1. Spirit Fanfics >
  2. Liberté >
  3. O Medo

História Liberté - O Medo


Escrita por: caulaty

Capítulo 54 - O Medo


04 de novembro de 3645

 

Serei breve. Há momentos que precisam ser entregues com a agonia da demora, da extensão dos acontecimentos, mas outros devem ser narrados da forma mais objetiva, pois a simplicidade das coisas por si mesmas, às vezes, é o bastante. Refiro-me a esse momento específico para o qual eu e você olhamos agora, momento este em que nada de extraordinário acontece, mas tanto pode ser visto, tanto pode ser sentido. O cenário era o seguinte: chovia uma chuva fina e constante, os ventos do outono anunciando o que seria o rigoroso inverno de 45, longo e difícil, escuro, todos já esperavam por isso. Como se a natureza fosse sensível o bastante para acompanhar os períodos obscuros que a raça humana atravessava. Não que fôssemos tão importantes assim.

De qualquer forma, Christophe estava sentado na varanda de seu quarto, a porta entreaberta e as luzes acesas do lado de dentro, embora não houvesse ninguém ali, ninguém além dele. E nada acontecia. Ele estava sentado em uma poltrona antiga, surrada, cheia de rombos, a espuma do estofado escapando entre os furos. Sua cabeça pendia para a esquerda. Segurava um copo de uísque quase vazio e observava a chuva caindo sobre o pátio. E nada acontecia. Christophe ergueu a cabeça alguns centímetros – milímetros, quem sabe – e relaxou as sobrancelhas, sentindo o calor inevitável do álcool agindo por dentro de sua carne, correndo em suas veias, mas ele nunca relaxa de verdade. Talvez sejam raras as ocasiões em que se pode dar uma boa olhada na expressão de Christophe DeLorne. Certamente não é possível fazê-lo de forma plena quando ele está na presença de outras pessoas, mas nesse fugaz relance de seu passado, sozinho na varanda, apenas ele e a chuva, é possível enxergar toda a exaustão, todo o senso de responsabilidade sobre as outras vidas, toda a solidão e o medo e a fragilidade, todos os rostos dos homens que já matou refletidos em seus olhos, nas rugas de sua pele, no cenho franzido e nas mãos calejadas, a história de Christophe já estava escrita em cada pedaço de seu corpo.

Era um ser visceral, ele.

Das chances que tive de encarar seu rosto em vida, muitas ou poucas, talvez eu nunca o tenha enxergado de verdade. Não com a clareza com que posso enxergá-lo agora. Christophe carregava, à época, um tipo de escuridão que as pessoas não veem porque não conseguem. Porque não sabem como lidar. Porque assusta.

Ele deu um gole e fechou os olhos, repousando a cabeça no encosto da poltrona.

Mas seus ouvidos, aqueles tão bem treinados ouvidos de guerrilheiro, reconheceram os passos que se aproximavam de sua varanda, atravessando as poças de chuva. Um andar característico o bastante para que Christophe nem mesmo precisasse se certificar de que não era um perigo iminente. Era Stan, apenas.

Quando Christophe abriu os olhos – céus, como ele se arrastou naqueles poucos segundos de repouso – lá estava a figura de Stanley, os ombros pesando para frente e a coluna torta, o corpo robusto e saudável, mas olhos azuis sisudos e tristes. Stan se escorava em uma das pilastras que sustentavam o telhado da varanda. Eles se olharam em silêncio durante sete, oito, nove segundos. Stan parecia um vira-lata encharcado e deprimido, pedindo para que o deixassem entrar em casa, mas seria eternamente trancado do lado de fora.

Christophe deu um último gole no restinho do seu uísque e passou a língua pelo lábio superior, esperando. Mas estaria plenamente confortável com a possibilidade de Stan não dizer nada, que apenas ficassem ali em silêncio pelo resto da tarde. Segurando o copo próximo aos lábios, sinalizou com a cabeça para que Stan se sentasse na cadeira de balanço ao seu lado. O outro não se moveu.

Com um suspiro cansado, o Toupeira se obrigou a perguntar:

-Você quer alguma coisa?

Odiava quando o forçavam a falar primeiro.

