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História Liberté - O Retorno


Escrita por: caulaty

Capítulo 52 - O Retorno


04 de outubro de 3645

 

Eles voltaram.

 

Olá. Espero que você ainda não tenha se cansado de mim, porque eu não me cansei de você. Lamento que eu ainda não possa retornar a narrativa desse momento de nossa história para a voz de Kyle, pois se eu o fizesse, você receberia uma contação inconstante e sem sentido, na qual não poderia confiar. E confiança é um elemento importante entre aquele que conta a história e você, que a acompanha. Em vez de gastar meu latim explicando o estado mental de Kyle, permita que eu lhe mostre. Acho mais produtivo, não? Pois bem.

O primeiro momento-chave ocorreu em um quarto escuro, pequeno e abafado de Nova York, às oito e meia da noite. Havia apenas uma vela acesa ao lado da cama, sobre a mesa de cabeceira branca do quarto de Standish, o mais próximo à cozinha e aos banheiros. Foi naquela cama antiga, grande e barulhenta que repousaram o corpo de Gregory. E ele dormia, dormia há praticamente um dia inteiro, dopado durante toda a viagem de Washington a Nova York. Porque foi preciso. Mais sobre isso em breve.

Havia uma banqueta baixa de madeira ao lado da cama onde Christophe estava sentado, praticamente imóvel há tanto tempo que não sentia mais o formigamento incômodo nas pernas.

Na poltrona verde ao lado da porta, rasgada e repleta de manchas, estava o que restara de Kyle Broflovski. A calça marrom limpa tinha a barra dobrada, expondo uma parte de suas canelas finas, revelando um corpo desnutrido. Christophe tentava não olhar demais para ele. Porque era difícil. E assustava. Às vezes, Kyle parecia morto, não por seu aspecto magro ou sua pele cinza, mas especialmente pelo seu modo de olhar. Christophe não queria encará-lo, acima de tudo, porque sabia exatamente o que era ser visto daquela maneira, como um resto de coisa quebrada. Poupou Kyle desse sentimento o quanto pôde.

Você deve estar se perguntando porque Stanley não estava ali, e entenda, foi um inferno tirá-lo desse quarto. Talvez porque Stan não entendesse ainda como cuidado e carinho podem machucar. Não entendia como seus olhos preocupados faziam mal ao Kyle, invasivos e desrespeitosos. Stan passou um bom tempo ali no quarto abafado, encarando Kyle enquanto o mesmo encarava esse farrapo inconsciente de Gregory na cama; desde que chegaram, Kyle não tirou os olhos dele. Stan pediu, implorou que ele comesse e descansasse, mas nenhum protesto recebeu resposta.

A única pessoa que conseguiu tirar Stan dali foi Standish, com seu toque paternal, que entrava e saía de vez em quando apenas para checá-los. Pôs uma mão no ombro de Stan e fez um sinal com a cabeça em direção à porta, sem precisar dizer mais nada.

No corredor, enquanto Stan chorava – de alívio, medo, desespero, angústia, tudo misturado – Standish segurou seu rosto e disse:

-Deixe estar. Gregory é forte. Logo ele acorda e tudo ficará um pouco pior antes de melhorar.

Henrietta também visitava vez ou outra, mas jamais passava da porta, pois sentia que ninguém mais tinha direito de estar dentro daquele quarto, além das duas pessoas mais íntimas na vida de Gregory.

Ah, Gregory. Parecia perfeitamente em paz com seus olhos fechados e a boca reta. Tinha olheiras escuras, profundas, as maçãs do rosto tão protuberantes pela magreza de um corpo mal alimentado durante meses. Parecia doente, sim, mas não morto. Não, havia vida em sua forma inconsciente, havia força, mesmo em seu estado mais frágil.

Ele começou a acordar.

Poucas vezes em sua vida, Gregory esteve realmente desorientado. Esse era, no entanto, um corpo imerso em dor e exaustão há tempo suficiente para sentir que essa era sua natureza, seu estado constante e eterno. Ao acordar, fraco e com uma dor de cabeça tão forte que afetava seus órgãos internos, deparou-se com o rosto cansado de Christophe DeLorne e pensou que estivesse morto. Mas sorriu. Sim, sorriu. Porque estava em paz (efeito propiciado, talvez, pelas substâncias correndo em suas veias), como se flutuasse. Coitado. Morrer não é assim, não é leve e fácil e bonito. Não é como viver.

Mas a dor logo veio. E Kyle entrou em seu campo de visão, levantando-se imediatamente, fazendo com que Gregory desejasse estar vivo. Do fundo do seu coração. Apertou os olhos e grunhiu. Deus, como estava pálido, o rosto cheio de feridas, mas limpo. Tentou falar, mas não conseguiu. A boca era pesada, a língua mole demais, os pulmões não pareciam coletar ar o bastante para emitir sons. Piscou algumas vezes para clarear a visão borrada. Christophe e Kyle, um atrás do outro, eram banhados pela luz laranja da vela. Agora, o Toupeira estava em pé.

-Você está vivo. - Ele disse, como se pudesse ler os pensamentos de Gregory. Inclinou-se para chegar mais perto, tocando seu braço. Foi aí que Gregory soube que algo estava errado, fora de lugar. Pela maneira com que os olhos tristes do Toupeira o encaravam. O sorriso morreu. Logo atrás, Kyle esfregava os olhos úmidos, parecendo tão terrivelmente perdido que Gregory sentiu vontade de se levantar e abraçá-lo. Mas tal ideia era uma estupidez. Mover os dedos já demandava mais força do que ele teria disponível.

