqueceram de como funcionar; precisou se segurar na parede suja, mas caiu de joelhos de qualquer forma, despejando todo o conteúdo do café da manhã no chão de madeira. Era mais líquido do que qualquer outra coisa. Seus olhos e garganta ardiam. O estômago doía de maneira tão aguda que a dor atingia suas costas e nuca também. E porra, como fazia calor lá dentro.

Quando o refluxo parou, Stan arriscou abrir os olhos. Tinha as duas mãos apoiadas no chão empoeirado. À sua frente, bem ao lado da poça de vômito, estavam aquelas botas familiares. Stan ergueu a cabeça com a expressão mais infeliz que eu já vi. Christophe o segurou pelo braço e o puxou para ajudá-lo a se reerguer de forma brusca.

-Isso tá errado, Toupeira. - Ele murmurou com a garganta arranhada, o gosto de vômito tomando conta de sua boca. Esfregou a testa úmida de suor com uma mão, apoiando-se na parede com a outra, balançando a cabeça.

-Você disse que estava pronto.

-Pra isso?! - A voz de Stan cresceu de repente. Christophe respondeu com um “shh” tão violento que parecia estar falando com um cachorro. Stan queria rir de desgosto, de ironia, porque é claro que o homem apavorado no quarto ao lado não poderia saber que havia um pingo de compaixão naquele apartamento. Mas Stan não riu. Desviou o olhar e respirou fundo. Quando falou novamente, foi em sussurros. - Pra saber que, se isso der errado, nós vamos sequestrar e desmembrar crianças também?!

-Você quer ele de volta?!

-Não faz isso. Não fala como se você se importasse com o Kyle mais do que eu só porque você é tão fodido da cabeça que nem consegue ver…

-Se eu não fosse tão fodido da cabeça, ele morreria lá dentro. - Ele interrompeu. - Essa é a verdade. Você pode vomitar, pode chorar, pode sentir o que você quiser lá fora, mas aqui dentro, você vira homem e faz o que tem que ser feito.

Stan não disse mais nada. Christophe também não esperou por uma resposta. Mas apesar de nenhuma palavra a mais ter deixado os seus lábios, Stan sentiu um ímpeto forte de se desculpar. Não o fez.

 

Planejar um sequestro leva meses, você pode imaginar. Há uma logística matemática envolvida. Em tempos de luta armada, ninguém se sentia seguro. Os filhos de militares sempre iam para a escola acompanhados por soldados, jamais andavam sozinhos pelas ruas. Os embaixadores andavam em carros blindados e todas as Embaixadas tinham vigilância redobrada, bem como os círculos militares. Não eram pessoas facilmente acessíveis. A primeira questão, que surgiu ainda em março, foi escolher o alvo.

Levaram vinte dias para finalmente decidir o nome de Maxwell Handerson, depois de discussões incessantes madrugada adentro. Eram sempre as mesmas pessoas. Trent, Michael, Henrietta, Cartman, Christophe, Nichole e Standish. Cartman se sentia, muitas vezes, uma criança em meio aos adultos. Havia um protocolo, um estudo envolvido que considerava o valor do nome escolhido para o governo, se uma pessoa valia o bastante para libertar dois prisioneiros, bem como sua acessibilidade e a pressão internacional que seu sequestro acarretaria, que tipos de relações diplomáticas a Nação mantinha com determinado país. Por isso, um Embaixador inglês. Os Estados Unidos miravam o apoio da Inglaterra na Guerra contra o Canadá. Os recursos estavam cada vez mais escassos, a Nação precisava de alianças. Deus, como guerras são caras. De qualquer forma, o sequestro de um Embaixador Inglês ajudaria a atar as mãos do governo.

Além disso, ainda em março, algo bastante inesperado começou a acontecer; marchas civis “pacíficas” exigiam a libertação de Kyle Broflovski. Vídeos brotavam nas redes, uma cobertura alternativa feita pelas próprias pessoas nas marchas. Uma parcela muito insignificante da população tinha acesso a quaisquer dispositivos de vídeo, ou qualquer tecnologia, o que indicava que não eram somente as camadas mais pobres que participavam de tais atos. A natureza dos atos variava. Havia marchas silenciosas, vigílias, quase todas as pessoas vestidas de branco, ou quase todas as pessoas vestidas de vermelho, assim como ocorriam marchas mais expressivas que queimavam imagens de Sheila Broflovski. Quase todos os atos eram dispersados por algum tipo de violência por parte dos sapadores. Se a primeira pedra era atirada por eles ou não, ninguém sabia dizer. O que importava era que entoavam vozes por todos os cantos do país, vozes exigindo que libertassem o Pássaro Vermelho.

A situação era favorável.

Uma vez que decidiram pelo nome do Embaixador, os meses de abril, maio e junho foram dedicados apenas a observá-lo. Não foi difícil descobrir onde ele morava. Pete e Firkle o seguiam quatro vezes por semana, sempre em horários diferentes, em carros diferentes, e faziam os relatórios. Onde ele ia, qual caminho fazia, em quais restaurantes gostava de comer, quanto tempo passava andando, se tinha motorista ou não, quando era acompanhado por sapadores ou não, quanto tempo levava para realizar cada trajeto. Depois, Nichole e Trent refaziam esses caminhos e tiravam fotos de todas as rotas, todos os espaços e caminhos possíveis. Foram três meses e meio dedicados a estudar a vida de Maxwell obsessivamente. Todas as variantes de seus dias, coisas que nem mesmo ele percebia sobre si mesmo.

Assim, um plano começou a se formar. Foi isso que fizeram durante todo o mês de julho; onde, quando e como. A mesa da Básica 8, uma sala simples e vazia com uma mesa longa e seis cadeiras, foi tomada por mapas, fotografias, anotações, bem como o quadro branco estava sempre lotado de círculos com X no meio, nomes de locais, nomes de ruas, traços que levavam do ponto A ao ponto B.

No início de agosto, todos já sabiam o que aconteceria. Nichole, Trent, Firkle e Michael usariam suas identidades falsas e disfarces para adentrar a ilha. Essa foi outra longa discussão, até convencer Christophe de que o vídeo do aniversário do Presidente em South Park revelava o seu rosto, e a prisão de Kyle reviveu aquele vídeo frequentemente em rede nacional. Era arriscado demais que ele fosse.

Ele e Cartman esperariam depois da ponte para a troca de carro, caso eles fossem seguidos. Tudo deveria ser calmo e discreto. Na quinta feira à noite, Maxwell saía para correr em seu bairro nobre. Era um exercício que durava trinta e cinco minutos, sempre passando bem em frente às casas em um horário em que ainda havia movimentação na vizinhança, as lojas ainda funcionavam. Mas havia um ponto específico em que Maxwell precisava atravessar uma praça. Deveria chegar ali aproximadamente 20h22 da noite. Isso lhes daria menos de oitenta segundos para colocá-lo no carro sem que ele fizesse muito barulho para não chamar a atenção. Também era uma região onde quase não havia cães nas casas. Deus, os cães eram sempre terrivelmente barulhentos.

Nichole ficou esperando por ele sentada em um banco, usando um vestido amarelo que ela jamais escolheria em toda a sua vida, mas a mente humana é tão rasa. Ela sabia que um vestido a tornaria mais vulnerável, bem como o fato de ser uma mulher sozinha à noite, e isso provocaria empatia em Maxwell. Antes de ele chegar, ela pensava no quanto aquela vizinhança se parecia com um outro planeta. Todas aquelas casas belas e amontoadas, pessoas passeando com seus cachorros, uma vida normal e alienígena. Ela tinha pena daquelas pessoas.

