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História Liberté - A Insuficiência


Escrita por: caulaty

Capítulo 53 - A Insuficiência


22 de outubro de 3645

 

Às três horas da tarde do dia 22, Kyle entrou na banheira por vontade própria, utilizando as próprias pernas, a própria consciência. Ele tem estado funcional nos últimos dias desse passado remoto, funcional até o limite do possível, salvas as exceções. Antes de falar sobre o momento em que Kyle mergulhou seu corpo na água quente da banheira, vamos dar uma olhada para os dias anteriores, apenas para você entender o que vem acontecendo em sua ausência.

Ele fazia o que era pedido dele. Levantava-se, alimentava-se com as próprias mãos, tomava ar fresco e visitava o consultório de Damien quando achavam necessário. Mas é importante que você entenda o vazio por trás dos olhos dele ao executar todas essas tarefas. Kyle comia uma vez por dia, por necessidade e sem usar talheres, nunca no refeitório, sempre no quarto. E sentava-se no pátio, ainda de pijamas, parado feito uma das estátuas, sem falar com ninguém. Um dia desses, até manifestou o desejo de beber água, o que quase fez Stan chorar de alívio ao virar-se para pegar uma garrafa no frigobar. Stanley estava sempre por perto, um vigilante silencioso à sombra dele, sempre ansioso, sempre com medo.

Mas independente dos seus esforços, a única coisa que não conseguiu convencer Kyle de fazer foi tomar banho. Ele não cheirava mal, não terrivelmente, pois já começava a fazer frio e ele se movia muito pouco, mas seus cabelos ficavam cada vez mais armados e sebosos, até o dia em que Kyle arrastou-se até o banheiro, pegou a máquina de barbear que havia na gaveta e passou a máquina lentamente pelo topo da cabeça, encarando o próprio reflexo no espelho de forma hipnótica, os olhos mais verdes e brilhantes do que nunca, o rosto magro de nariz e ossos protuberantes, olheiras escuras pintando sua pele. Nessa noite, Stan lembrava-se muito bem de caminhar até a porta com o mundo se passando em câmera lenta, o coração prestes a sair pela boca porque a imagem de Kyle com os pulsos cortados na banheira era tão forte em sua mente, e o barulho da máquina parecia apenas um zumbido sem propósito. Mas ao chegar à porta, Stan respirou aliviado, esfregando o suor nervoso da testa.

-Você… Quer ajuda com isso? - Perguntou.

Kyle apenas negou com a cabeça, observando os cabelos vermelhos caindo em abundância na pia, os pelos aparados caindo por dentro da gola de sua camiseta e pinicando suas costas, mas ele mal sentia. Mal sentia qualquer coisa.

Trocar de roupa também era um desafio. Stan precisava ser muito incisivo a esse respeito, e mesmo quando o convencia, Kyle nunca realizava a tarefa sozinho. Stan, sempre tão carinhoso, com as suas mãos grandes e macias, despia e vestia o corpo de Kyle como se ele fosse uma criança, ou ainda, um boneco. E Stan seguiria fazendo isso todos os dias de sua vida se necessário fosse, ignorando o embrulho em seu estômago por ver nesse estado a pessoa mais forte que já conheceu, que nunca soube como aceitar ajuda, e agora… Ele afastava esses pensamentos, afastava-os porque sentia culpa, porque a sua dor não importava. Era nisso que Stanley acreditava piamente.

Ignorava, também, a dilacerante sensação no fundo de seu peito toda vez que via aquela cicatriz gigantesca nas costas de Kyle, tentando não imaginar o que havia sido feito com ele. Mas Kyle percebia seu desconforto. Percebia o incômodo, como Stan nunca olhava para ela diretamente. Não precisava ver o rosto de Stan para saber dessas coisas.

E Gregory, você se pergunta? Bem, Gregory recuperou sua vitalidade física de maneira quase milagrosa. Não podia deixar a cama para nada que não fosse as necessidades fisiológicas, mas mesmo em seu leito, estava sempre sentado para mostrar sua energia e disposição. Toda vez que alguém visitava o quarto, encontrava-o com rubor na face e os olhos ativos, presentes, tudo o que Kyle não aparentava. Gregory dispensava as companhias e as preocupações, agindo como se nada houvesse, como se ainda possuísse as duas pernas sob o cobertor. Em seu rosto, ninguém podia ver a dor corrosiva, a vontade de vomitar, os pesadelos, o pânico noturno que o fazia acordar banhado em suor, hiperventilando. Ninguém podia ver a terrível humilhação que ele sentia por não poder nem sequer mijar sozinho. Por não poder se erguer, dar conta de si mesmo, caminhar até o outro lado da sala.

-Você vai andar novamente. Logo, terá forças para usar as muletas. - Damien dizia a ele.

E para qualquer tentativa otimista de conforto, Gregory sempre respondia a mesma coisa, com o mesmo sorriso arrogante.

-Eu sei.

Não tardou a pedir para ler os relatórios, os planos e as estratégias. Standish riu diante da requisição. Era um dos visitantes mais frequentes daquele quarto.