Ninguém precisou contar, ele sentiu. O fantasma da perna direita continuava ali, Gregory podia sentir, mas quando tentou movê-la, percebeu a ausência do toque do colchão sob seu peso. Usou todo resquício de força para erguer a cabeça a um ou dois centímetros do travesseiro, tateando o lençol branco pela coxa até sentir a queda, o buraco, o vazio. Latejava. Gregory, no entanto, demorou a reagir. A sensação ficou suspensa no ar por alguns instantes. Sugou o ar pela boca em um gemido apertado, profundo, deitando a cabeça para trás por incapacidade de suportar o peso. Contorceu os músculos em uma careta que em nada adiantou para segurar o choro que queimava, ardia, machucava os olhos. Gregory mal sabia como chorar.

Mas Christophe apertou seu braço com tanta força que quase trancou a circulação, forçando-o a abrir os olhos. Chegou com o rosto perto o bastante para se tornar a única coisa em que Gregory poderia se focar.

-Para com isso. - Disse bruscamente, de forma quase raivosa, entredentes. Gregory arregalou os olhos em choque, não pelas palavras de Christophe, mas pela intensidade da situação. As pupilas vagavam perdidas. - Você está vivo. Entendeu? E você não precisa dela. Você tem tudo de que precisa. - Christophe soltou o braço para segurar o rosto dele, as bochechas de Gregory úmidas pelas lágrimas. - A gente não faz isso. Você não vai dar a esses merdas o gosto de te fazer chorar. Você não perdeu nada importante.

E essa foi a gota d’água.

Kyle arrancou Christophe de cima do corpo frágil de Gregory, lançando-o contra a parede. Derrubaram a banqueta no processo, emitindo um estrondo cruel. Um corpo definhado como o de Kyle não parecia ter tanta força assim, mas algo dentro dele era muito mais forte agora, independente de sua deterioração física. Assustou o Toupeira, sim, mas não por intimidação. O medo nos olhos de Christophe tinha a ver com Kyle parecer ser feito de vidro rachado, que poderia estourar em mil pedacinhos a qualquer momento. Era exatamente aquele olhar que Christophe tanto evitava, mas não foi possível, não enquanto Kyle o segurava pela gola da camisa com tanta força, gritando:

-Ele perdeu tudo! Tudo! Ou você é retardado demais pra entender que arrancaram a perna dele?! Você não vai tirar o direito dele de chorar, que tipo de monstro é você?!

-Você vai se machucar. - Christophe disse com uma voz que usava tão raramente, uma voz que implorava, um olhar terrivelmente preocupado, com receio de tocá-lo de volta. Suas mãos ficaram suspensas no ar, ele não procurou se defender.

-Solta ele, Kyle. - Gregory murmurou, soando calmo e sóbrio. Quando Kyle seguiu sua voz com o rosto, ainda sem soltar a gola de Christophe, deparou-se com um Gregory pálido e são, sob controle, que já não chorava mais. Tinha o rosto e o nariz úmidos, mas seus olhos azuis estavam secos como se nunca tivessem produzido lágrimas. Tão, tão azuis, tão fortes. Recompostos. Não se parecia com alguém que acabara de descobrir que perdeu uma perna.

Kyle afrouxou o toque em torno do tecido, retirando as mãos de Christophe devagar. Deu um passo confuso para trás, mínimo, porém significativo. O Toupeira alternava o olhar ansiosamente entre os dois, como se presenciasse um fenômeno mágico.

-Eu vou chamar o Damien. - Christophe finalmente disse em tom baixo, afastando-se de Kyle com cautela. Deixou o quarto, sentindo que invadia um momento que não lhe dizia respeito. Gregory continuou a encarar a porta aberta em silêncio por um bom tempo. Depois, olhou Kyle com olhos pesados por um afeto triste.

Kyle ainda encarava a parede. Tinha os olhos fechados, a mão com bandagens cobrindo a boca, segurando a respiração. Mesmo naquela época, vê-lo sofrer já era impossível ao coração de Gregory. Esse momento de silêncio e a maneira com que Gregory o observava, a força que Kyle fazia para não desmoronar, tudo isso diz tanto sobre como esses dois funcionam. Você já enxerga melhor as semelhanças entre esses dois meninos e os homens que eles se tornarão no futuro? Na relação que se fortalece entre eles?

-Ele tem razão, sabe? - Gregory disse, a voz fraca e arrastada.

-Não se atreva.

Gregory franziu as sobrancelhas. Kyle o olhou finalmente, arrastando os pés em direção à cama.

-Não me olhe desse jeito. - Prosseguiu. - Não use esse tom paternal pra me fazer entender as coisas, não tente ser forte, não tente cuidar de mim. Não agora.

-Eu estou vivo. - Gregory respondeu gentilmente, erguendo a mão para tocar a de Kyle. Os dedos se entrelaçaram. Havia angústia na mão de Kyle, que apertava a de Gregory com força para segurar o peso de um corpo que não conseguia se sustentar. Os cantos dos lábios de Gregory esboçaram um sorriso. - Nós saímos.

Kyle não sorriu. E logo, Gregory também não. Desceu as pupilas pelo braço magro do outro, sabendo que a manga comprida ocultava curativos ensanguentados. A mão pesada de Gregory acariciou a pele de Kyle, movendo apenas o polegar, até que as pálpebras pesaram o suficiente para fechar os olhos que ardiam.

As relações aqui são tão diferentes. Você consegue perceber isso? Longe de mim dizer o que você deve pensar sobre esses acontecimentos, mas veja uma coisa interessante; Christophe disse exatamente o que Gregory precisava ouvir no momento. Pelo menos é assim que eu vejo. Algo que Kyle jamais diria, mas se dissesse, seria recebido de outra forma. Porque Christophe sempre foi a rocha que sabia como manter Gregory inteiro. Não é assim com Kyle, não nessa época. A hesitação de Gregory em se apoiar nele é temporária, pois eventualmente, ele percebe que Kyle, permitindo-se cair, pode ser muito mais forte do que eles.

 

Acho pertinente, no entanto, que voltemos ao dia anterior.