De certa forma, queria perguntar se ele estava bem. Demos, então, uma boa olhada em Stanley agora, sim? Acho que o inverno deixava seus olhos ainda mais azuis. É redundante dizer que estava abatido, pálido e com olheiras escuras, que perdera 10kg nos últimos meses, embora ainda representasse o porte sadio de um rapaz jovem, forte, pronto para a luta. Tais coisas não me interessam. Quero falar é sobre sua expressão pensativa e a demora de suas reações. Levou alguns segundos para olhar Christophe, o cenho franzido, os lábios tensos, formando um quebra-cabeça em seu cérebro. Bastou para que o Toupeira compreendesse.

Levantou, coçando a barba malfeita, e adentrou a casa sem deixar convite, mas manteve a porta aberta. Quando Stan o seguiu, Christophe já servia um novo copo de uísque, não para si mesmo, mas para Stan, estendendo sua hospitalidade da única forma que conhecia. Stan aceitou o copo com hesitação, soltando um riso fraco, infeliz. Nenhum dos dois se sentou, mas Christophe apoiou o pé sobre a mesinha de centro.

Não encheu o próprio copo novamente.

-Não consigo lembrar do último dia em que não bebi. - Stan murmurou antes de dar um gole. Era uma merda de uísque, aquele. Coisa barata e imprestável, contrabandeada do Canadá. Ardia nos olhos, mas o alívio certamente compensava.

Christophe respondeu com um grunhido, estralando o pescoço antes de massagear a nuca.

Enfim, Stan se sentou no sofá. Apoiou o copo na mesinha, a mesma que sustentava o pé de Christophe revestido pela bota imunda. Stan esfregou o rosto.

-Sabe, isso é bem foda pra mim. - Disse.

-O quê?

Pois bem. “O quê”, senão todas as coisas? Como explicar que absolutamente nada nessa situação não era foda para ele? Stan sacudiu a cabeça.

-Eu perdi quatro dos meus melhores amigos de infância. Não faço ideia de onde e como está minha mãe, minha irmã. E matei um homem com as minhas próprias mãos. Nem me lembro mais da pessoa que eu era antes de tudo isso. E mesmo assim… Tem alguma coisa nos seus olhos, nos de Kyle, nos da Henrietta, alguma coisa que eu… Não entendo. Eu não fui torturado, e o tempo inteiro que eu passo com o Kyle, tenho vontade de me desculpar por isso. Por não ter estado lá.

“Você não estava lá”, a voz de Gregory invadiu a mente do Toupeira. Stan tomou mais um gole. Parecia tão calmo.

-É por isso que eu preciso de você. Da sua ajuda. Eu sei que preciso. - Ele prosseguiu. - Porque você entende. Você já esteve lá, já viu pior, já fez pior. Eu preciso de você, porque o Kyle precisa de você.

Essa pode muito bem ter sido a coisa mais difícil que Stan Marsh já teve que dizer até esse momento de sua vida. A voz saía trêmula, espremida, como as lágrimas que se formavam em seus olhos. Apertava o punho tão fechado sem perceber, até que os músculos tremessem. Quantas vezes não havia ensaiado essas palavras em sua mente? Mas nada se comparava a encarar os olhos ferinos de Christophe, nada se comparava à humilhação e à vergonha de dizer a verdade.

Christophe o observou com estranheza. Não reagiu de imediato. Umedeceu os lábios, enchendo os pulmões de ar antes de qualquer coisa.

-Eu não sei o que você tá pedindo de mim. - Disse com honestidade.

-Pedindo? Eu… - As palavras morreram na boca de Stan. Agora, segurava o copo entre as duas mãos, esfregando o polegar no vidro, a cabeça baixa. - Eu não aguento mais me sentir inútil desse jeito. Não aguento mais não saber o que fazer quando ele acorda gritando, quando ele fica na cama por dias, quando ele entra na banheira e fica imóvel feito um cadáver. Eu preciso… Eu preciso entender. Porque eu não consigo ajudar, eu não sei como ajudar, mas eu preciso. Entende? Eu preciso que você me diga como ajudar, como trazê-lo de volta.

-Tem uma coisa que você precisa entender, Marsh. - Christophe pigarreou por um momento, recolhendo o pé para dar alguns passos em torno da mesa. - Essa pessoa, esse menino que acorda gritando, esse é o Kyle. É quem ele é agora. Ele pode voltar a ser funcional, pode não precisar de você pra dar banho e comida na boca pra sempre, mas você nunca vai ter de volta o garotinho por quem você se apaixonou. Quanto antes você enfiar isso na sua cabeça, melhor pra vocês dois. Porque se ele acha que você não aguenta, ele vai fazer tudo o que ele pode pra ter certeza de que você vai abandoná-lo de uma vez. É mais fácil assim do que ficar se perguntando quando vai acontecer.