Quando ele finalmente chegou, usando um conjunto de moletom azul ridículo. Ela se levantou e perguntou, em seu tom mais doce:

-Com licença, senhor. Pode me dizer que horas são?

-Claro. - Ele continuou se movendo no mesmo lugar para não perder o ritmo cardíaco enquanto encolhia a manga para enxergar seu relógio de pulso.

Esse foi o momento em que Nichole puxou a seringa cuidadosamente presa na lateral de sua calcinha, puxando-a por baixo do vestido e avançando para enfiar a agulha na jugular de Maxwell.

-Ela é boa pra caralho. - Michael comentou com Trent no carro. Estavam estacionados a quase dez metros. Trent soltou um riso fraco, sem propriamente sorrir, enquanto abria a porta para ajudar a carregar o homem desacordado.

 

Tudo isso é a parte prática. A parte fácil, para ser bem honesto.

Difícil é eu fazer você entender o que foi para esses dois homens, viver com a incerteza. Sabe, isso é diferente da morte. É diferente de amar alguém que já se foi, ter certeza de que nunca mais o abraçará, de que nunca mais olhará dentro daqueles olhos. Isso é o purgatório. O limbo. O lugar onde tudo está suspenso e nada é garantido, onde não se pode ter esperança, mas também não se pode viver o luto, pois ninguém morreu ainda. Às vezes, aquela chance de trazê-los de volta era a parte realmente perturbadora.

Christophe entendia a importância de uma rotina para manter a sanidade. Tentava não beber todas as noites, mesmo porque nem sempre sentia vontade, mas era um momento necessário de anestesia. Duas vezes, durante esses sete meses, Christophe passou dos próprios limites com sua garrafa de uísque. A primeira noite, ele acabou com as mãos sangrando, uma cicatriz na testa, uma porta destruída e vômito por todos os lados. Na segunda, Christophe acordou no gramado dos fundos sem saber exatamente como havia chegado lá. Sabe, esses eram os momentos em que a ausência ficava ainda mais evidente. Gregory não estava lá para recolhê-lo do chão como sempre fazia.

Stan era diferente. Não tinha picos extremos, vivia num estado constante de estagnação que o manteve exatamente no mesmo lugar durante aqueles meses. Sorria muito pouco. Bebia apenas a dose necessária para dar conta de sair da cama toda manhã, o que nem sempre era possível. Kenny se mudou para o quarto que Stan, antes, dividia com Kyle. E era bom ter alguém por perto. Era bom e insuportável. Às vezes, Stan ficava parado em frente ao armário aberto, encarando as roupas de Kyle intocadas por tempo o suficiente para começarem a acumular pó. Tocava a manga de uma camisa macia de flanela azul, sentia tanta vontade de tirá-la do cabide e abraçá-la, procurar vestígios do cheiro de Kyle, mas nunca chegou a fazê-lo, pois enlouqueceria se o fizesse. Havendo ou não havendo cheiro.

O cotidiano de Stan Marsh foi o mais afetado, entenda. Todos os aspectos de sua vida eram atrelados a Kyle Broflovski, mais do que nunca no último ano. O que é irônico, considerando o abismo que foi lentamente cavado entre os dois. Mesmo assim. Comiam juntos, dormiam juntos, acordavam juntos, conversavam ao fim do dia sobre tudo o que haviam feito. Durante aqueles meses, Stan perdeu a voz. Parou de respirar. Sonhava com a última briga quase todas as noites, as crueldades que foram ditas, crueldades que Stan daria qualquer coisa para ter engolido, mesmo sabendo que isso o teria matado. Em alguns sonhos, no entanto, o desfecho mudava. No dia 9 de junho, em vez de repetir as crueldades e ir embora, Stan se deu conta de que Kyle estava bem à sua frente. Como se ele tivesse acabado de retornar de um lugar terrível, mas em seu sonho, Stan não sabia que lugar era esse. Sabia apenas que Kyle estava ali, depois de tanto tempo pensando que ele nunca mais voltaria. Mas Kyle não parecia saber disso. Stan largou a peça de roupa que segurava – uma jaqueta? um suéter? - e segurou o rosto confuso de Kyle com delicadeza em suas mãos, aqueles olhos verdes gigantescos e apavorados, cheios de culpa.

-Você nunca vai me perder. - Stan disse a ele. - Nunca, nem depois de arrancar o meu coração, nem depois da nossa morte. E eu sinto muito. Eu sinto muito, Kyle, porque eu sei que você não escolheu amá-lo, ele não escolheu te amar. Eu sinto muito. Eu sei que te machuca. Machuca todo mundo. Eu quero te libertar, mas eu não posso, porque você nunca me pertenceu, você e eu estamos sendo puxados pela mesma âncora. E ele também não é a sua salvação, Kyle, ele não é a sua libertação, você quer demais dele. Eu sinto muito por pensar que a minha dor é maior do que a sua, maior do que a dele. E por te culpar pelo que não é culpa sua, pelo que você nunca escolheu. Eu vou dar tudo o que eu tenho pra te perdoar. Espero que você faça o mesmo.

Entenda, Stan Marsh não escolheu dizer essas coisas. Você escolhe o que faz e diz em seus sonhos? Ou percebe, nessa total falta de controle, o que você realmente quer? Esses impulsos deveriam ser ouvidos com mais frequência. Fato é que, ao acordar, Stan não entendeu suas próprias palavras. Não as diria em voz alta daquela maneira, mas algo dentro dele pulsava. Sentou-se na cama, o quarto escuro iluminado apenas pelas luzes que penetravam o vidro da janela. O relógio marcava 02h27 da manhã. Ao longe, Stan podia ouvir risos altos e embriagados. Kenny provavelmente estava lá, reunido com outras pessoas. Stan esfregou a nuca suada e olhou em volta, enxergando muito pouco dos contornos dos móveis no quarto, mas sentindo a solidão e o vazio dentro de sua própria carne. Deitou-se devagar, encarando as tábuas brancas do teto, deitando as mãos sobre o peito e respirando fundo. Sentia-se afundar. Ao fechar os olhos, desejou nunca mais abri-los.

Surpreendentemente, o dia que seguiu aquela noite conturbada foi um dos mais tranquilos. Como se Stan tivesse se livrado de algum peso, junto com o suor que ficou em seus lençóis. À luz do dia, junto às outras pessoas, tudo parecia mais fácil. Não era. Não realmente. Mas parecia.

 

-Como é que você está? - Henrietta perguntou de repente.

Era início de agosto. Ela e Christophe fumavam no quintal dos fundos, à sombra de uma árvore, sentados na parte rala da grama. Detestavam o sol, os dois. Foi um dos piores dias de Christophe, ela podia ver em seu rosto. Ele não contaria a ela sobre a insônia, sobre a paranoia, sobre o tormento, sobre quantas vezes pensou em pedir que Standish restringisse seu acesso ao armamento porque ele já não sabia mais o que era capaz de fazer. Sentia dor constante, em todos lugares, mas especialmente na cabeça e nos ombros. A nuca, também, doía tanto que quase alterava seus sentidos. Tudo aquilo borbulhava dentro dele, tão fundo que ninguém conseguia ver, mas Henrietta sabia. Sabia, pois era igual a ele.