 

03 de outubro de 3645

 

Não me debruçarei sobre todos os detalhes dessa viagem longa e árida, mas acho importante que você esteja presente para um momento em particular. O momento da viagem de barco entre a ilha e a cidade, esse espaço etéreo em que a liberdade ainda não parecia real. A noite começava a cair, pintando o mar de azul e laranja como um quadro Van Gogh, a imensa esfera do sol desaparecendo no horizonte, dando uma cor arroxeada às nuvens. Foi o primeiro momento em que Kyle deixou o interior do barco. Passara o tempo inteiro com Gregory, que permanecia inconsciente e só acordava para sussurrar delírios sobre um castelo e uma rainha. Jamais se esqueceria do momento em que Damien, após analisar a perna estraçalhada que mais parecia um punhado de carne moída, disse:

-Vou ter que cortá-la.

O procedimento se deu dentro do próprio barco. Damien disse que ele não sobreviveria à viagem com aquele resto infeccionado de perna. Talvez a mente de Kyle não fosse plenamente confiável naquele momento, mas ele sempre se lembraria de ver vermes rastejando por entre a carne de Gregory. Por sorte, Damien veio preparado para o pior. Tinha experiência o suficiente em buscar prisioneiros de guerra. Já perdeu muitos durante o caminho por não estar preparado.

Mesmo assim, aquele barco imundo e insalubre parecia o último lugar do mundo em que se deseja se realizar uma cirurgia.

O plano de retorno era que o barco os levasse até o carro em que vieram, e de carro iriam até o aeroporto clandestino, deixando o veículo para os Monarcas de Washington. Essa troca era costumeira, até mesmo uma forma de agradecimento pela proteção exercida e pelo transporte. Os prisioneiros raramente tinham condições de passar por uma viagem de carro até em casa.

Durante todo aquele tempo, Kyle não disse uma palavra. Stan esteve com ele o tempo inteiro, até que Kyle deixou o pequeno quarto insuportavelmente quente onde Damien realizaria a amputação da perna de Gregory, arrastando suas pernas fracas ao lado de fora, onde o vento marítimo soprava com força. Passavam por uma pequena ilha com um farol em ruínas. A luz natural era agressiva aos olhos. Kyle viu Christophe apoiado na cerca do barco. Stan o seguiu até a pequena porta, então ficou imóvel. Kyle caminhou lentamente na direção de Christophe, que levou alguns instantes para perceber sua presença. Ao enxergar aquele rosto, ainda parecia a visão de um sonho, e o Toupeira não pôde evitar o sorriso.

-Porra, como é bom ver o seu rosto. - Disse com honestidade.

-Quem foi? - As palavras saíram secas da boca de Kyle. O vento soprava os seus cachos em frente aos olhos, e ele não fazia menção de afastá-los. A expressão era séria, rígida feito pedra, nenhum afeto em nenhuma nuance. - Quem entregou a gente?

A pergunta pegou o Toupeira de surpresa. Ele esperava tratar de tais assuntos mais tarde, com mais preparo. Separou os lábios, lançando um olhar breve ao mar antes de responder.

-Craig Tucker.

Kyle fechou os olhos. As mãos tocaram a barra de ferro da cerca do barco, apertando-a com força até que os dedos tremessem.

-Merda. - Sussurrou para si mesmo. Durante todos aqueles meses no buraco do inferno, Kyle tinha esperança em seu coração de que o traidor não fosse um dos seus. Bem, pouco importava agora. Ergueu o olhar, procurando a lua que já começava a nascer no céu. E, encarando o sorriso verde no céu, prosseguiu. - Você o matou?

Christophe assentiu com a cabeça, devagar o suficiente para que Kyle tivesse tempo de ver o gesto.

-Que bom. - Voltou a observar o sinuoso espelho de água que refletia a imagem do céu. Gaivotas voavam sobre suas cabeças. Christophe não conseguia tirar os olhos dele. Com hesitação, uma voz fraca e espremida, Kyle disse. - Nós não vamos ver o Clyde de novo, não é?

-Ele… - Christophe pigarreou. Tinha vontade de apenas assentir com a cabeça e permitir que o nome de Clyde Donovan morresse entre eles, mas isso não parecia justo com ninguém. - Ele foi pro Texas. É essa a notícia que nós temos.

Kyle ficou em silêncio durante um sólido minuto. Em seus olhos, estava refletido o mar que refletia o céu. Não havia mágoa, desespero, dor em sua expressão. Era como encarar uma estátua. De repente, ele deu um suspiro.

-Espero que o Craig tenha sofrido bastante. - Foi tudo o que disse pelo resto da viagem inteira.

 

05 a 08 de outubro de 3645

 

Kyle caiu. Caiu na cama e lá ficou, durante quase três dias. Na cama em que dormia antes de ser levado, arrancado de seu leito. Foi como nascer de novo, com todas as dores que nascer envolve e mais algumas. Mas é isso; depois que Gregory acordou são e vivo, Kyle pôde cair. Despencar. Arrastou-se entre os lençóis como um bicho ferido que procura um lugar escuro e isolado para morrer. Aquela cama se tornou um ninho quente, mórbido, e apesar de também ser a cama de Stan, ele não se atreveu a dormir ao lado de Kyle durante esse tempo. A cama era uma incubadora, um lugar de cura que não poderia ser violado por mais ninguém.

Até entrar naquele quarto era difícil. Como uma caverna. Havia um cheiro de coisa doente ali dentro.

 

Após seis horas de sono, Stan o acordou. Tudo o que foi preciso para isso foi um toque leve no ombro de Kyle e ele já estava desperto, recuando bruscamente como se aquele toque o agredisse.

-Sou eu. - Stan sussurrou. - Sou eu…

Kyle, deitado de bruços, ergueu o tronco com o apoio dos cotovelos e esfregou o rosto com uma das mãos. Era muito escuro. Não sabia que horas eram, não conseguia abrir os olhos direito. Foi dura a maneira com que encarou Stan. Não de propósito, era apenas tudo o que ele tinha a oferecer no momento: uma expressão fechada e infeliz.