-Se você está entediado, eu tenho muitos exemplares excelentes da boa literatura inglesa para você passar o tempo.

-Eu não preciso do Morro dos ventos uivantes, Standish, eu preciso trabalhar.

E assim, o quarto de Gregory se encheu de pastas verdes com todos os tipos de informações a serem mastigas e digeridas. Relatórios dos Monarcas de outros estados, rotas de fuga do próximo confronto, localização de embaixadores, a agenda do Presidente, nomes dos novos prisioneiros, nomes dos novos libertos, as últimas informações sobre a localização de Terrance e Phillip.

O único momento em que Kyle não se mostrava completamente catatônico, e Gregory se permitia descansar a sua máscara, era quando estavam juntos.

Nas primeiras duas vezes em que Stan chegou ao quarto e Kyle não estava lá, as piores coisas do mundo passaram pela sua cabeça. Mas na terceira, ele entendeu que havia um padrão se estabelecendo ali; todos os dias, às cinco horas da tarde, ele largava tudo o que estava fazendo para visitar o quarto de Gregory. De Standish, na verdade, onde Gregory havia se instalado, pois era mais próximo da enfermaria e do chão. Stan sempre o encontrava lá, às vezes com os dois rapazes em silêncio, lendo os relatórios, olhando um para o outro, jogando damas ou não fazendo coisa alguma. Um nunca perguntava como o outro se sentia, pois ambos já sabiam a resposta para isso.

Isso não impedia Gregory de perguntar, para todas as outras pessoas que não fossem o próprio Kyle, como é que ele estava. Ninguém contava a verdade inteira.

O aniversário de Stan foi há poucos dias, sabia? Kyle não soube disso, porque nunca sabia que dia era, nunca se lembrava de perguntar. Não importava. Para ele, todos os dias eram o mesmo.

Mas Kenny se lembrou, é claro, sendo quem era. Não lembrou somente no dia, como teve o cuidado de ir à cidade sozinho para encontrar uma livraria. Em uma loja minúscula, quase escondida ao lado de um cinema abandonado e um prédio residencial, Kenny encontrou um velho chinês que vendia livros usados. Foi lá que encontrou o presente, baseado no critério de uma bonita capa com uma baleia pintada a mão. Ao receber o presente, Stan abraçou Kenny durante sólidos dois minutos em silêncio, escondendo o rosto em seu ombro.

Outro que se lembrou foi Token, que pediu a Standish um conhaque vagabundo para que pudessem comemorar. Houve nostalgia no gesto, e Stan podia ver a solidão nos olhos de Token, uma tentativa de se lembrar dos tempos melhores em que todos eles eram adolescentes, em que Tweek e Butters ainda estavam vivos, em que a alma de Craig ainda não havia sido tocada por tanta amargura e Clyde ainda sorria e caminhava como uma pessoa. Enquanto Kyle jogava baralho com Gregory, Stan se permitiu beber uma dose de conhaque com esse amigo de infância que nunca foi muito próximo, nunca foi a pessoa com quem Stan escolheria passar seu tempo, mas as circunstâncias acabaram por uni-los de tal forma que aqueles adolescentes idiotas que foram um dia não poderiam imaginar. Não conversaram muito, não trocaram confidências, nada disso era necessário. Eram dois homens solitários juntos.

Cartman se lembrou do aniversário de Stan, mas não disse nada.

Bem. Agora que você já tem um esboço do quadro, voltemos ao dia 22.

O dia em que Kyle, por vontade própria, decidiu tomar banho. Stan – que fazia palavras-cruzadas – observou quando ele se levantou da cama de forma repentina, arrastando os pés até o banheiro feito um morto-vivo. Pensou que ele apenas fosse mijar, quando ouviu o som da banheira se enchendo. Deixou o livrinho de palavras-cruzadas de lado no sofá e foi até o banheiro para deparar-se com a imagem pálida de Kyle tirando a roupa em frente ao espelho, tão devagar. Era a primeira vez que o fazia sozinho em sabe-se lá quanto tempo. A luz natural que entrava pela janelinha do banheiro acentuava as formas dos ossos sob a carne magra, a deformação na pele da lombar encarando Stan diretamente, enquanto o reflexo do rosto de Kyle aparecia no espelho sujo. Ele olhava para baixo.

Kyle entrou na banheira antes de ela se encher por completo. Movia-se como um homem de cem anos, como se os ossos fossem se esfarelar a qualquer movimento brusco. Sentou-se com alívio, apoiando a cabeça na porcelana gelada, os olhos semicerrados encarando as pernas dobradas que, pouco a pouco, eram cobertas pela água quente, até que apenas os joelhos ficassem de fora.

A princípio, Stan ficou aliviado. Tomou aquilo como um bom sinal, um presságio de tempos melhores em que Kyle recuperava a sua autonomia. Deus, como Stan tinha saudade dele. Do Kyle com quem cresceu, do seu primeiro amor, do seu melhor amigo. Daquela força da natureza que nada podia parar.

Mas não se tratava disso.