O Toupeira franziu a testa, estranhando que uma pergunta do gênero surgisse entre eles. A maneira com que Henrietta proferiu as palavras foi quase engraçada, sua voz tão indiferente, fumando o cigarro que segurava entre os dedos. Suas unhas eram longas, o esmalte preto recém pintado reluzia na luz do sol.

-Uma merda. - Ele finalmente respondeu com sinceridade.

-Você chora?

Me perdoe, mas o olhar de Christophe nesse momento não foi nada menos do que hilário. Ele virou metade do rosto para ela, uma ruga entre as sobrancelhas grossas, os olhos estreitos e um sorriso confuso querendo aparecer na boca, como se quisesse perguntar o que havia misturado com o tabaco dela.

-Você chora? - Ele retrucou.

-Não, mas não foi o meu melhor amigo e o amor da minha vida que foram presos. Você devia chorar um pouco.

Ele riu. Havia amargura em seu rosto, como sempre, mas pareceu um riso sincero. Tragou o cigarro mais uma vez, balançando a cabeça sem afirmar ou negar nada.

-É sério, Toupeira. Tudo bem se você quiser chorar.

Christophe a encarou como se ela tivesse acabado de dizer uma frase em latim.

-O quê, agora?

-É. Eu não vou sair por aí espalhando que você é frouxo nem nada.

-Ah. Obrigado, é bem essa a preocupação que me mantém acordado à noite.

-Olha, eu só tô falando que tudo bem se você precisar de… Sabe, um ombro amigo pra te dar uns tapinhas nas costas e dizer… Sei lá, coisas motivacionais, esse tipo de merda, eu tô aqui.

Ele tentava acender novamente o cigarro que havia apagado, protegendo-o com a mão de uma brisa leve que balançava os galhos da árvore. Havia um sorriso em seus lábios, cínico e afetuoso, ainda que sua voz fosse carregada de sarcasmo.

-É, você é ótima nisso, eu já me sinto melhor.

-Vai se foder. - Ela disse com uma gargalhada genuína, empurrando-o com o cotovelo. Um pouco do seu batom escuro havia manchado a ponta do cigarro. - De verdade, parece que você vai acabar dando um tiro na cara de alguém se não colocar um pouco disso aí pra fora.

-Você acha que eu não quero? - Ainda sem conseguir acender o cigarro, ele o arrancou da boca e apertou o isqueiro na mão esquerda. - Caralho, eu daria qualquer merda pra conseguir, eu tenho certeza de que isso vai me dar um derrame antes dos trinta. Mas eu vou fazer o quê? Eu não sei como as pessoas conseguem. - Houve silêncio. Henrietta não respondeu porque, na verdade, entendia exatamente do que ele falava. As nuvens se moviam lentamente sobre eles, os raios de sol penetravam a camada cinza no céu. De repente, Christophe continuou. - Acharam um cachorro morto lá na frente esses dias e… Foi a coisa mais esquisita, cara, o Stan chorou em cima daquele bicho por mais de uma hora. E não era só… Choro normal, ele soluçava. Por causa de um cachorro. Porra, como?

-Ele não tava chorando pelo cachorro. - Ela disse em um tom incrédulo, tragando o cigarro e erguendo uma das sobrancelhas.

O Toupeira voltou a tentar acender o cigarro.

-Tava sim.

-Não tava, o cachorro é uma metáfora. O cachorro é o Kyle, entendeu?

-Como…? Quê? - Deus, a cara que ele fez. Como se Henrietta estivesse tentando explicar física quântica.

-O cachorro morto simboliza a perda do… Sei lá, cara, talvez fosse pelo cachorro mesmo. Aquele menino chora pra caralho.

-Não é possível, aquilo. Ninguém tem tanta água assim no corpo.

Ela respondeu apenas com um som fraco de concordância, assentindo com a cabeça. Os dois voltaram a olhar para o gramado à sua frente. Henrietta apagou o resto do cigarro e o jogou na grama, porque foda-se a natureza, todos vão morrer de qualquer forma. Christophe continuou fumando. Ela, no entanto, esticou as pernas e encarou os próprios coturnos enquanto mexia os pés, a mente muito longe dali.

-A gente é muito fodido. - Constatou de repente.

-Hm?

-É claro que ele chora. - Agora, sua voz era carregada de melancolia. - O namorado dele foi preso. Stan não é idiota, ele sabe exatamente o que estão fazendo com ele lá. - Uma pausa. E então, repetiu em um tom mais sutil. - É claro que ele chora.

-É.

Henrietta virou o rosto para ele, observando-o por alguns segundos. Enxergando todas as linhas de expressão que o faziam parecer mais velho, que talvez não estariam ali se esse homem tivesse aprendido, em algum momento, como chorar. Ela estendeu a mão e acariciou as costas dele. Christophe não reagiu. Foi um toque breve, pouco carinhoso, mas cheio de significado.

-Então. Você chama ele de Stan agora? Não é mais “Marsh”?

Ele encolheu os ombros, desviando o olhar para os galhos. Um sorriso fraco se esboçou nos lábios pintados de Henrietta.

 

Me perdoe por essa narrativa recortada. Eu não sei se as coisas têm feito sentido para você. Às vezes, é fácil me pegar envolvido demais por essa vista tão abrangente que tenho de onde estou, de modo que posso me esquecer que os olhos que me acompanham (os seus) são humanos. Aproveito o momento, também, para lhe agradecer. Sei que não tem sido fácil. Sei que você deve ter sentimentos fortes sobre tudo isso, se está comigo até agora, e talvez você mereça um narrador mais empático do que eu. Bem, estamos nos aproximando da beirada. Entenda, tudo o que lhe conto aqui faz parte de algo muito maior; é a preparação para o que acontecerá no dia 03 de outubro em diante. Para que você entenda onde essas pessoas se encontram, seus estados, suas angústias, quem elas são depois de tudo o que aconteceu.

Essas são as coisas que deformam a gente em vida. Mesmo depois de morto, elas continuam te acompanhado. É por isso que estou aqui, carregando a minha bagagem.

Tenho um último momento importante a narrar antes que voltemos às questões práticas que trouxeram Kyle e Gregory para casa. Você deve querer saber como eles estão, não é? Saberá em breve. Muito breve.

Mas de todas as coisas importantes que lhe contei até aqui, dos eventos que se deram na ausência de Kyle e Gregory, talvez essa seja a mais importante de todas. A que merece todo o seu cuidado e atenção. A cena tem início com Stan Marsh parado em frente à porta de Christophe DeLorne. Porque há um momento em que as suas dores precisam se cruzar. Isso acontece na noite do dia 25 de agosto. Bem em meio aos dias de maior angústia, em que esperavam a qualquer momento uma resposta à sua ameaça.

Quando Christophe abriu a porta, – e o fez de forma violenta, já comunicando que não queria ser perturbado – sua expressão amaciou durante um segundo ao colocar os olhos em Stan. E, logo em seguida, deu um passo à frente para olhar em volta, procurando algo que Stan não sabia dizer o quê. Ao não encontrar o que queria, o Toupeira o encarou nos olhos com um rosto sem expressão. Algo em seus olhos castanho esverdeados revelava que estava confuso, e Stan se sentiu obrigado a reagir, mas durante alguns segundos, nenhum som saiu de seus lábios. Ficaram quietos por tempo o suficiente para que Christophe fizesse menção de perguntar se ele queria alguma coisa, mas essa menção foi o gatilho necessário para que Stan falasse sem pensar:

-Você tá sozinho? - Assim que as palavras deixaram sua boca, ele balançou a cabeça, tentando respirar fundo. Quebrou o contato visual, parecendo tão perturbado, buscando um modo de explicar o que queria dizer. - Você… Você se sente sozinho?