-Eu trouxe água. - A voz gentil de Stan ecoou no ar, seguida pelo som do copo sendo repousado sobre a mesa de cabeceira. - Estão servindo o jantar. Você não quer comer?

Kyle deitou a cabeça pesada no travesseiro novamente, respirando fundo. Grunhiu.

-Eu posso te trazer algo. Você não tem que ir até lá.

A resposta foi apenas uma negação com a cabeça.

Stan umedeceu os lábios, escondendo a vontade de dizer algo. Fez um carinho no lençol, sem tocar o corpo de Kyle, mas a intenção estava ali.

-Tudo bem. - Disse após uma longa pausa de hesitação. E deixou o quarto, ignorando o aperto em seu peito, entendendo-o como nada mais que uma consequência necessária para respeitar o estado de Kyle.

 

Após mais nove horas de sono, veio Kenny.

Já era de manhã, Kyle percebeu assim que separou as pálpebras e foi violado pela luz alaranjada que invadia através das cortinas brancas, a silhueta de Kenny cobrindo uma parte da janela. Kenny sorriu para ele, os cabelos dourados reluzindo ao sol. Kyle piscou devagar, deixando que as pálpebras finas se fechassem novamente, pois esse era seu único desejo. Sentiu o peso do corpo de Kenny ao se sentar na beirada do colchão.

-Eu trouxe torrada.

-Eu não quero torrada.

-Tudo bem, mas eu trouxe.

Kyle não respondeu. Seus olhos estavam abertos agora, muito abertos, encarando o nada, inchados de tanto dormir. E não era um sono normal, não havia sonhos ali. Ele apagava, simplesmente, desligava como uma máquina. Enquanto dormia, não sentia dor.

Kenny, menos hesitante do que Stan havia sido, esticou a mão livre para tocar os cabelos de Kyle com as pontas dos dedos. Ele não reagiu. Com a outra mão, Kenny segurava um pratinho azul com duas torradas cobertas de manteiga e uma fatia de queijo em cada uma, apoiando-o sobre a coxa.

-Você não sabe como eu fico feliz que você esteja aqui. - Kenny sussurrou. Passou mais alguns segundos apenas deslizando os dedos entre os cachos limpos, caídos e sem vida. Recolheu sua mão com um suspiro profundo, dando uma olhada ao redor do quarto bagunçado. - Tenta comer mais tarde, sim?

Nunca foi o tipo de pessoa a insistir. Nunca forçou ninguém a nada. Deixou o prato sobre a mesa de cabeceira, disputando espaço com o abajur, um cinzeiro e o copo d’água intocado que Stan trouxera antes. Quando Kenny abriu a porta e a luz direta penetrou o quarto, Kyle cobriu a cabeça com o edredom.

 

Após mais dez horas, vieram Henrietta e Michael. Juntos, em par, como lhes era de costume. Faziam uma dupla engraçada, esses dois, pois Henrietta era baixa e redonda, enquanto Michael era esguio e comprido, alto como uma torre. Ambos tinham olheiras escuras, não apenas naquela noite, mas o tempo inteiro. Quando Kyle abriu os olhos, a luz do abajur já estava acesa e maltratava seus olhos; como se ele tivesse se tornado um ser abissal e não soubesse mais conviver com luz. Henrietta cutucou Michael com seu cotovelo, fazendo com que ele esticasse a mão para encontrar o botão que apagava a luz, retornando o quarto a um breu imediato, com exceção da porta aberta que deixava entrar um pouco da claridade das luzes brancas no jardim. Já era noite. Kyle só sabia dizer isso, que era noite. Mas que horas eram, não fazia ideia.

-Ei. - Ela foi a primeira a falar. - Como se sente?

Kyle resmungou baixo, dando as costas para eles. Mas estava tão escuro que realmente não importava em qual direção seu rosto apontava.

-A gente veio ver se você estava respirando. - Michael disse em uma voz muito mais doce do que de costume. Tinha as mãos nos bolsos do casaco preto.

-Eu tô.

-Não vai continuar respirando por muito tempo se não comer algo. - Henrietta disse sem julgamento na voz, apenas constatando um fato. Seus olhos, no entanto, eram cheios de preocupação.

Kyle não respondeu.

-Damien quer dar uma olhada em você. - Michael disse.

-Pra quê? Ele já fez isso.

-Kyle. - Henrietta pôs as mãos no colchão e se inclinou para frente, sem chegar perto demais a ponto de perturbá-lo. - Você pode estar desidratado. Ou ter alguma doença. Ele só quer fazer o trabalho dele.

-Me deixem em paz.

Mesmo no escuro, Henrietta e Michael trocaram um olhar demorado. Talvez alguma comunicação telecinética ocorresse entre eles, porque deixaram o quarto em concordância, a passos lentos. Nenhum deles estava prestes a discutir com uma frase tão clara quanto aquela.

-Chame se precisar de alguma coisa. - Michael disse antes de fechar a porta atrás de si, olhando em direção à cama com as pupilas dilatadas, os olhos brilhando, pesados.

Do lado de fora, você não deve ficar surpreso ao saber que Stan e Christophe esperavam em silêncio. Christophe, apoiado na parede, tinha os braços cruzados e estralava o pescoço casualmente, parecendo tão calmo que era estarrecedor. Stan, no entanto, roía a unha do dedão e batia o pé no chão incessavelmente para liberar a energia acumulada.

-E aí? - Perguntou assim que ouviu a porta se fechar.

-Acho que ele tá com febre. - Michael disse. - Ele tem cheiro de febre.

Mas Henrietta negou com a cabeça.

-O problema dele não é físico. - Afirmou, afastando-se da porta para não ser ouvida por ele. Trocou um olhar severo com o Toupeira. Havia cumplicidade ali, uma linguagem que apenas eles entendiam.