Levou algum tempo para que ele percebesse que algo… Não estava certo. Vinte minutos, meia hora. Stan não queria que Kyle se sentisse vigiado, o que era uma bobagem naquele momento, pois essa atitude de Stan tinha a ver com o orgulho ferino de Kyle antes da prisão. Esse Kyle, o rapaz deitado na banheira, esse não dá a mínima para o que pensam dele. Não se importa com a superproteção, com a condescendência, com o sufocamento do cuidado, com ser tratado como fraco. Essas coisas todas passavam muito longe do seu coração naquela época. Porque nada importava para ele. Seu orgulho, sua força, sua autonomia, suas escolhas, comer ou não comer, banhar-se ou não banhar-se, tudo parecia dar no mesmo.

Mas Stan tentou dar espaço a ele. Foi para o quarto e sentou-se na cama, ouvindo atentamente os sons do banheiro para qualquer sinal de coisa errada. E, de cinco em cinco minutos, soltava as palavras cruzadas para espiá-lo da porta, atormentado pela imagem do corpo de Kyle na banheira de sangue, com os pulsos cortados. Não havia objetos cortantes por perto, e se ele se levantasse para pegar as lâminas na gaveta, Stan escutaria. Seus ouvidos quase esperavam por isso. Mas nada aconteceu. Nenhum som vinha da banheira, com exceção do corpo se ajeitando na água por vez ou outra. Até mesmo esse som deixou de existir após algum tempo. E, na terceira vez que foi verificá-lo, Stan percebeu que Kyle não havia mudado de posição. Que seus olhos não estavam realmente focados em coisa alguma. Como se ele já estivesse morto.

Stan colocou um pé sobre o ladrilho gelado do piso, mas não passou da porta.

-Kyle? - Chamou. - Tudo bem?

Não houve resposta. O que não era terrivelmente incomum naqueles tempos. Stan foi até a banheira, agachou-se para que seu rosto estivesse à altura do de Kyle, e repousou uma mão em seu ombro molhado.

-Ei. - Disse, de forma afetuosa. - Olha pra mim. Você quer ajuda?

Havia algo de diferente na expressão dele, Stan soube de imediato. Por mais irresponsivo que Kyle fosse, seus olhos sempre se moviam, suas mãos e lábios reagiam ao toque. Ele não usava muitas palavras, mas sempre olhava Stan nos olhos.

Naquele dia, não. Quem é que pode dizer se Kyle sequer sabia que ele estava ali? Eu não tenho a resposta para todas as coisas. Isso é coisa que eu e você nunca saberemos.

-Eu vou… - Stan umedeceu os lábios, tentando ocultar a ansiedade. - Eu vou começar a te ensaboar, pode ser? Tudo bem pra você?

E, mesmo sem qualquer reação, Stan tomou o sabonete em suas mãos secas, mergulhou-o na água quente para fazer espuma e começou pelas pernas. Lavou Kyle com um cuidado nada menos do que paternal. Passou pelo abdômen imerso na água, pela parte exposta do peito, puxou-o com delicadeza para alcançar suas costas. E o tempo inteiro, Kyle mantinha a cabeça levemente caída para a frente e seus olhos pareciam feitos de vidro.

Os olhos de Stan arderam em lágrimas que ele nunca permitiu derramar durante todo esse processo, dolorosamente silenciosas. Stan jamais admitira que havia algum conforto no fato de Kyle não olhá-lo nesse momento. Arregaçou as mangas, secou os olhos com a parte seca dos braços e fez o que precisava ser feito. Ou o que achava que precisava ser feito.

-Você tá limpo. - Disse após um suspiro profundo que garantiu alguma estabilidade em sua voz. - Quer voltar pra cama?

O silêncio naquele banheiro era excruciante. Sufocava Stan como se realmente houvesse um par de mãos em torno de sua garganta.

Sabe, muitas vezes eu sinto que falho em lhe fazer entender o que há por trás dos olhos dessas pessoas. E esse é um momento em que não poderei alcançar, com minhas palavras, tudo o que Stan diz apenas com seus olhos úmidos quando observa o corpo de Kyle desmanchado na banheira de porcelana, apoiado na parede como se não suportasse o próprio peso, e os únicos sinais de vida eram as pálpebras que piscavam de vez em quando e o peito que subia e descia de forma mínima. Stan cobriu a boca com a mão molhada e desviou o olhar por um momento.

-Kyle. - Chamou quase sem querer, dessa vez com um tom de desespero escondido na voz. - Eu não vou… Eu não quero fingir que eu sei o que você tá sentindo. Porque eu não sei. Mas eu tô aqui, eu preciso que você saiba que eu tô aqui. Então… Só olha pra mim. Não precisa fazer mais nada, só… Por favor. Olha pra mim.

Era como falar com um boneco de cera.

 

Kenny entrou no quarto por volta das cinco da tarde. Não tinha o hábito de bater à porta. Franziu a testa para o vazio do espaço, até se dar conta de que a luz do banheiro estava acesa.

-Gente? - Chamou.