Christophe não reagiu. Deus, o coração de Stan martelava dentro do peito, porque algo a respeito daquele homem era tão terrivelmente intimidador, como se ele fosse feito de pedra. Era como falar com uma parede. E, ao mesmo tempo, ele exalava algo tão feroz que poderia estourar a qualquer momento. No entanto, permaneceu assim, imóvel, segurando a porta e encarando Stan Marsh como se não fizesse ideia do que havia acabado de escutar.

-Porque… - Stan prosseguiu, olhando para trás por um instante, esfregando a própria testa. - Porque eu sei que hoje é sexta, e eu nem sei se você sabe disso, se você também perde a noção de que dia da semana é, mas hoje é sexta-feira e eu também sei que sexta era o dia em que o Gregory vinha com um engradado de cerveja e vocês… Jogavam carta ou alguma coisa assim. - Uma vez que ele começou a falar, era como se já não tivesse mais controle sobre o que saía de sua boca. Era como vômito. - Kyle me contou sobre isso. Ele disse que Gregory chamava isso de…

-“O dia de se certificar que o Toupeira não vai se matar”. - Christophe o interrompeu, apoiando o braço no batente da porta.

-Isso. E não é engraçado, não é… Não é nada engraçado, especialmente agora, mas Kyle disse que você ria disso. E parecia importante. E hoje, quando eu percebi que era sexta, eu pensei… Sem o Gregory aqui, sem o Kyle, se você não se sente sozinho. Porque eu me sinto. Eu me sinto tão sozinho, e eu me sinto um imbecil por isso, porque Kenny e Wendy ficam comigo o tempo inteiro, todo dia é dia de se certificar de que o Stan não vai se matar, e eu… Eu sou grato, mas o jeito que eles olham pra mim, eu me sinto tão… Tão sozinho. - Stan estava rindo agora, enquanto chacoalhava a cabeça e olhava para cima, mas Christophe nunca viu um par de olhos tão triste antes. - E eu achei que talvez você fosse a única pessoa nesse lugar que conseguisse entender isso. Eu não sou hipócrita, eu não vim sugerir que nós sejamos companhia um pro outro, mas talvez… Talvez fosse menos pior se nós ficássemos sozinhos juntos.

-Você já comeu?

Stan piscou algumas vezes. Seu cérebro estava tão imerso em tentar dizer a coisa certa que não havia se preparado para uma resposta. Certamente, não para essa.

-Como?

-O Pete trouxe esse… - Christophe olhou para trás de relance, desencostando-se da porta e respirando fundo. - Puta merda, eu nem sei o que é, acho que tacos. Eu não abri o pote. Eles ficam me trazendo comida, é um inferno.

Stan não fazia ideia do que ele deveria responder para isso. Então continuou ali, de pé, desconfortável e nervoso. Eventualmente, Christophe entendeu isso.

-Você quer? - Perguntou.

-Ah. Claro, eu acho.

Ele não queria realmente comer, ainda mais nessas condições, mas já havia convivido com o Toupeira o suficiente para entender que aquilo era um convite para entrar, disfarçado em um objetivo específico que não importava de verdade.

Stan nunca havia entrado no apartamento do Toupeira antes. Era um espaço muito maior do que os quartos normais, com uma sala de verdade e portas que levavam a outros cômodos. As paredes eram de um amarelo claro, uma tintura descascada pelo tempo. Era tão bagunçado quanto Stan imaginou que seria, uma infinidade de coisas espalhadas sobre a pequena e quadrada mesa de jantar, roupas jogadas sobre o armário que poderiam estar limpas ou sujas, um chão que não era varrido há semanas. Havia uma pequena cozinha, um pequeno quarto, um pequeno banheiro. A luz do quarto estava acesa e a porta aberta, mas Stan só podia enxergar um pedaço da cama de onde estava. Christophe foi para a cozinha por um momento. Ao retornar, com uma garrafa de uísque e um pote verde, sentou-se no sofá vermelho e empurrou todas as coisas sobre a mesinha de centro usando seu pé, abrindo espaço para apoiar o pote e a garrafa, não dando importância às coisas que caíram no chão.

Ele demorou para encontrar o isqueiro perdido no sofá. Acendeu um cigarro casualmente, e foi então que Stan percebeu que estava parado de pé feito um idiota que não sabe o que fazer.

No fim das contas, não eram tacos. Eram burritos recheados com guacamole, metade com carne, metade sem. Stan não pensou que seria capaz de comer, não pensou que seria capaz de se sentar e relaxar os ombros, mas tudo isso acabou acontecendo no fim das contas. Eles não se obrigaram a conversar no início. Conforme os minutos se passaram, Stan considerava o fato de que nunca havia passado tanto tempo assim sozinho com Christophe antes. Observava-o sem encarar demais, a forma com que ele devorava o burrito sem pudor e limpava o excesso de molho com a própria mão, depois bebia uísque com a mão suja sem nem ter engolido direito. Algo a respeito dele era desconfortável, sempre foi, mas Stan nunca quis pensar sobre ele por tempo o bastante para descobrir o que era. Agora, sentia-se quase obrigado a isso. Porque – e você pode não entender quando eu digo isso – havia conforto em estar perto de Christophe. De certa forma, era como estar perto de Kyle novamente.

Kyle amava aquele homem e sempre foi impossível para Stan entender porquê. E isso não importava mais. Os porquês, as razões, os motivos, isso não importava mais.

Stan se sentou no chão, as costas apoiadas na mesinha de centro, e comeu um burrito de guacamole. Permitiu-se existir por alguns momentos em um universo alternativo em que Christophe DeLorne o fazia se sentir melhor apenas por estar ali. E vice versa.

-O que o Craig disse? - Perguntou depois de quase dez minutos em silêncio. - Quando você… Ele disse alguma coisa? Disse por quê?

Christophe chupava o molho vermelho do próprio polegar quando foi surpreendido pela voz fraca e melancólica de Stan. Tinha os dois pés apoiados na beirada da mesa, as pernas abertas, a garrafa acomodada ao seu lado no sofá. Pensou um pouco antes de dar uma resposta.

-Eu posso te dizer porquê. Não importa o que ele disse. Tucker fez o que fez porque é um cagão de merda que só tinha lealdade a si mesmo.

-E ao Clyde. - Stan murmurou, apoiando o braço no sofá.

Christophe soltou um riso baixo, erguendo as sobrancelhas, gesto que disse o bastante sobre a ironia daquela afirmação. Bebeu um gole e ofereceu a garrafa a Stan, mas ele recusou.

-Eu não chamaria aquilo de lealdade.

Durante algum tempo, Stan não soube o que responder. Também não sentiu vontade. Apertou o dorso do nariz entre os dedos para aliviar a dor de cabeça que começava a se formar. Foi isso que fez com que ele mudasse de ideia, esticando a mão livre para alcançar a garrafa – já estava no fim, três ou quatro dedos de uísque – e entornar um gole demorado. Talvez isso piorasse a dor. Talvez não. Christophe bateu as cinzas do cigarro no cinzeiro que apoiava em sua coxa, fitando Stan sem esperar por uma resposta.

-Eu realmente… - Stan fechou os olhos. - Realmente esperava que não fosse um dos nossos.

O Toupeira assentiu. Ele também esperava.

-Não faz sentido. - Ele prosseguiu, mantendo a garrafa próxima aos lábios, um cotovelo apoiado na mesinha, os olhos entreabertos sem olhar para coisa alguma.