-Dê tempo a ele. - Christophe disse. Não olhou para Stan ao proferir as palavras, mas no fundo, Stan soube que eram dirigidas a ele. - Voltar é foda.

 

Às quatro da tarde do dia seguinte, foi a vez de Pip tentar. Lembra-se de Pip? Aquele menino loirinho, que se veste engraçado? Pois é. Mas não se preocupe, eu não estou prestes a repetir a mesma história cansativa. Você já entendeu o esquema: alguém entra com comida, água ou motivação, fala uma coisa ou duas, Kyle rejeita, a pessoa vai embora. Esse caso foi um pouco diferente. Avançarei, então, para 16h23, quando Pip se encontrava sentado à maca da enfermaria branca, o braço sujo de sopa escaldante que avermelhava a carne, mas pior ainda era o filete de sangue que escorria pelo seu rosto, nascendo da perfuração em sua têmpora esquerda. Ele tremia de forma sutil, tentando fingir que não. Apertava os próprios dedos com uma força descomunal. Damien colocava as luvas de látex e organizava os instrumentos na bandeja metálica. Christophe, de pé em um canto ao lado da estante, coçava sua barba. Estava maior do que de costume.

Stan, suado e ofegante, surgiu na porta e pôs os dois pés para dentro, segurando o batente, tentando recuperar o fôlego. Tentou se acalmar com um suspiro demorado antes de fazer a pergunta:

-O que aconteceu?!

Pip encarava as próprias mãos. Os dedos já ficavam esbranquiçados de tanto que ele os apertava para que não tremessem. Tinha os olhos baixos e avermelhados. O sangue vivo escorria em abundância, uma cor vermelhava que contrastava fortemente com o tom pálido de sua pele. Damien se preparava para dar os pontos.

-Eu… Eu não sei o que fiz. - Pip murmurou sem olhar para Stanley. - Eu não sei o que eu disse de errado.

-Ele está em choque. - Damien constatou, sem deixar claro se fazia referência a Pip ou ao próprio Kyle. Começou a limpar o sangue com um algodão umedecido, utilizando-o para estancar o sangramento. Pip recuou um pouco por instinto, pois o que quer que fosse aquele líquido, ardia.

-Ele… Simplesmente atirou a tigela em você?! - Stan indagou, correndo as mãos pelos cabelos úmidos. Chovia lá fora.

-Eu só queria que ele comesse. - Pip murmurou, contraindo o rosto em uma careta de dor.

E por alguns instantes, nada foi dito. Damien secava o sangue para ter uma visão decente do ferimento aberto. Logo em seguida, o som de uma tesoura cortando a linha preencheu o ambiente. Stan tinha energia demais borbulhando por dentro, não conseguia ficar parado, mas a enfermaria era pequena demais para que ele pudesse colocar para fora tudo o que precisava.

-Ele não podia estar mirando em você. - Disse enfim, esfregando o rosto ansiosamente. - Ele não estava. Certo?!

Christophe soltou um bufo de gargalhada, sem a menor vergonha, pois vergonha não veio com ele. Não tenho palavras para descrever o silêncio constrangedor que se instalou em seguida, enquanto Stan o observava com olhos gigantes, magoados e em choque. Pip, ao contrário, não encarava ninguém e mantinha a cabeça baixa. Damien não parecia – pois não estava – afetado pela densidade do ambiente. Permanecia indiferente, intocável, concentrado em sua função. Tinha os cabelos pretos recém-cortados, as orelhas pontudas aparecendo. Sua presença silenciosa perturbava Stan. Perturbava Pip também.

-Desculpe. - Stan disse em tom incrédulo. - Eu não consigo entender que raios você poderia achar engraçado nesse momento.

-Que você ache mesmo que isso foi um acidente.

-Toupeira. - Stan repreendeu, visivelmente nervoso.

-Ele tem razão. - Pip murmurou de olhos fechados. Estremecia. Mordeu o lábio inferior com força, encolhendo o nariz por um instante. - Ele olhou direto pra mim. - Suas pálpebras se abriram, revelando seus olhos cor de gelo. - Direto pra mim.

Sem abrir a boca, Stan trocou um olhar tenso com Christophe antes de apertar o braço de Pip sem muita força, nada além de um pequeno gesto de apoio, e então sinalizou com a cabeça para que o Toupeira o seguisse até lá fora.

Pararam no corredor iluminado com grandes janelas. A chuva era fina e persistente, pintando uma paisagem cinza de árvores e concreto molhados através do vidro. Com essa claridade natural, a exaustão no rosto de Stan era muito mais evidente. Ele tinha dificuldade de encarar Christophe, dificuldade porque se sentia tão exposto, tão quebrado, diante de um homem que, mesmo nos momentos mais impossíveis, não caía. Stan abraçou o próprio tronco como que para se proteger. Vestia um moletom azul marinho; apertava a manga com força sem perceber.

Sentia tanta, tanta vontade de chorar, mas era como se não houvesse mais lágrimas a oferecer. Respirando fundo, trancou seu olhar no de Christophe, enfrentando algo que tanto temia.

-Não faz sentido. - Murmurou, pois não sabia o que mais dizer.

Christophe riu, embora dessa vez fosse um riso diferente. Alcançou o maço de cigarros no bolso da calça folgada nos quadris, puxando um para levá-lo até a boca.

-Não? É a única coisa que faz sentido.

-Como?! Isso… O Kyle não faria isso. Ele não machucaria o Pip de propósito.

Christophe acendeu o cigarro com um fósforo, sem pressa. Tragou uma vez antes de retirá-lo da boca, dando um sorrisinho de canto que expunha os dentes amarelos, mais pensativo do que qualquer outra coisa. Os sorrisos de Christophe sempre tinham alguma amargura.

-Todos nós pensamos em abrir a cabeça do Pip uma vez ou outra. - Disse, encolhendo os ombros, soltando a fumaça.

Stan o encarou sem piscar. Christophe não sorriu ao encará-lo de volta.