Antes que chegasse à porta aberta do banheiro, viu a figura de Stan – que estava sentado com as costas apoiadas na bancada da pia – se levantar e aparecer à sua frente. Algumas partes de suas roupas estavam molhadas, os cabelos também. Os olhos pareciam tão fundos, mas não como se ele tivesse chorado, e sim como se não dormisse há dias. Kenny parou no batente da porta e separou os lábios para perguntar o que houve, mas Stan o atravessou:

-Eu não queria deixá-lo sozinho.

Em sua visão periférica, Kenny percebeu a presença de Kyle na banheira. Sua mão instintivamente segurou o braço de Stan, os olhos refletindo todas as coisas terríveis que se passavam em sua mente, e durante alguns segundos, Stanley não disse nada. Somente quando Kenny o encarou e apertou seu braço, ele reagiu.

-O que aconteceu?

-Ele não… Eu não sei, não faço ideia, é como se eu nem estivesse aqui.

Só então, Kenny se distraiu do próprio medo para se dar conta do quanto ele estava apavorado. Segurou-o pelos ombros, acariciando seu pescoço com os polegares.

-Calma. Tá tudo bem.

-Não tá tudo bem.

-Eu sei. Mas isso não tá te ajudando. Vai lá fora respirar um pouco, eu fico aqui com ele.

-Eu não quero ir lá fora.

-Eu acho que você precisa. - Kenny disse no tom mais gentil que pôde. - Só um pouquinho. Você tá um caco.

Stan não soube dizer que força moveu suas pernas para seguir o conselho de Kenny, a única pessoa do mundo que realmente supria a saudade que Stan sentia de sua mãe, de alguém mais velho e mais sábio para apontá-lo no caminho certo quando tudo estava escuro. Kenny não era mais velho, tampouco mais sábio, mas desempenhava a função como ninguém.

Isso se devia ao fato de que Kenny, tão amoroso e melancólico, sempre lidava com as situações com calma. Mesmo as mais desesperadoras, que o faziam se borrar inteiro, Kenny tinha a resiliência necessária para deslizar tanto pela vida quanto pela morte. Aproximou-se da banheira com cautela, ajoelhando-se ao lado de Kyle. Observou-o com dor nos olhos antes de sorrir um sorriso fraco, honesto.

-Ei, Kyle. Eu sei que você não tá muito afim de se mexer. Por que eu não te ajudo a sair dessa banheira pra você se vestir, hein? Deve estar frio aí dentro. Isso te parece uma boa ideia?

Ele não esperava, de fato, por uma resposta. Também não esperava pelo que houve em seguida. Quando Kenny fez sequer menção de passar os braços por baixo do corpo dele, antes mesmo de fazer qualquer movimento para levantá-lo, Kyle reagiu. Reagiu com um grito tão gutural que qualquer um, ao ouvi-lo, pensaria que Kenny acabara de esfaqueá-lo. Ao mesmo tempo, junto do grito estridente, a mão arranhou o rosto de Kenny com tal intensidade que tirou lascas de sua pele e sangrou. Kenny o soltou de imediato, erguendo as mãos e afastando-se da banheira por impulso.

-Tá bom, tá bom, tá bom! - Repetia, os olhos azuis arregalados, observando-o enquanto Kyle cobria a própria cabeça e grunhia feito um animal ferido ou uma criança assustada, Kenny não soube identificar. Encolheu-se inteiro no canto da banheira, mas os olhos continuavam vagos, opacos, sem reconhecer coisa alguma.

Stan adentrou o banheiro correndo.

-O que você fez?!

-Eu sei lá! Eu mal encostei nele! - Kenny gritou em resposta, as mãos ainda erguidas em defensiva.

Foi apenas o tempo dessa reação para que Kyle voltasse ao seu estado anterior, catatônico, mas agora com os braços sobre a cabeça. Mal piscava. Respirava um pouco mais pesado.

Stan entrelaçou as mãos e cobriu a boca com elas, virado de frente para a parede, como se olhar Kyle fosse um ato doloroso demais. Kenny tocou suas costas.

-Vamos dar tempo a ele, ok? - Kenny disse. Por alguns instantes, Stanley nem se moveu.

-Ele tá aí há duas horas. Não vai passar.

-É claro que vai. - Enquanto falava, Kenny sentia a ardência na bochecha, tocando-a por instinto. Só então percebeu o filete de sangue. Limpou-o com a água da pia rapidamente, tentando não se olhar no espelho. Odiava falar sobre Kyle como se ele não estivesse bem ali, mas para Stan, o silêncio daquele banheiro e a ausência de Kyle eram fortes demais para que ele se desse conta disso. - Vamos só…

-Chama o Toupeira. - Stan interrompeu, não escutando nada do que saía da boca do outro de qualquer forma. Voltou a se ajoelhar ao lado da banheira. Só então, acrescentou – Por favor.