-Você acha que eu me importo com isso? De verdade? Eu não dou a mínima se eu tiver que dar comida na boca dele pro resto da vida. Eu não vou a lugar nenhum, cara.

Christophe assentiu com a cabeça, reprimindo a vontade de fumar. Pensou, durante esse breve segundo, que perder Stan seria um retrocesso violento na recuperação de Kyle. Mas não o mataria. Não depois de tudo. De certa forma, era um alívio ouvir aquelas palavras.

-É o Kyle. - Stan murmurou após uma longa pausa. - Não é uma escolha. Você disse que eu podia ir embora, que ninguém me prendeu aqui, mas isso não é verdade. Não é uma escolha realmente. Não tem nada que ele possa fazer que me faria ir embora. - E, em um tom mais amargurado, acrescentou. - Acho que a relação de vocês dois já provou isso.

O Toupeira o observou pelo canto do olho, interessado, mas a expressão continuava a mesma. Havia um ímpeto de pedir desculpas em seu corpo, mas as palavras jamais chegariam à superfície. Não funcionava assim. E pedir desculpas, de qualquer forma, era inútil e vazio. Especialmente quando não havia arrependimento real.

-É uma merda, não é? - Concluiu enfim, um pensamento em voz alta, aproximando-se da janela para observar a chuva. Apoiou o braço na madeira da janela, correndo a mão pelo topo da cabeça. - É uma merda pra todo mundo.

-Desculpa. -Stan disse. E, de todas as coisas, talvez tenha sido aquilo que mais doeu no peito de Christophe. - Essas coisas parecem tão longes. Como se fizesse anos.

-É.

-Mesmo assim. Eu sei o que você deve pensar de mim.

Stan não fazia ideia do que Christophe pensava dele. Não de verdade. E o Toupeira pensou em lhe dizer isso, mas deixou que o silêncio se instalasse por alguns instantes, apenas o som da chuva lá fora preenchendo o ambiente.

-É um pouco difícil entender como você consegue se sentir inútil. - Christophe disse, ainda de costas, encarando o reflexo no vidro da janela. - Você o mantém limpo e alimentado, tira ele da cama todos os dias, é você quem tá lá depois dos pesadelos. Não tem nada de inútil ou de fraco nisso. Eu não sei o que você espera ouvir de mim.

E era verdade o que Christophe dizia. Racionalmente, Stan podia entender isso. Cuidava de Kyle com amor paternal, fraternal, romântico, todo amor que houvesse nesse mundo, oferecia a ele tudo o que tinha e mais um pouco. Mais do que qualquer pessoa. Era ele quem abria mão do próprio sono, da própria paz, das refeições e da sanidade, tudo para padecer ao lado de Kyle, certificando-se de que ele veria mais um dia nascer. E, por mais que Stan jamais fosse admiti-lo em voz alta, havia dias em que ele se perguntava o motivo de tanto esforço. Se, no fundo, Kyle não parecia querer nada daquilo. Mesmo sendo responsável por mantê-lo de pé, a sensação de impotência jamais abandonava Stanley. Por que continuava a se sentir tão terrivelmente humilhado toda vez que encarava Christophe nos olhos, como se ele tivesse todas as respostas do mundo, a poção mágica que traria seu Kyle de volta, e por algum amargo motivo, escolhia não usá-la?

-Você desistiu dele? - Stan perguntou sem pensar. - Quer dizer. Acho que é isso que ele pensa. Que você desistiu.

Christophe não se moveu. Franziu as sobrancelhas, de forma tão sutil que foi quase imperceptível. Observava a varanda e o pátio vazio por conta da chuva, a pedra molhada das estátuas, as árvores que começavam a se despir de suas folhas. Deus, como queria fumar.

-Eu sei que você se importa. - Stan prosseguiu, remexendo o uísque no copo. Perceba como eles não se olhavam durante toda essa conversa. - Vi as coisas que você fez pra tirá-lo de lá. Coisas medonhas. Que você não queria ter feito, eu entendo. Hoje, eu entendo. Então é claro que você se importa, eu não questiono isso. É por isso que… Não faz sentido como, agora, você só aparece quando é chamado. O Kyle não diz nada, não pergunta, mas ele sabe que você não tá lá. E eu… - Um gole amargo no uísque seguiu a frase. - Não há nada que eu possa fazer.