-Eu tô brincando, Marsh.

-Você acha isso engraçado?!

-Eu acho um pouco.

Não achava realmente. Talvez fosse esse o verdadeiro motivo de sua resposta, testar até que ponto Stan acreditava que ele era um monstro. E acreditava, acreditava de verdade, isso estava escrito nos olhos confusos de Stan. Algo dentro de seu peito, no entanto, o impediu de dizê-lo em voz alta. A relação desses dois mudou muito nos últimos meses, você pode perceber isso nas sutilezas.

Stan sugou o ar, emitindo um som fraco, cobrindo a boca com a mão. Virou parte do tronco para encarar a janela, a paisagem chuvosa do lado de fora. Queria tanto gritar.

-Eu não sei mais quem ele é. - Disse a muito custo. Eram exatamente aquelas palavras que o mantinham acordado durante a noite, o que Stanley mais temia verbalizar. E agora elas estavam flutuando no espaço, essas palavras, concretas e verdadeiras. A culpa pesava sobre seus ombros.

Enquanto isso, Christophe fumava. Soltou a fumaça projetando o maxilar para frente, os dentes aparecendo entre os lábios, deformando seu rosto que já não era muito bonito. Bem, era, só não da maneira usual. Deus, quantos anos o Toupeira tinha nessa época? Vinte e quatro, vinte e cinco no máximo? E já parecia um velho exausto, mas cheio de vitalidade, cheio de força ao mesmo tempo. Como se a velhice em seu semblante só o tornasse mais resistente. Balançou a cabeça, estudando Stan com seus olhos de lobo.

-Esse tipo de coisa não pode te assustar. - Respondeu. Stan levou alguns segundos para encará-lo de volta, e Christophe aguardou pacientemente, voltando a falar somente quando suas pupilas se encontraram. - Eu imagino que ninguém nunca tenha mergulhado a sua cara em água escaldante. Ou te marcado com ferro incandescente como se você fosse uma porra de um boi, ou te trancado em uma caixa tão apertada que você nem conseguisse mexer as costelas pra respirar e te deixado lá por semanas.

-Onde você quer chegar? - Stan perguntou, perturbado, desviando o olhar. Tentou preencher a mente com quaisquer outras imagens que não envolvessem Kyle naquele lugar medonho. Às vezes, secretamente, Stan pensava que Christophe tirava algum prazer sádico de fazê-lo pensar em tais coisas.

-O que eu quero dizer é que você também jogaria sopa na cara dos outros se tivessem te queimado com ácido e arrancado as suas unhas por oito meses. É direito dele. Caralho, eu ofereceria a minha própria cara pra ele arregaçar, se ele quisesse.

-É? Mesmo, Toupeira? Porque até onde eu sei, você nem foi vê-lo nesses últimos dias. - Agora, Stan não tinha qualquer receio de olhar nos olhos do outro. - E você pode ter se convencido de que é porque você entende melhor, que quer respeitar o espaço dele, mas a verdade é que te assusta também. Te assusta ver quem ele se tornou, tanto quanto a mim.

-Foda-se o que me assusta. Eu engulo, e você tem que engolir também. Porque ele tá apavorado. - Os olhos de Christophe estavam quase arregalados, não de medo, ou não somente. Era ênfase, ênfase de um homem que precisa ser ouvido. Chegou mais perto de Stan, como se alguém pudesse ouvi-los, apesar de estarem sozinhos no corredor.

-Apavorado de quê? Ele tem medo de mim? De nós?! Ele está em casa agora, seguro, nada mais vai acontecer com ele…

-Ele nunca mais vai se sentir seguro na vida dele.

E contra isso, não havia argumento. Era verdade. Você sabe disso, bem como Stan sabia naquele momento. Os lábios entreabertos se fecharam, os olhos marejaram em uma ardência ingrata, mas Stanley engoliu a vontade de chorar. Esqueceu-se de respirar durante alguns instantes, deixando que os olhos – grandes e opacos, como se fossem feitos de vidro – vagassem sem um foco específico. Então piscou, saindo do transe, absorvendo as palavras do outro. E assentiu com a cabeça devagar. Era uma verdade tão óbvia, tão estupidamente óbvia e impossível.

Há uma coisa que os vivos não percebem, mas daqui de onde estou, fica claro como cristal. A intenção do toque. A mão de Christophe não se move, continua caída na lateral de seu corpo, mas o toque não começa na superfície da pele. O toque começa antes. O toque começa de dentro para fora, e acessa camadas que vão além da pele, camadas de calor e de energia que cada ser humano carrega. Alguns vivos, em um tempo distante, referiam-se a isso como a áurea. Mas não é nada tão místico, nada tão difícil de entender. É meramente um fenômeno físico que move tudo o que fazemos, a intenção. Eu consigo ver essa energia em torno da mão de Christophe se erguendo para repousar no ombro de Stan, mesmo que a mão continuasse completamente parada. Existia a intenção do conforto. Mas o toque nunca ocorreu.

 

Assistir ao passado, o período em que eu ainda era vivo, é como assistir a um filme. Como se eu assistisse a tudo através de uma cortina de vidro, um mundo intocável para mim. Eu posso falar com os personagens, tentar confortá-los, tentar tocá-los com meu acúmulo de energia sem corpo, mas eles jamais poderão me ouvir. Porque nesse universo, eu ainda não havia sido assassinado. Talvez Christophe se sentisse assim, mesmo que feito de carne e osso, mais vivo do que a maioria dos seres humanos. Talvez… Ele enxergasse o mundo através de uma cortina de vidro também.

 

De qualquer forma, Stan tocou em uma veia inflamada que levou Christophe ao quarto de Kyle às onze da noite do mesmo dia. Ele precisou tomar dois copos de aguardente pura para ter coragem. Porque Stan tinha razão; ele tinha medo. Muito medo. Mas medo nunca paralisou Christophe DeLorne – se tivesse, sejamos honestos, ele nem estaria mais vivo – e talvez, de certa forma, fosse o estímulo necessário para impulsioná-lo.