Kenny queria contestar. Queria mesmo, pois parecia-lhe uma ideia terrível trazer a pessoa de menos tato desse mundo para lidar com uma situação tão delicada, como soltar um animal selvagem dentro de uma sala cheia de cristais. Daria errado, Kenny já sabia disso. Mas nenhuma palavra saiu de sua boca, pois Stan já parecia tão drenado e exausto que Kenny estava disposto a fazer qualquer coisa que ele pedisse. E, mais do que isso, a força que Stanley precisou coletar para proferir aquelas palavras foi tamanha que Kenny jamais exigiria dele uma discussão sobre o assunto.

Apenas foi.

 

Christophe carregava, junto com Trent, os galões de água da caminhonete para a cozinha. Kenny levou algum tempo para encontrá-lo. Correu até a sala de treinamento, passou pelo salão de jogos, gritava “cadê o Toupeira?!” para todas as pessoas que encontrava pelo caminho. Foi até o depósito de armamento, onde David cumpria seu turno. Kenny não explicou nada a ninguém, nada além de “É o Kyle” para explicar sua angústia e dispensar maiores explanações. Isso causou um burburinho desconfortável no ar. De qualquer forma, David o apontou para a cozinha.

Quero tirar um segundo do seu tempo para descrever o momento específico em que Kenny entrou na cozinha, tão bem sincronizado com o Toupeira adentrando o cômodo pela porta dos fundos com um galão sobre o ombro, como se tudo acontecesse em câmera lenta, e no instante em que os olhares se cruzaram, Christophe soube. Parou de andar, mal sentindo o peso de dez litros de água que o deixava levemente corcunda. Franziu o cenho, esperando que Kenny dissesse alguma coisa, qualquer coisa terrível.

-O que foi, McCormick? - Trent perguntou, vindo logo atrás. - Engoliu um rato, foi?

-O que ele tem? - Christophe perguntou, sem precisar citar o nome de Kyle para que Kenny soubesse que ele sabia. Largou o galão sobre a mesa. Tentava não parecer tão nervoso quanto estava, como era seu impulso natural. As coisas, com Christophe, tendiam a não chegar à superfície.

Kenny suava. Precisou de um segundo para recuperar o fôlego, esfregando a testa.

-Eu não… Tenho certeza.

-O que aconteceu com a sua cara? - Trent perguntou, deixando o galão no chão, ao lado da geladeira. Kenny havia se esquecido do arranhão. Não havia parado de sangrar. Isso explicava porque as pessoas o olhavam com estranheza.

-Nada. - Respondeu com pressa. E então, direcionando os olhos assustados para o Toupeira. - Você pode vir?

Christophe lançou um olhar em direção à porta aberta dos fundos, mas Trent acenou com a cabeça para que ele fosse. Não precisou dizer nada. Com isso, o Toupeira seguiu Kenny até o quarto. No entanto, no meio do caminho, enquanto atravessavam o pátio, o Toupeira perguntou:

-Ele tá bem?

-Me diga você quando chegar lá.

 

O corpo de Kyle na banheira poderia ser uma pintura. O braço pálido esticado na beirada da porcelana, o pescoço longo e exposto, a cabeça recém-raspada mostrando todo o formato de seu crânio. Tinha o rosto virado para a parede, de forma que o contorno do nariz e dos lábios ficava visível de perfil para quem entrasse pela porta. As clavículas magras apareciam por baixo da carne ressecada pela água, a pele tão branca exposto as veias azuladas. Parecia, de fato, uma linda pintura de uma mortem jovem e trágica. Os tons do banheiro eram laranjas e marrons. O sol do fim de tarde despedia-se para o anoitecer.

Stan estava de pé, longe da banheira, roendo a unha curta do polegar. Parecia uma criança, a outra mão agarrando a bainha da camiseta, uma forma sutil de regular a ansiedade.

O banheiro era terrivelmente pequeno, então Kenny ficou parado à porta, em prontidão para intervir se qualquer coisa ruim ocorresse (embora não fizesse ideia de como ajudar). O Toupeira olhou para Stanley durante um curto e definitivo tempo, um relance de suporte em sua face. Stan o encarou de volta sem esboçar reação.

Com isso, Christophe repousou o olhar no corpo de Kyle imerso em água fria, como Ofélia morta sendo carregada pelo Rio Avon.

-Há quanto tempo…?

-Duas horas. Mais ou menos. - Stan murmurou com uma voz fraca. - Um pouco mais.

-Eu tentei tirá-lo daí, mas ele ficou violento. - Kenny disse. - É bom você saber.

-E ele não diz nada. - Stan acrescentou.

Por um instante, Christophe não se moveu. Também não respondeu às informações. Estreitou os olhos, aproximando-se da banheira a passos lentos, suas botas sujas encontrando a umidade do chão.

-Eu acho que é a água. - Ele murmurou para si mesmo tão baixo que Stan e Kenny não entenderam uma palavra. O sotaque não ajudava. No momento seguinte, Christophe pareceu se esquecer de que eles estavam ali, aproximando-se casualmente da beirada da banheira antes de se abaixar. - Tá bom, Kyle. Já deu. Você tá assustando eles. - Falava de forma intimista, aproximando-se do rosto pálido do outro, os olhos carregados de certeza de que era ouvido. - Eu sei que você tá aí. Então me escuta. Ou você sai dessa sozinho, ou eu vou ser obrigado a te arrancar.