-Não era isso que você queria? Que eu me afastasse?

Stan riu, riu um bufo triste e balançou a cabeça, apertando os olhos com força. Foi o som daquela breve risada, morrendo no ar tão repentina quanto começou, que fez com que Christophe finalmente o encarasse.

-Essas coisas não importam mais, Toupeira. - Disse, com a petulância de quem diz uma obviedade. Soltou o copo. - O que eu quero nunca importou de verdade, sejamos honestos.

Christophe apoiou o braço na parede e esfregou o rosto, pensando no maço de cigarros dentro do bolso traseiro de sua calça, que deveria estar jogada em algum lugar no chão do quarto. Mas não se moveu para buscá-lo. Nem abriu a boca para concordar ou refutar.

-Eu já achei que isso fosse me matar. - Stan prosseguiu de repente, o que o Toupeira não esperava que fizesse. Passando a língua pelo lábio inferior, unindo as mãos entre as coxas, Stan apoiou os pés na mesinha de centro e encarou o nada. - Tudo isso parece tão idiota agora.

Nenhum deles falou durante um bom tempo.

Mas em dado momento, Christophe se desencostou da parede, arrastando os pés até o sofá para se sentar na extremidade oposta. Apenas ficou ali. Separou os lábios como se já soubesse o que dizer, mas não falou de imediato. Stan olhou para ele, sem nada perguntar.

-Quando você volta… - Ele começou, mas mudou de ideia, quase rindo por um instante. Stan não sabia dizer se aquela careta era realmente um riso ou uma expressão de dor. - Você fala do olhar que vê na gente, em quem já foi pego. Bom. Quando você volta, tem esse olhar na cara de todo mundo… De medo. Mas medo de gente fraca, esperando que você quebre ou surte, que você ataque alguém, porque acham que você não funciona mais. Todo mundo te olha assim. Todo mundo. Porque você os lembra de coisas que eles querem esquecer, que eles tentam esquecer o tempo inteiro. Todo mundo… - Christophe fez uma pausa. Tinha os olhos focados na parede de madeira branca que dava para a cozinha, com um retrato de cavalos pendurado, mas não absorvia a imagem. Se virasse o rosto para Stan, coisa que não fez, veria as lágrimas em seus olhos atentos. - Todo mundo vê o que foi feito contigo antes de te ver. E a raiva… - Ele fechou os olhos, deixando o ar escapar pelas narinas feito um cachorro. - A raiva é foda.

Stan secou as bochechas úmidas com a manga do suéter. Eram lágrimas silenciosas; ele mal emitia som, além de um suspiro fraco, tímido. Lá fora, a chuva propunha uma trégua.

-Eu não desisti. - Christophe murmurou. - Quando era eu, tudo o que eu queria era espaço. Ele precisa de espaço.

Stan dobrou as pernas para se sentar de lado, o braço apoiado sobre o encosto do sofá, os olhos grandes e vermelhos. Fungou baixo, estudando o outro homem antes de dizer:

-Você não tá muito acostumado a ter medo, não é?

Enfim, o Toupeira virou o rosto para ele. Não parecia confuso. Mas estava.

-Eu não tô com…

-Ele precisa de você. - Stan interrompeu. - Eu não sei o que é isso, não posso nem imaginar, mas eu sei que… - Precisou respirar em meio à frase. - Eu sei que ele precisa de você mais do que precisa de espaço.

A conversa se encerrou por ali. Mas Stan não foi embora de imediato. Pois, após um longo período de silêncio, enquanto as nuvens abriam espaço para o sol lá fora, Christophe se levantou para buscar a garrafa de uísque e o maço de cigarros. Beberam mais uma dose cada um, ambos em silêncio, Stan respirando a fumaça do cigarro de Christophe. Não tinha certeza sobre nada do que havia dito, se fosse honesto consigo mesmo. Não sabia do que Kyle precisava realmente, se ainda via Kyle naquela pessoa, mas Stan pôde contar com uma única certeza: Christophe estava tão assustado quanto ele. Não tinha nenhuma resposta, nenhuma verdade a oferecer, que não fosse a sua própria. E isso, apesar de tudo, confortou o coração de Stan. Fez com que se sentisse menos sozinho.