-Não?

-O que isso quer dizer?

-Te surpreende tanto assim, mesmo? Porque a mim, não.

-Claro que não. Não foi você que cresceu com ele. Você não jogou bola com ele, você não fez bonecos de neve com ele, é claro que não te surpreende.

-Calma, Marsh. Eu não tô dizendo que você deveria saber. Ninguém nunca espera por uma merda dessas.

-O que ele disse? Ahn? O que valia o preço da vida do Kyle e do Gregory pra ele? Quando você olhou na cara dele, o que ele disse?

Christophe não queria responder. Não queria repetir aquilo em voz alta, mas acima de tudo, não queria que Stan precisasse viver com as palavras de Craig Tucker também. Porque era diferente para ele. Porque ele havia jogado bola com um traidor, construído bonecos de neve com um traidor, chamado-o de amigo.

-Ele queria uma saída. - Respondeu da forma mais vaga que pôde.

-Uma saída.

-É. Ele achou que podia montar num unicórnio com o Clyde e cavalgar em direção ao horizonte, onde os rios são de chocolate e chove uísque todo dia. Sei lá que merda ele pensou, Stan, ele tava fora de si. Ninguém fala coisa com coisa na hora da morte.

A menção do nome de Clyde cortou qualquer chance de discussão. Toda vez que Stan se lembrava dele, o que parecia ser o tempo todo, sentia-se em carne viva. Seu estômago se revirava. Tentava se convencer de que Clyde já estava morto, de que aquilo não durou muito tempo, de que ele já estava livre. Mas uma pequena voz no fundo de seu cérebro o convencia de que isso não era verdade. Deus. Clyde e Craig simplesmente desapareceram. Em um momento eles estavam ali, e no outro…

Mas não era tão diferente assim com Kyle e Gregory.

-Você acha que vai funcionar? - Stan perguntou de repente. - Acha que… Que eles voltam?

-Tenho que achar.

Stan bebeu mais um gole de uísque e devolveu a garrafa a Christophe, enxergando em seu rosto o quanto ele precisava disso também. Ali, nasceu uma empatia que nenhum dos dois esperava sentir.

 

No dia 26 de agosto, a resposta finalmente veio.

Curta e simples, em forma de pronunciamento extraordinário. A televisão da sala de jogos ficava ligada o dia inteiro, inclusive durante as madrugadas, com revezamento de turnos para acompanhar as notícias. Em épocas como aquela, havia colchões no chão entre os sofás para os turnos da noite, mas ninguém chegava a dormir. Entre os dias 23 e 26, Christophe não deixava a sala para praticamente nada. Ali comia, ali cochilava, ali limpava suas armas.

O homem que fez o pronunciamento tinha um metro e meio de altura. Era careca, redondo e usava óculos de haste preta e grossa que deslizava pelo seu nariz batatudo. Não farei interrupções ao lhe contar o que foi dito, então deixo que imagine por contra própria a maneira nervosa com que ele umedecia os lábios e mexia nos papeis em suas mãos durante sua fala. O nome “Walter Kennedy – Secretário da Defesa”. O discurso foi o seguinte:

“Boa noite. É com muito pesar que eu faço esse pronunciamento ao povo americano, pois não trago boas notícias. No dia 23 de agosto, recebemos uma transmissão de cunho perturbador envolvendo nosso Embaixador da Inglaterra, Maxwell Handerson, que foi capturado por uma organização terrorista que se autointitula como Monarcas. Estou certo de que esse nome não lhes é novidade. Através da gravação, nos foi apresentada uma proposta. Reitero que o povo americano não deve se deixar intimidar por tais ameaças, e não consideramos correto negociar com aqueles que se utilizam de táticas de terror para atingir seus fins. Mas… Presando o bem-estar do Embaixador, bem como nossas relações diplomáticas com a Inglaterra, estamos dispostos a fazer o possível para trazê-lo com segurança de volta aos braços de sua família que sofre muito nesse momento difícil. Por bem, eu, como Secretário da Defesa, priorizando sempre a decisão que beneficiará o maior número de pessoas, respondo às exigências apresentadas em vídeo: libertaremos um dos prisioneiros políticos exigidos em troca da libertação imediata de Maxwell Handerson em plena segurança. Aguardamos o retorno dos responsáveis pelo ato, para que possamos tomar as medidas adequadas. E garanto, mais uma vez, ao povo americano: estamos lidando com a situação da melhor maneira possível para garantir que nenhum cidadão americano precise ter medo de andar pelas ruas em liberdade. Tais atos não passarão em branco. Em momentos de guerra, devemos nos fortalecer uns nos outros e olhar por nossa Grande Nação.”

Ninguém fez comentários durante o pronunciamento. Assim que a tela voltou à sua cor azul usual, Michael e Christophe trocaram um olhar demorado que não demandava palavras. Como se tivessem muita certeza do que precisava ser feito. Mas Stan, logo atrás de Christophe, não tinha certeza de nada. Alternou o olhar entre os dois, esperando que alguém explicasse. De repente, Christophe começou a andar em direção à porta de vidro, em direção ao quintal. Stan o seguiu.

-O que a gente faz agora? - Perguntou, o tom revelando receio da resposta.

Christophe bufou, bufou porque sabia que a pergunta resultaria em uma discussão que não estava disposto a ter no momento. Tirou o maço amassado do bolso da calça, mas ao apertá-lo, sentiu que estava vazio. Porque ele não estava na merda o suficiente, é claro. Parou de andar quando já havia passado da porta, pisando no concreto do pátio.

-O que dissemos que faríamos. Cartman vai cuidar disso essa noite.

-”Cuidar” do quê?!

-Eles estão nos testando, Stan. - Michael interveio. Stan nem havia percebido quando ele e Henrietta se aproximaram. Porra, como eles eram silenciosos. Como se tivessem o poder de teletransporte ou alguma porcaria do gênero. - Querem ganhar tempo. Ver se conseguem acalmar os nervos entregando um só.

-Eles sabem que nós não vamos aceitar. - Henrietta continuou, entregando um dos seus cigarros ao Toupeira. Stan percebeu que a mão dele tremia. - O que eles querem é mantê-los pelo máximo de tempo possível. Sabem que vão ter que entregá-los uma hora ou outra, ou eles se tornariam mártires. É o que já está acontecendo. Mas se nenhum dos dois abriu a boca até agora…

-E nós não estaríamos aqui se eles tivessem. - Michael disse.

Era curioso para Stan como eles complementavam as falas um do outro no mesmo tom indiferente, com tanta naturalidade que nem se davam conta. Falavam no mesmo registro apático, com certo desprezo pelo mundo.

-Agora… - O rosto dela mudou de repente, quase esboçando aflição, ou algo parecido com isso. Como se uma lembrança a atingisse bem na cabeça, mas Henrietta se recuperou depressa. Como sempre fazia. - É agora que nós temos que ter pressa. Quando eles recebem a exigência de soltura, caem com tudo em cima de você pra extrair qualquer informação antes de te soltar. Os últimos dias, cara… É uma merda. Nós temos que estar prontos, porque talvez eles quebrem.

A respiração de Stan era irregular, pesada. Ele apertava os olhos, sentindo um calor crescer por dentro, um ardor que queimava seus órgãos. Começou a suar. Não sabia se aquelas afirmações vagas eram propositais ou se eles nem se davam conta da maneira com que se comunicavam. Havia coisas que eles não queriam dizer em voz alta, nenhum deles. E Stan odiava isso.