Christophe já sabia que as palavras não obteriam resultado, pois palavras nunca mudam coisa alguma, não realmente. Pelo menos era assim que Christophe DeLorne enxergava o mundo. Já sabia o que teria que fazer assim que pôs os pés naquele banheiro. Pensou em avisar Kenny e Stan do quão feio seria, pedir para que eles se retirassem, mas de que adiantaria? Ninguém pode poupar ninguém de nada.

Essa é uma frase que ouvimos regularmente nessa história, não? Acredito que ela seja importante.

Pois bem. O Toupeira, com a força e o ímpeto de um cavalo que não pode ser parado por nada nesse mundo, abaixou-se para tomar o corpo de Kyle em seus braços de maneira muito menos gentil do que Kenny McCormick tentou anteriormente. O gesto não pedia permissão, não dava espaço para que Kyle reagisse. A raiva veio, o ataque veio, os gritos vieram ainda mais esganiçados e cheios de pavor do que antes, as mãos atacaram com mais violência, e ele se remexia como um peixe fisgado sem escapatória, com desespero de sobreviver, debatia-se nos braços daquele homem como se sua vida dependesse inteiramente disso. Gritava, gritava como se estivessem queimando suas costas com ácido, como se perfurassem sua carne com uma furadeira, como se Garrett o pegasse no colo novamente. Mas não importa o quanto ele bata, o quanto ele arranhe, o quanto ele grite, Christophe apenas se concentra em não perder o equilíbrio e segurá-lo com força. Não se preocupou em sequer arregaçar as mangas para recolhê-lo da banheira, e agora, sua camisa verde militar e a regata que usava por baixo estavam completamente encharcadas. Não importava. Nada disso importava.

Stan encolhia-se no canto do banheiro, apertando os olhos e cobrindo os ouvidos para bloquear aquele pedido desesperado de socorro, tentando apenas sobreviver até que aquilo tudo terminasse.

Christophe apontou com a cabeça para a toalha pendurada atrás da porta, que podia ser vista pelo reflexo do espelho, e Kenny correu para buscá-la. Tentou envolver o corpo agitado de Kyle com a toalha, disfarçando em seu rosto o pavor que sentia ao se aproximar. Kyle batia no peito e no rosto de Christophe, sem enxergar o que os punhos encontravam, mas Christophe o apertava com tanta segurança que o grito desesperado foi se transformando em choro, o choro primário de um bebê faminto.

-Shhh. - Christophe repousou uma mão sobre a cabeça nua dele, ajeitando-o nos braços enquanto Kenny cobria o corpo marcado de Kyle com a toalha. - Você saiu. - Ele assegurou em um sussurro que apenas Kyle pôde ouvir, bem ao pé do ouvido. Por um instante, o Toupeira fechou os olhos. Sentia a ardência no rosto, no pescoço, no peito, a pele maltratada pelas mãos de Kyle, mas a dor não chegava nunca. Com um suspiro, Christophe o carregou para o quarto, caminhando em lentidão, com o cuidado de quem transporta algo precioso.

Stan levou alguns instantes para conseguir desencostar da parede. O lado esquerdo de sua cabeça pulsava de dor. Cobriu o rosto com as duas mãos e respirou profundamente, tentando absorver o silêncio do banheiro, o som fraco daquele choro abafado contra o peito de Christophe no outro quarto. Arrastou os pés pelo piso frio e inclinou-se para esvaziar a água da banheira. Secou os olhos e seguiu para o quarto, cruzando olhares com Kenny, que o esperava na porta enquanto Christophe repousava o corpo nu de Kyle na cama.

Kyle cobria o próprio rosto e soluçava, recobrando a consciência. Kenny se aproximou da cama enquanto Christophe se afastava, puxando o cobertor com cuidado para cobri-lo até o pescoço. Kyle se encolheu em posição fetal, envolvendo a toalha úmida em seus braços como um bebê abraça seu bicho de pelúcia, sua segurança. E chorava. Chorava ininterruptamente. Kenny repousou uma mão em sua testa e o acariciou com o polegar, observando-o com olhos tristes e carinhosos.

Stan atravessou o quarto contra a própria vontade, o corpo se movendo por conta própria, atormentado por aquele som constante de choro úmido, desesperado, o tipo de dor que Stan ouvira em poucos momentos de sua vida. Até então. Bateu a porta com força ao sair.

 

Em trinta segundos, Christophe apareceu do lado de fora. Era tudo o que Stanley não queria nesse mundo. Estava parado na varanda, não muito longe da porta, cobrindo o rosto com as duas mãos. Seu corpo não dava sinais de choro, até um soluço gutural aparecer. Era impossível respirar.

Ao erguer a cabeça, secando os olhos, disse:

-Eu não consigo.

Christophe fechou a porta atrás de si, hesitante sobre como se aproximar.