Ao abrir a porta do quarto, encontrou exatamente o que esperava. Primeiro, uma escuridão estéril que deu-lhe a sensação de adentrar uma outra dimensão, um buraco negro desconhecido, um outro plano espiritual onde as coisas eram feitas de fumaça e se dissipavam com facilidade. Mas após gastar alguns segundos parado à porta, seus olhos se ajustaram ao breu a ponto de o Toupeira identificar os cacos que restaram da tigela de sopa despedaçada no chão, pois ninguém teve a coragem de limpá-la. Havia outros traços de deterioramento, como as roupas jogadas de qualquer forma pelos móveis, o abajur que se encontrava no chão ao lado da mesa de cabeceira, a gaveta entreaberta. E, é claro, o corpo sobre a cama.

Kyle dormia profundamente agora. De bruços, a bochecha esquerda amassada no travesseiro, baba escorrendo da boca e umedecendo os fios de cabelo que já estavam colados em sua pele por conta do suor. O cobertor subia até o meio das nádegas, revelando a curva da bunda, a lombar, as costas. Christophe se moveu silenciosamente através da escuridão, tropeçando em um tênis que ficou pelo caminho, mas até esse encontro acidental foi macio e produziu pouco barulho. Não foi o suficiente para despertar Kyle, isso é certo.

O Toupeira parou de pé à beirada da cama, as coxas a alguns centímetros de tocarem o colchão. Tinha os olhos baixos e severos, o peito inflado de ar que ele não se permitia soltar, as mãos retraídas. Umedeceu os lábios, observando o corpo adormecido com toda cautela que existe. Christophe sabia como ser sorrateiro, sabia como se aproximar de alguém sem produzir um ruído sequer, mas sua presença é forte demais para ser ignorada. Foi isso que despertou Kyle. Não um barulho, nem mesmo o da respiração de um outro ser no quarto, mas sim a intensidade com que era observado.

É importante que você saiba que Kyle havia adormecido praticamente sem querer; a maior parte do seu tempo naquela cama era gasta em um estado de semiconsciência. O cérebro trabalhando, o corpo paralisado. Não sabia se estava acordado ou não na maior parte do tempo, mas também pouco se importava com isso. E toda vez que dormia, como agora, era tão pesado que não havia espaço para sonhos, para pesadelos, para nada que não fosse a suspensão completa de sua existência, como se Kyle se tornasse um ser mineral ao dormir.

Toda vez que acordava, encontrava-se apavorado. Sem saber onde estava, quem era, o que estava havendo com ele. Era apenas um segundo, um segundo em que sugava o ar pela boca e erguia a cabeça em desespero, o coração martelando com o intuito de abrir um buraco através da carne do peito. Foi exatamente isso que aconteceu. E quando esse segundo passava, Kyle respirava fundo e permitia-se sentir a latejante dor de cabeça e o desejo de nunca mais acordar, nunca mais ter que passar por isso.

Ergueu o tronco alguns centímetros, olhando por cima do ombro para enxergar Christophe. Então, deu-se conta do que o outro observava (apesar de os olhos de Christophe desviarem do alvo e encontrarem os de Kyle quase que de imediato): a cicatriz. Era difícil chamar de cicatriz algo que ainda parecia uma ferida grotesca e viva. Imensa, ou era essa a sensação que Kyle tinha, cobrindo a extensão da sua lombar e subindo pela lateral esquerda do tronco. A pele avermelhada, deformada, em um alto-relevo de carne que faz curvas umas sobre as outras, uma pele que jamais se recuperará. Kyle puxou o cobertor para cobrir a cicatriz com violência, deitando-se de lado, franzindo o cenho.

-O que você quer? - Perguntou.

Mas não houve resposta imediata. Christophe pedia desculpas com o olhar, embora seu rosto continuasse inalterado. O coração de Kyle ainda batia disparado. Ele esfregou o rosto pálido com a mão, balançando a cabeça.

-Quer saber, nem importa. - Prosseguiu. - Porque eu não quero. Eu não quero comer, eu não quero levantar, eu não quero tomar ar fresco, eu não quero um médico pegando em mim, eu não quero nada. Pode ir embora.

-Não é pra isso que eu vim.

Kyle deitou a cabeça no travesseiro devagar, mas não tirou os olhos do outro, esperando uma explicação que não tinha a menor vontade de ouvir. Mas o silêncio foi ainda mais perturbador. Entrava na pele de Kyle e começava a irritá-lo como uma coceira que não se sacia. Enquanto isso, Christophe tinha o olhar baixo. Kyle provavelmente tomou aquilo como covardia, mas na verdade, ele encarava o abajur jogado no chão.

-O quê?! - Kyle perguntou, atormentado.

Christophe voltou a olhá-lo, a boca em uma linha reta e os olhos amáveis, ainda que carregados de pesar. Ele se abaixou para recolher o abajur, repousou-o de pé sobre a mesa de cabeceira e ajeitou a cúpula torta.

-Eu só quero ter certeza de que você sabe o que tá fazendo.

Kyle piscou algumas vezes, as pálpebras pesadas e exaustas. Não entendia aquelas palavras, não queria entendê-las. Estava completamente nu por baixo da coberta, sentindo a lã diretamente contra sua pele úmida. Encarou o teto sem responder.

-Você pode ficar deitado aí sentindo pena de si mesmo por quanto tempo você quiser. - Christophe disse. - Mas é bom que você saiba que cada segundo que você passa aí, é um segundo a mais que eles ganham.

-“Eles”? - Kyle perguntou com um riso amargo, sem desviar o olhar do teto.

-É. Todo mundo que te colocou naquele lugar. Garrison. Os sapadores. O homem que fez isso nas suas costas. A sua mãe. Todos eles.