 

O céu seguiu limpo de nuvens durante toda a noite.

Na hora do jantar, como era de costume, Stan foi ao refeitório e deixou Kyle sozinho no quarto. Era um pequeno exercício de confiança que começaram a praticar nas últimas semanas, após o incidente da banheira (sobre o qual nunca falavam). Kyle usava uma meia de cada cor, um casaco de lã bege e uma camiseta cavada de algodão embaixo, que era de Kenny, mas acabara em sua gaveta de alguma forma. Ele se endireitou na cama, ajeitando o travesseiro em suas costas, cruzando uma perna esticada sobre a outra. Fazia palavras-cruzadas, um dos únicos passatempos em que demonstrara interesse, e Stan ficou satisfeito em ceder-lhes suas revistinhas. A maioria delas, no entanto, já havia sido feita. Então, Stan riscou todas as respostas com manchas pretas de caneta para que Kyle pudesse refazê-las.

Ao seu lado, na mesa de cabeceira, havia uma xícara cheia de chá frio que Stan fez para ele naquela tarde, mas Kyle não bebeu. Isso também era comum. Ele havia bebido um pouco da água que havia numa garrafa ao lado da xícara, o que poderia ser considerado, certamente, um progresso.

Alguém bateu no vidro da janela. Kyle olhou de relance, desinteressado. Enxergou a silhueta de Christophe, um pouco de seu rosto cansado na penumbra. Pensou sobre como o cabelo dele havia crescido, o tipo de mudança que se destaca quando não se vê alguém durante muito tempo. Já estava assim quando voltaram? Não sabia dizer. Fez sinal com a cabeça para que ele entrasse – a porta estava destrancada, como sempre – e voltou sua atenção à página amarelada cheia de rabiscos.

Christophe gastou alguns instantes parado diante da porta aberta, metade dos pés sobre o pequeno degrau de entrada, os calcanhares ainda no chão de fora. Por fim, adentrou o quarto. Havia um cheiro de menta ali dentro, junto com alguma outra coisa quente que Christophe não soube identificar. Talvez fosse o cheiro de um banho recente.

Após fechar a porta, ele se aproximou da cama com estranheza, como se não soubesse muito bem o que fazer com as mãos, com o próprio corpo. Kyle não acompanhou nada disso, concentrado demais na palavra de nove letras que faltava ser descoberta. Quem havia jogado aquela partida, originalmente, nunca descobrira essa última palavra. Kyle mordia a ponta da caneta, movendo o pé ansiosamente.

-O que você tá fazendo? - O Toupeira perguntou.

-“Condimento asiático”. Com nove letras. Termina com “o”.

Christophe franziu o cenho. Precisou se aproximar da cama e enxergar a distribuição de quadrados no papel para entender do que se tratava. Aquele estúpido jogo antigo, é claro que Standish guardaria esse tipo de coisa. Inclinou-se perto o bastante para visualizar o problema, mordendo o canto do lábio inferior de leve.

-Eu tô nessa merda faz horas. - Kyle resmungou, ajeitando-se contra os travesseiros.

Durante alguns instantes, o Toupeira apenas o observou, terrivelmente concentrado em sua tarefa, batendo com a ponta da caneta contra o papel. Olhou próximo o bastante e por tempo o bastante para que Kyle percebesse, mas o ruivo não desviou seu foco. Pareceu, no entanto, uma boa hora para perguntar.

-Como é que você tá?

Era um tom muito distinto de como essa pergunta normalmente era feita a Kyle nos últimos meses. Um tom simples, mas não casual. Sutil, mas não raso. Profundo, mas não invasivo. Kyle não sentiu necessidade de olhar para ele.

-Eu vou ficar melhor quando descobrir essa merda de condimento asiático de nove letras.

Era justo.

Com um suspiro paciente, Christophe fez sinal para que ele chegasse mais para o lado, sentando-se na beirada da cama. Não o fazia com hesitação de quem chega em um espaço que não é o seu. Esteve naquele quarto pouquíssimas vezes, a última delas sendo o incidente em que carregou o corpo catatônico de Kyle até aquela mesma cama. E tentava não pensar nisso enquanto repousava os pés sobre o colchão sem tirar os sapatos. Kyle não deu a mínima.