Fazia um dia bonito. Pássaros ainda cantavam no fim de tarde, o pátio inteiro coberto pela luz laranja do sol poente. Havia vozes de pessoas conversando nos bancos lá embaixo. Christophe pôs as mãos nos bolsos da calça, evitando o olhar de Stan com a mesma intensidade com que Stan evitava o seu.

-Eu não consigo fazer isso. - Stanley repetiu, com uma voz de quem não fazia ideia do que estava dizendo.

-Isso o quê?

-Isso! Isso tudo, ver ele assim, eu não aguento!

O semblante de Christophe era neutro. Não havia confusão ou raiva, como Stan esperava que houvesse, pois era assim que olharia para si mesmo se estivesse no lugar do outro. Com decepção por ter que ouvir um homem tão fraco e patético. Sentia-se fraco. Sentia-se patético. Sentia-se impotente e ignorante, uma criança aterrorizada no meio do oceano precisando aprender a nadar para sobreviver. Christophe, no entanto, não esboçou reação alguma. E então, com toda simplicidade do mundo, disse:

-Então vai embora.

Stan o encarou, os olhos ainda vermelhos, úmidos e arregalados. Parecia quase ofendido.

-Eu nunca… Ir embora?! Ninguém aqui tem pra onde “ir embora”.

-Ninguém te amarrou aqui. Ninguém tá colocando uma arma na sua cabeça. Arruma outro quarto, ninguém vai te forçar a lidar com isso.

Foi só então que Stan entendeu o que ele estava dizendo. Não sentiu necessidade de afirmar que jamais faria uma coisa dessas, porque Christophe já sabia disso. O ponto era exatamente esse, afinal de contas. Não existia “não aguentar” se todas as outras opções eram impossíveis, não somente pela sua consciência, mas especialmente porque, haja o que houver, Stan Marsh amava Kyle Broflovski. E isso era tudo.

Antes que pudesse responder, um grito lá debaixo roubou a atenção dos dois.

-Toupeira!

Era Pete. Ele usava um moletom cinza completamente rasgado, seus cabelos negros e vermelhos pareciam mais sebosos do que de costume e seu lápis de olho estava borrado. Seus olhos, que sempre foram e sempre seriam grandes, enormes, agora pareciam assustados. Christophe se aproximou da grade da varanda.

-O quê?

Apenas duas palavras foram necessárias. Pete não explicou o quê, quando, como, onde, pois sua agitação e um nome supriram tudo o que Christophe precisava saber.

-O Gregory.

 

Pois bem. O Gregory.

Como é cruel esse tempo para o qual olhamos agora. Esse tempo em que a juventude era corrompida, a inocência era dilacerada, jovens tornavam-se adultos por meio da necessidade, da violência. Crescer já é difícil por si só, acredite. É quase como nascer de novo. Quase como morrer.

Christophe entrou correndo, tateando o corredor com a mão sem perceber, tomado por uma terrível claustrofobia enquanto se aproximava da cena. É a seguinte:

Gregory não se parecia mais com Gregory. Era tomado por suor e calafrios, a face deformada por medo e raiva enquanto ele gritava, fazendo um esforço desumano para se manter de pé com as malditas muletas que ele não aprendera a usar, arrastando o peso de seu corpo e da ausência de sua perna, tomado por uma dor excruciante e pelo desespero de não ser tocado por ninguém, enquanto Standish tentava se aproximar com o receio de quem vai domar um leão. Um leão ferido, mas, ainda assim, um leão.

A essa altura, você já deve entender esse pacto silencioso de proteção que Christophe e Gregory compartilham. Poucos o entendem em toda a sua profundidade, e eu nem posso dizer que seja uma dessas pessoas, mas de onde estou agora, tudo fica mais claro. É esse pacto que faz com que Christophe se aproxime de Standish o bastante para empurrá-lo, sem dizer nada, enquanto Gregory gritava com todos ao seu redor e, ao mesmo tempo, com ninguém:

-Eu preciso vê-lo! Sai da porra da minha frente, vocês acham que eu não sei o que tá acontecendo?! Eu não sou idiota, agora me deixa passar!

Michael e Trent também estavam naquele corredor abafado, um na porta do quarto em que Gregory dormia, e o outro, na porta da saída para a cozinha. Nenhum dos dois queria se aproximar.

-O que tá acontecendo?! - Gregory gritou, os olhos furiosos voltados para Christophe, a dor de simplesmente estar em pé contorcendo seu rosto inteiro. Ele se apoiava na parede com o ombro, grunhindo para se endireitar, à beira das lágrimas. - Ninguém me conta merda nenhuma!

-Nada tá acontecendo. - Christophe disse, ocultando toda a sua aflição sob uma grossa camada de firmeza, tentando alcançar os braços de Gregory para ajudá-lo a andar. Mas o outro não reagia bem ao toque, qualquer toque. Empurrou-o com tanto vigor que quase despencou, se não fosse pela mão de Christophe segurando seu braço. Uma das muletas caiu.

Gregory estava fora de si o bastante para não perceber, mas o corpo gritava.