-Você acha mesmo que eu tô preocupado em ganhar alguma coisa? - Vagarosamente, as orbes dos olhos de Kyle rolaram nas cavidades para encarar Christophe com o olhar mais infeliz que já esteve naquele rosto.

O Toupeira encolheu os ombros antes de se sentar na beirada da cama, o mais afastado de Kyle quanto era possível. Estava de costas para ele, os braços apoiados nas coxas.

-Você acha que é cruel, o que eu disse pro Gregory. Eu sei. Pode me chamar de monstro, da merda que você quiser. Isso não muda o fato de que você sobreviveu. - Nesse momento, virou o rosto de perfil. Kyle estava em sua visão periférica, imóvel, mas Christophe não olhava diretamente para ele. - Isso é muito mais do que se pode dizer por quem continua lá dentro. Aquela gente toda vai passar tudo o que você passou, depois morrer, e não vão poder fazer nada por ninguém. - Devagar, ele umedeceu os lábios. Fechou os olhos por um instante. - Você pode. Se você vai usar a sua liberdade definhando porque não aguenta, talvez tenha sido um erro te tirar de lá.

Kyle engoliu seco. Havia lágrimas em seus olhos agora, mas apenas uma ou duas conseguiram crescer o suficiente para escorrer pelas laterais de seu rosto, até tocarem suas orelhas. Ele continuava com os olhos fixos no teto, o maxilar trancado, um peso medonho sobre o peito. Conseguiu espremer uma só palavra:

-Talvez.

-Eu… Às vezes eu pensei que fosse sufocar sem você. Mas não é por isso que eu sequestrei e aterrorizei um homem pra poder te soltar. Eu não fiz isso por mim, nem por você. Porque eu sei o que é sair daquela merda. Eu não teria feito esse inferno todo pra te soltar se achasse que você não aguentava. Porque as nossas vidas não importam, não de verdade. Nós só libertamos soldados que vão sair mais fortes, que vão continuar vivendo e fazendo o que precisam fazer. É isso que o Gregory entende e você não.

-Sai daqui. - Kyle murmurou.

-Eu não tô tentando te machucar. - Christophe disse de forma mais mansa. Sua forma de proferir aquelas palavras não tinha qualquer agressividade. Virou-se de frente para o outro, e novamente estava ali a intenção do toque que nunca aconteceu. - Tô dizendo que eu espero que você não se dê ao luxo de apodrecer nessa cama quando tem tanta gente presa que só quer ter de volta o direito de lutar. Quando tem tanta gente que foi chacinada sem ter a mínima chance. - E com isso, Christophe se levantou. Olhou Kyle de relance, preparando-se para deixar o quarto, mas após alguns passos, algo o tentou a parar. Sem olhar para trás, prosseguiu. - Não é porque eu te amo que eu penso que a sua vida valha mais do que a de outra pessoa.

E deixou Kyle em paz.

 

09 de outubro de 3645

 

Na alvorada, 06h30 da manhã, eles se preparavam para treinar. Christophe vestia as luvas pretas sem dedo em silêncio. Elas cheiravam a cigarro. Ele havia dormido uma ou duas horas no máximo, na rede do pátio (já começava a esfriar demais para manter o hábito de cochilar sob as estrelas), tomou 100ml de café preto e estava pronto para começar o dia, independente do que relatavam as olheiras escuras em sua pele. Michael trocava o moletom preto de gorro longo e bainha repicada por uma camiseta chumbo que fosse mais macia, permitindo que se movesse com mais agilidade. Tinha um dos pés apoiado no banco onde Kenny e Stan estavam sentados. Kenny terminava de comer uma banana. Cartman e Henrietta já estavam engajados em algum tipo de arte marcial, e Kenny os observava com um sorriso entretido enquanto Henrietta pisava na cabeça de Cartman.

Michael contava a Christophe algo desimportante sobre a contagem de armas do dia anterior, mas o Toupeira nem se dava ao trabalho de fingir que prestava atenção.

-Ei, como vai o Gregory? - Stan perguntou em voz alta para ninguém em particular.

-Meio fraco ainda. Mas parou de vomitar. - Michael disse. - O Damien acha que vai levar umas semanas ainda pra ele estar pronto pra tentar andar de muleta.

-Como é que ele mija? - Kenny perguntou.

-Ele vai ficar bem. - Christophe interrompeu qualquer possibilidade de resposta, tirando o maço de cigarros do bolso para colocá-lo sobre o banco.

E então, veio o barulho da pesada porta se abrindo. Os rostos não se voltaram à porta todos de uma vez, mas em cinco ou dez segundos, a maioria já havia avistado a figura magra e pálida de Kyle Broflovski, as mãos dentro do casaco cinza de malha, os cabelos vermelhos aparecendo sob o capuz. Parecia ter acabado de tomar banho. Stan se levantou por instinto. Henrietta sorriu fraco enquanto pressionava o braço entorno do pescoço gordo de Cartman, que batia com as mãos no linóleo do chão.

-Alguém vai treinar tiro agora? - Kyle perguntou casualmente, levantando a mão que segurava a arma.

Ele parecia frágil feito papel, a pele em um tom acinzentado de desnutrição, as maçãs do rosto marcadas por uma magreza que não era saudável, mas apesar disso tudo, estava ali de pé.

Para Stan, houve um momento de suspensão no tempo. Como se qualquer movimento brusco, qualquer olhar errado, qualquer palavra mal colocada fosse assustar Kyle de volta ao ninho onde havia se afundado desde que chegou. Mas logo, esse segundo foi quebrado pelo movimento natural das coisas, pessoas que retomavam suas atividades, o mundo que voltava a girar.

-A gente já tava indo. - Kenny respondeu com um sorriso fraco.

Bem, olhando para trás, acho que isso foi um primeiro passo para colocar as coisas de volta em movimento. Mas como Standish já nos disse: as coisas precisam piorar muito antes de melhorar.



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