-Se nós enviarmos um dedo do Embaixador, eles vão nos levar a sério? - Perguntou, tentando manter a voz sob controle.

-É o que se espera. - O Toupeira resmungou baixo, fumando o cigarro como se sua vida dependesse disso. De certa forma, dependia.


 

Levaram três dedos, na verdade. Dois da mão esquerda, um da mão direita. Dois arrancados por Cartman, um por Christophe. Deixaram que o homem escolhesse quais dedos queria perder, o que parecia apenas uma brincadeira cruel aos olhos de Stan, mas era uma pergunta honesta e prática para Christophe. Durante as semanas seguintes, Stan ainda teve pesadelos com o Toupeira segurando a mão do velho (que gritava, gritava muito), murmurando algo em francês antes de descer o machadinho com força, produzindo um som tenebroso de carne e ossos sendo dilacerados. “Eu sinto muito”, foi o que ele disse, mas ninguém naquela sala entendeu isso. Ele decepou o dedo com tanta facilidade, tanto controle, quase havia uma elegância grosseira a seu respeito. A sua regata branca era manchada por sangue velho e sangue novo. Ele suava muito. Não havia prazer em seu rosto. Era diferente de Cartman, que se encaixava tão confortavelmente na função de carrasco.

Um dedo por dia. No terceiro, entraram em contato com o Ministério da Defesa por uma linha irrastreável e um modulador de voz.

-”Nós vamos colaborar, não há motivo para barbárie!” - Michael imitava a voz do Ministro enquanto cortava sua batata no jantar. - “Faremos o que nos for pedido, por favor!” Cagão do caralho. Fala grande na TV, mas no privado, se borra todo e oferece até pra lamber o sapato da gente.

-Com três dedinhos! - Henrietta ria com a boca cheia de milho, socando a mesa com força o suficiente para tremerem os copos.

Havia um ar de celebração naquela janta em especial, uma sensação de vitória, mas era como enxergar a superfície quando se está afundando: Stan só voltaria a respirar novamente quando chegasse lá. Quando tocasse Kyle novamente. Ainda parecia surreal, um sonho vago e distante. Ele tentava desesperadamente se lembrar da voz de Kyle todos os dias. Seu maior medo era esquecer do seu rosto. Isso, sim, significaria a morte.

A mão carinhosa de Kenny tocou sua nuca.

-Tamo quase lá. - Ele disse a Stan com um sorriso triste. Era uma fonte inesgotável de esperança, Kenny McCormick, o que é incompreensível ao se considerar quantos horrores ele já passou em suas inúmeras mortes, lembrando-se detalhadamente de cada uma delas. Essa esperança podia ser agressiva para Stan às vezes. Mas se obrigou a tentar sorrir de volta, pois era Kenny.


 

Duas semanas de negociações se passaram antes de conseguirem extrair uma data para a troca. A maior dificuldade, somada aos meios precários de comunicação e à prioridade de não serem encontrados, era a desconfiança. Primeiro, o governo exigiu uma prova de vida do Embaixador, cuja resposta foi um vídeo de Maxwell imundo e aos prantos, segurando um jornal do dia 04 de setembro. Depois, começaram a insistir que ele fosse libertado antes dos prisioneiros, e essa foi a parte da negociação que levou mais tempo, até que Trent fechou o diálogo no dia 13 de setembro com a ameaça de arrancar a orelha do Embaixador se as coisas não funcionassem à maneira dos Monarcas.

-E teu filho vai ser o próximo, desgraçado. - Disse ao telefone. Stan ouviu com seus próprios ouvidos.

Por mais brusco que tenha sido, o fruto dessa conversa foi a data: 03 de outubro, sob o pretexto de acertos jurídicos. Não havia nada legal sobre o que estavam fazendo, mas o Ministro garantiu que, se houvesse uma maneira de acelerar o processo de soltura, ele o teria feito. Ao ouvir a data, Christophe se agachou no chão como um animal abatido. Mais um mês. Quase mais um mês que eles passariam lá dentro.

-Toupeira. - Standish disse, mantendo-se afastado dele, com os braços cruzados, apoiado contra a mesa. - Nós não podemos forçar mais a nossa sorte. Se eles desistirem, nós vamos levar meses para planejar outro sequestro. Temos uma data, isso é tudo que importa.

Christophe não respondeu. Continuou na mesma posição por quase meia hora. E os que se importavam com ele sabiam exatamente quando deixá-lo em paz. Porque quando ele estivesse pronto, se ergueria por si mesmo, mais forte do que antes, e faria o que tinha que ser feito. Era assim que ele funcionava.


Talvez você já esteja exausto. Todos eles estavam também. Mas estamos nos aproximando do fim, que não é realmente um fim. Não é o fim de coisa nenhuma. Você sabe que a dor e o medo e a raiva não terminam aqui. Ao final da narrativa desse capítulo, você verá tudo isso no rosto de Kyle Broflovski. Olhemos, então, para a noite do dia primeiro de outubro. O frio já começava a se instalar novamente. Christophe vestia um moletom preto com capuz, segurando a mochila aberta na qual guardava tudo o que pudesse ser necessário para a viagem: uma garrafa d’água, o revólver, uma muda de roupa, cigarros, isqueiro. O que mais? Lembrou-se de comida, alguma coisa seca, talvez nozes. Jogou a mochila sobre o sofá e continuou parado no meio da sala, uma mão no quadril e a outra na boca, roendo a unha do dedão enquanto pensava. A porta estava escancarada, pois em poucos minutos ele precisaria sair. E os sapatos, onde estavam? Ele se percebeu descalço. Começou a procurar pelo chão da sala, e enquanto o fazia, lembrou-se que também faltava o canivete. Havia duas coisas para encontrar. Ótimo.

Estava tão distraído pela meta e pela pressa de realizá-la que nem se deu conta da presença parada na porta. Sem entrar nem sair. Apenas… Ali, parado. Christophe levou quase um minuto para percebê-lo. Olhou-o de relance, sem desviar o foco da busca; encontrou o canivete caído no vão do estofado e o guardou no bolso lateral da mochila. Esperou que Stan dissesse algo, mas sem realmente parar de se mover. Precisava encontrar a merda dos sapatos.

Mas Stan não disse nada.

Se Christophe o tivesse olhado, como faria em alguns segundos, teria percebido antes o motivo do silêncio. Mas, em vez de olhá-lo, Christophe perguntou distraidamente:

-O que você quer?

E apenas com o silêncio que veio em seguida, Christophe realmente levantou os olhos e encarou Stan Marsh. E parou de andar, franzindo as sobrancelhas grossas diante da imagem. Stan vestia azul claro, se esse tipo de coisa te interessa. Tinha os cabelos úmidos como se tivesse acabado de sair do banho. Não chorava, mas parecia assustado. Como uma criança. E segurava um casaco azul marinho como se este fosse seu urso de pelúcia, seu conforto. Seus olhos pareciam imensos, um oceano atormentado. Era como… Como se ele estivesse do avesso, sangrando na porta de Christophe. Um cachorro perdido procurando sua casa.

-Eu… - Stan começou a falar quando notou que era observado. - Eu quero levar algo pro Kyle vestir, mas eu não sei… Eu não sei qual… Eu não… - Sua voz engasgou por um momento. Parecia tanto que ele começaria a chorar, mas as lágrimas não vieram. - Eu sei o que ele mais vestia, o que ele mais gostava de usar, mas eu não sei se é isso que eu devo…

-Marsh. - A voz grosseira chamou, vestida de um tom estranhamente suave. Stan ergueu os olhos bem abertos para encará-lo, olhos cheios de medo. Christophe fez um sinal com a cabeça antes de prosseguir. - Você está bem?