-Para de mentir pra mim! Tem algo errado, eu sei que tem. - A mão livre de Gregory, sem apoio, agarrou-se ao tecido da camisa de Christophe. Gregory não chorava, mas a voz era fraca e os olhos ardiam. - Eu preciso vê-lo. Por favor, Toupeira, eu preciso fazer alguma coisa.

-Gregory, olha pra mim. - A essa altura, Christophe passava o braço em torno dele para sustentá-lo de pé como se Gregory fosse um boneco de pano, um ser inanimado que não dava conta de si mesmo. Mas seus olhos, Deus, como seus olhos eram fortes. Ele ergueu a cabeça, a respiração ainda em euforia. Não tinha condições de escutar. - Ele tá com o Stan e com o Kenny. Tá bom? Foi só uma…

-Eu não posso ficar aqui, eu tenho que ir. - Gregory começou a empurrá-lo como um homem embriagado, tentando dar um passo com a perna que não tinha, ofegante e encharcado em suor, gemendo e apertando os olhos de dor. - Ele precisa de mim.

-Gregory, eu vou te levar de volta pra cama. - Sua voz parecia mais assustada agora. - Você vai se arrebentar inteiro. Tá tudo bem, ele não tá sozinho.

-Ele tá sozinho! - Gregory gritou com toda a força que os pulmões tinham. - Ele tá sozinho, eu tô sozinho! Você não tava lá! - A acusação veio com tamanha força que os braços de Christophe oscilaram e Gregory só não caiu porque suas costas bateram contra a parede, agarrado à muleta que sobrara. Parecia tão sóbrio agora. - Você não tava lá. Você não faz ideia, o Stan não faz ideia, o Kenny não faz ideia. Nenhum de vocês… Ele precisa de mim.

As costas escorregaram pela parede, sem apoio o suficiente para impedir a queda quando seu joelho cedeu, mas Gregory não fez esforço para parar. E Christophe, congelado por um segundo, teve medo de tocá-lo. Agora, era como se Gregory fosse violentamente puxado de volta ao estado de realidade, cobrindo o rosto com as mãos. Não houve som de choro. Estava escuro demais para saber se houve lágrimas ou não. Ninguém disse nada durante segundos que se dilataram pelo tempo. E então, Christophe se ajoelhou ao lado do seu irmão.

E assim ficaram. Sem dizer nada. Standish e Michael trocaram um olhar demorado, enquanto Trent apenas olhava para o chão, os olhos opacos, a cabeça fervendo.

Eles não saberiam dizer quanto tempo se passou, mas eu posso informar: oito minutos. Oito minutos se passaram, até que Gregory afastou as mãos do rosto e murmurou, tão baixo que apenas Christophe ouviu:

-Eu odeio isso.

O Toupeira assentiu devagar. Ele também odiava.

-Me leva pra cama. - Gregory prosseguiu com um suspiro resignado, engolindo o último fiapo de orgulho que lhe restara. Nesse momento, Christophe desejou profundamente que eles estivessem sozinhos. Que ninguém precisasse assistir enquanto ele carregava Gregory em seus braços como a uma criança machucada, cortando pelo silêncio duro do ambiente. Gregory, que nasceu sabendo para onde ir e tinha o dom de fazer com que todos o seguissem. Gregory, que era um líder nato, um desbravador, um homem bravio, dono de si mesmo, um rei. Reduzido a isso. Christophe sabia que Gregory continuava sendo exatamente quem sempre foi, exceto que, agora, mais forte e resiliente do que antes. Sabia, também, que ele levaria algum tempo até descobrir isso sobre si mesmo.

Ao fechar a porta do quarto, Christophe se virou para os três companheiros que conversavam algo aos cochichos. Eles pararam de falar.

-Quem foi o imbecil que contou a ele?

Houve uma pausa tensa. Michael esfregou as têmporas, Trent desviou o olhar e Standish, firme em sua compaixão, deu um passo na direção de Christophe. Queria colocar a mão em seu ombro, tirar um pouco do peso do mundo que caía sobre as costas daquele menino jovem demais para tudo isso. Mas não o fez.

-Ele ouviu a gente comentando. - Michael respondeu.

-Não era pra ele ouvir. - Trent prosseguiu. - O McCormick tava correndo por aí todo fora de si, a gente só ficou preocupado.

Christophe soltou um murmúrio de compreensão. Por um instante, pareceu que nada mais aconteceria. E então, de forma súbita, sua mão cheia de calos envolveu o pescoço de Trent e o peso de seu corpo empurrou o outro contra a parede.

-Christophe… - Standish disse, mas não houve tempo para interferências.

Trent não pareceu assustado. Conhecia o Toupeira de dentro para fora há tempo o suficiente para saber que isso era nada menos do que necessário. O aperto daqueles dedos grossos doía nas laterais e dificultava a passagem de ar. Ele franziu o nariz e estreitou os olhos, que não se deslocaram dos de Christophe nem por um instante.

-Tenta não ser tão idiota da próxima vez. - Christophe avisou antes de soltá-lo, remexendo os dedos da mão dormente. - Eu preciso de uma cerveja.



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