-Sim. Sim, estou, eu só preciso… - Ele apertava o casaco com força entre as mãos, olhando-o como se fosse algo tão precioso. Inestimável. Raro. - Eu preciso decidir isso. Eu pensei que ele fosse querer vestir algo… Sabe, dele, depois de tanto tempo. Mas eu não quero escolher a coisa errada. Eu não quero levar esse daqui pra depois ele pensar por que eu não levei o casaco branco, sabe, eu não quero aborrecê-lo.

Por um tempo, Christophe não soube o que dizer. Isso era muito claro em sua expressão genuinamente confusa. Stan olhava para ele como se esperasse por uma resposta simples e objetiva, uma criança querendo instruções de um adulto, e o Toupeira não fazia a menor ideia do que fazer com isso. Não tinha nada a oferecer. A única coisa em que conseguia pensar era que nada disso teria a mínima importância para Kyle. Aquelas roupas não caberiam mais nele de qualquer forma, talvez em um sentido físico, talvez metafórico. Elas pertenceram a alguém que não existia mais. Era esse pensamento que deixava os olhos do Toupeira tão tristes. Deu-se conta, então, de que Stan provavelmente sabia disso também. Essa era a sua dor. Esse era o seu medo.

Em seu modo de viver, raramente Christophe DeLorne falava com cuidado. Não era falta de compaixão, ele apenas não sabia como. O que disse em seguida foi uma das coisas mais cuidadosas que diria em toda a sua vida:

-Você vai saber escolher isso muito melhor do que eu.

-Você vai levar algo pro Gregory?

Isso o pegou de surpresa. Ele encolheu os ombros.

-Não pensei nisso.

Ele não havia pisado no quarto de Gregory desde que eles haviam sido levados. Henrietta foi a única que pisou lá para limpar tudo o que havia de alimento, garantindo que nada estragasse. Fechou a porta atrás de si e ninguém mais a abriu, o espaço permanecendo exatamente como Gregory o havia deixado. Um museu intacto. A ideia de pisar lá dentro fazia Christophe querer vomitar, e Deus, ele não tinha tempo para vomitar. Pediria a Henrietta que pegasse qualquer coisa no armário.

-Ah. - Stan respondeu, soando decepcionado. - Você acha que a gente não deve levar nada?

-Eu não sei, Stan! Leva a porra que você quiser! - Vomitou as palavras de repente, socando as coisas mais fundo na mochila porque precisava fazer algo com as mãos, largando-a de repente contra o sofá e cobrindo os olhos. Sentiu-se um babaca de imediato, porque a presença de Stan e as coisas que ele dizia eram dolorosas. Christophe fechou os olhos e bufou para retomar o controle, sentindo o silêncio esmagar seus ossos. Abriu a boca com a intenção de se desculpar, mas em vez disso, o que saiu foi: - Merda, cadê meus sapatos?

-Você tá com medo também. - Stan murmurou com doçura, parecendo mais são do que antes. - Desculpa.

Christophe encarou a parede enquanto tentava respirar. A tinta estava descascada, revelando o reboco por baixo. Ele se concentrou nisso durante aqueles longos segundos, porque as coisas materiais sempre o ajudavam a retomar as rédeas, a voltar ao centro, a não perder o controle. Segurava a alça da mochila sem perceber. Fechou os olhos e abaixou um pouco a cabeça, sabendo que quando olhasse para a porta novamente, Stan não estaria lá. Mas para sua surpresa, antes de ir embora, Stan ainda disse:

-Eu te vejo no carro.

Era o seu modo de dizer que estava tudo bem. Embora nada estivesse bem.

Christophe assentiu com a cabeça.


 

Seria uma viagem de três dias. Não fariam paradas. Revezariam turnos no volante para que os outros pudessem dormir, embora ninguém fosse realmente conseguir pegar no sono de verdade. Choveria boa parte do caminho, embora eles não soubessem disso. Christophe, Stan, Damien e Standish. Christophe e Stan, porque lhes era direito. Standish, porque acompanhava todas as viagens para resgatar todas as suas crianças e não tinha uma ficha criminosa, não era um rosto procurado. Damien, porque precisariam de um médico. Sempre precisavam de um médico. Iriam de carro, voltariam de avião com Kyle e Gregory através de um aeroporto clandestino, com exceção de Standish, que faria a viagem de volta com o carro.

Creio que isso seja tudo o que você precisa saber.


 

Agora, mudaremos a perspectiva.


 

03 de outubro de 3645

(E faço questão de marcar a data para esse momento)


 

Os pés descalços pisavam na pedra do chão. Estava úmido, ele podia sentir sob os calcanhares, sabe-se lá do quê. Não importava. Tudo estava sempre úmido naquele lugar. Limo, mijo, água, era tudo a mesma coisa. Suas pernas eram muito mais finas do que aquelas que o carregavam através da floresta escura para fugir dos sapadores, ou através da multidão para fugir dos sapadores, ou através do museu para fugir dos sapadores. Ele não fugia de nada há muito tempo. Não corria. Mal andava. Não sabia dizer até que ponto carregava o próprio peso, ou talvez quem o sustentasse fossem os homens de branco que o seguravam pelos braços marcados por hematomas, como sempre estavam. Sempre estiveram. Sempre estariam. Vagamente, ele podia reconhecer que aquele caminho não era o usual. Não era o caminho da sala de tortura. Não era o caminho do banheiro. Não era o caminho da Caixa. Mas ele não estava mais assustado pelo que poderia encontrar no fim daquele corredor. Nada mais podia assustá-lo. Nada mais podia tocá-lo. Ele não sentia nada.

Olhava suas próprias mãos cobertas de sangue seco, os pulsos finos com feridas abertas pelas algemas que já eram tão familiares. Era isso que enxergava: as próprias mãos, as próprias pernas, a roupa que um dia foi branca, mas a cor era irreconhecível sob aquela camada de sujeira escura. Piscou algumas vezes. Levantar a cabeça era tão difícil, especialmente porque não havia razão para fazê-lo.

E os sons das ondas eram sempre presentes. Como a batida do seu coração, como os gritos dos prisioneiros. Isso era estável. Podia se contar com essas coisas, elas estariam ali todos os dias, sempre presentes, até que não estivessem mais. Kyle mal podia esperar para que esse dia chegasse.

Algo, entretanto, chamou sua atenção. Deu um pouco de vida ao seu rosto apático. Foi a claridade. Sim, a claridade. Ela vinha do fim do corredor, invadindo o corredor escuro, pintando as paredes e o chão e o teto, deixando tudo perfeitamente visível. Mas não para ele. Por mais distante que a luz estivesse, Kyle apertou os olhos para se proteger, pois a claridade era algo que não fazia mais parte de sua vida. Seu corpo não sabia mais como lidar com ela. Levou alguns segundos para perceber que aquilo… Aquilo era luz natural do sol. Havia se esquecido de como eram os raios. Seu coração começou a palpitar. Andavam em direção à luz. Aquilo não fazia sentido nenhum.

Deixe-me dizer, não fazia sol naquele dia. Não muito. O céu era coberto pelas nuvens brancas, pela camada acinzentada de poluição que era menos intensa naquela ilha isolada, mas não estavam tão distantes assim da costa de Seatle. Alguns raios persistentes penetravam entre a grossa camada como um facho divino de luz, clareando tudo o que existia. Mas para Kyle, que viveu cercado de paredes grossas de pedra durante tantos meses, aquela luz era cegante.

Sentiu as pernas começando a reagir. Os pés querendo se colocar um em frente ao outro para levar o próprio corpo, lento e instável, até alcançar aquele portal de pedra tão alto e imponente que o transportaria para um outro mundo. Talvez ele pudesse se lançar ao mar. Bater a cabeça nas pedras. Ser carregado pelas ondas. Talvez.

Ao chegar a porta, tinha os olhos fechados e o corpo praticamente hiperventilava, mas a expressão em seu rosto era tão tranquila. Porque ele sentia o calor do sol tocando sua pele. Sentia o vento acariciando seu rosto, seu pescoço, suas mãos. Sentia o cheiro do mar. A textura do sal marinho em contato com seu corpo. Sentia tudo. Era sensível a tudo, como se não tivesse pele para revestir sua carne, como se não houvesse mais nada entre ele e o mundo. A primeira coisa que fez, tão lento que quase era imperceptível, foi levantar a cabeça. Apontar o queixo para cima, abrindo os olhos devagar. Podia ver o céu. Nunca mais pensou que veria o céu. As nuvens. Deus, o som das ondas quebrando nas pedras era quase ensurdecedor agora.

O mar parecia infinito. Tinha uma cor entre azul e verde, uma cor raivosa, assim como as ondas que estouravam contra as paredes daquela construção gigantesca que era a Prisão. Como uma fortaleza que guardava os mortos-vivos. Sua casa. Kyle quis olhar para ela também. Viu ruínas cercando a construção, muros quebrados e um farol ao longe, gaivotas repousando nas pedras da ilha.

E viu Stan.

“Talvez eu esteja morto”, ele pensou. Mas não se sentia morto. “Talvez ele esteja morto e eu consiga vê-lo”, pensou em seguida, e a dor em seu peito foi tão forte que Kyle se convenceu de que isso era apenas um sonho. E em seu sonho, Stan chorava. Queria sorrir, mas não conseguia. Ele estava longe, a uma escadaria de distância. Kyle não se moveu, pois tinha certeza de que ele desapareceria quando chegasse lá. Isso, e o fato de que os homens de branco ainda seguravam seus braços. Mas algo curioso aconteceu. O homem de branco à sua direita se colocou à sua frente e abriu sua algema. Stan – bem, não Stan, a projeção de Stan – deu um passo à frente quando isso aconteceu. Kyle olhou nos olhos do homem de branco que o soltou. Eram castanhos, os olhos dele.

-Vá. - O outro disse.

Vá aonde?

Os pés de Kyle tremiam.

Você já sabe que Stan o esperava no fim da escadaria. E por mais que ele quisesse desesperadamente subir, correr os degraus e tomar Kyle em seus braços, não podia. Não tinha permissão para passar do pequeno portão que havia no fim da escada de pedra, embora ele estivesse aberto. Kyle não se movia. Pelo menos não até receber uma pancada nas costas que o empurrou para frente, caindo e batendo os joelhos nos degraus. Seus cabelos estavam longos o bastante para cair sobre sua testa, mais crespos e imundos do que nunca. Ele olhou Stan através dos fios. Stan assentiu com a cabeça como um encorajamento sutil, os olhos desesperados, o peito carregado de angústia. Porque Deus, o estado de Kyle. Não sei se eu poderia fazer com que você entenda, mesmo que tentasse muito.

Mas contra todas as forças que o puxavam violentamente para trás, Kyle fez seu caminho. Como se o ato de se forçar a descer aquelas escadas, forçar suas pernas e seu coração, como se isso fosse a verdadeira conquista de sua liberdade. Um pé em frente ao outro. Ele ainda sabia andar. Esse era o melhor sonho, o mais real, o mais doloroso.

Somente ao sentir os pés tocando a areia, estando a poucos centímetros de Stan, sentindo seu calor e sua respiração, Kyle entendeu. Não era um sonho. E ele não conseguia sentir alívio por isso. Eu não espero que você entenda de imediato.

O mundo parou de girar. Pássaros colidiram contra vidraças, vulcões eclodiram, crianças nasceram, tudo que existia voltava a ter algum significado porque Stan Marsh pode erguer as mãos e tocar Kyle Broflovski. E ele era real. E ele estava ali. E Stan o envolveu em seus braços com tanto desespero e afinco que poderia ter quebrado aqueles ossos frágeis, mas não foi por isso que Kyle se encolheu como se o toque doesse. Stan levou quase dois segundos para aliviar o aperto, mas não se afastou nenhum centímetro. E Kyle permitiu que assim fosse. Porque Stan não tinha forças para soltá-lo, não agora. Podia respirar de novo. A terra voltara ao seu eixo. Ele descansou a testa contra o ombro imundo de Kyle, uma das mãos sentindo a nuca dele, o outro braço envolto em sua cintura, agora com delicadeza. Kyle sentia as lágrimas dele molhando sua pele, o ombro e o pescoço. Era real. Parecia real. Mas não podia ser.

-Você vai pra casa. - Stan murmurou.

Com o pouco que lhe havia de força nas mãos, Kyle segurou o rosto dele para que Stan o olhasse de perto. E assim ficaram, por sólidos cinco segundos, até que Stan esboçasse um sorriso fraco por ter aquele rosto materializado bem ali, bem à sua frente. Kyle, no entanto, não sorriu. Apenas sentiu a face macia dele em suas mãos sujas. De repente, veio a pergunta:

-O Gregory?

Foi tudo o que conseguiu dizer.

-Ele tá… Ele já tá no barco.

Só então, Kyle percebeu o barco velho pintado de branco que estava logo ali, a poucos metros, esperando para tirá-lo do inferno. Sentiu vontade de rir, porque tudo aquilo parecia uma crueldade do seu cérebro, fazê-lo acreditar em uma saída quando ele acordaria de volta na Caixa em poucos instantes. Mas o riso não veio, porque na entrada do barco velho, de pé, estava Christophe DeLorne. Olhando para ele. Respirando pesado.

Stan o soltou. Colocou a mão sutilmente em suas costas para que ele caminhasse, pronto para segurá-lo se ele caísse. Mas Kyle não cairia. Não, ele andaria com firmeza – e uma lentidão excruciante – na direção do porto seguro. Da saída. De Christophe.

O Toupeira desceu do barco quando Kyle se aproximou. O barco tinha um movimento brusco junto com as ondas do mar.

Diferente de Stan, Christophe não tentou abraçá-lo. Kyle parou à frente dele, olhando cada centímetro para ter certeza de que ele também era real. O mundo continuava parado para eles. Continuava parado quando a mão grosseira de Christophe subiu e, leve, suave, pesada, ansiosa, pousou na bochecha direita de Kyle. O polegar fez carinho sobre a cicatriz dele, descendo pela parte lisa de sua pele.

Kyle fechou os olhos e estremeceu, absorvendo o quão real tudo aquilo era. Queria chorar, queria tanto, mas tudo parecia entalado em sua garganta, em seus olhos, em seu peito. De forma breve, Christophe se inclinou para frente e deixou que sua testa tocasse a dele. Não fechou os olhos. Observava Kyle de perto. Não durou mais do que três segundos. E com uma voz carregada de alívio, repetiu as palavras de Stan, mesmo sem saber:

-Você vai pra casa.



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