Após vinte sólidos segundos de análise, Christophe disse:

-Cardamomo.

-O quê?

-É o seu condimento asiático.

-Que merda é cardamomo?!

-É um… - Ele tentou mostrar com a mão. - Um negocinho. Um condimento asiático.

-Vai se foder. - Kyle disse, quase esboçando um sorriso. - Isso não existe. Você tá inventando.

-Escreve logo essa merda aí.

Balançando a cabeça negativamente, Kyle rabiscou as letras, uma por uma, antes de virar a revistinha para procurar a página de respostas.

-Nem é na sua língua, como é que você sabia isso?!

O Toupeira encolheu os ombros.

Enquanto Kyle sacudia a cabeça e resmungava baixo para si mesmo, folheando as páginas de maneira frustrada, Christophe não pôde evitar que o canto de seus lábios se erguesse um pouco.

-Você parece melhor.

-Não faz isso. - Kyle disse bruscamente. - Por favor. Você não.

Christophe não precisou de explicações. Sabia exatamente do que ele falava. O ar condescendente com que as pessoas sempre tentam introduzir os assuntos sobre os quais o outro não quer falar. Podia entender a ferocidade com que Kyle se agarrava às palavras-cruzadas para engajar a mente em algo produtivo, pois assim que parasse, a realidade continuaria ali, pronta para esmurrá-lo. Christophe não desejava se tornar uma dessas pessoas que sugerem os assuntos a serem evitados. Deus, ele odiava palavras. Como queria não precisar delas.

-O Stan te mandou aqui? - Kyle perguntou de repente.

-Não com essas palavras.

-Ah. - Havia um tom sarcástico em sua voz agora. - Por isso você tá aqui.

E como Christophe poderia dizer qualquer outra coisa? Gostaria. Gostaria muito de conseguir. De dizer que estava ali porque se importava, porque queria dar a ele qualquer coisa de que ele precisava, e tudo isso era verdade. Seu único instinto foi arrancar o livro de palavras-cruzadas da mão de Kyle, não mais suportando a maneira como ele usava o objeto para evitar o contato visual. Kyle, muito obviamente, se assustou com o movimento brusco. E Christophe se sentiu o pior dos homens por isso.

Porque quando Kyle se assustava, ele revivia coisas inimagináveis. Tentou condensar aquela sensação, projetando uma força interna nos próprios músculos de tal forma que chegava a tremer, rangendo os dentes. Encarava a parede, o frigobar e a bagunça sobre a bancada, embora sua mente estivesse em outro lugar. Christophe esticou a mão para tocar seu ombro gentilmente, mas os dedos nem chegaram a fazer contato com a superfície. Kyle já recuou, como se doesse. Não era um ato magoado, mas sim um impulso incontrolável que valia para toda e qualquer pessoa que tentasse colocar as mãos nele. Ser tocado era insuportável.

-Você não faz ideia do que eu daria pra ter ido no seu lugar. - Christophe murmurou. - Deveria ter sido eu.

-Mas não foi você. - Kyle se levantou da cama, tomado pela necessidade de se afastar. - Fomos eu, o Gregory e o Clyde. Não adianta nada lamentar agora.

Christophe sentia uma dor tão aguda no peito e na cabeça, dor por ouvir da boca de Kyle coisas que se pareciam tanto com o que ele mesmo dizia. Largou o livro de palavras-cruzadas na mesa de cabeceira e pôs os pés no chão, mas permaneceu sentado, tentando respirar.

-Eu sinto muito.

Foram tão poucas as vezes que essas palavras saíram dos seus lábios. Mas porra, como elas eram reais naquele momento. E Kyle cobriu a boca com uma das mãos, desviando o olhar, pois não fazia ideia do que responder para isso.

-Não sei o que você quer que eu diga.

-Eu não quero nada. - O Toupeira respondeu com honestidade, levantando-se, mantendo-se ao lado oposto do quarto. Kyle cruzou os braços, não de forma casual, mas como quem tenta proteger os órgãos vitais.

-Então por que você tá aqui?

-Porque eu sei a merda que é sobreviver, Kyle.

Isso o calou. Por um segundo, pelos seus olhos irritados e lábios trêmulos, Kyle pareceu prestes a chorar. Um choro seco, se tal coisa faz sentido. Nada veio, nada além de um gemido fraco ao respirar profundamente. Foi esse o momento em que Christophe tentou se aproximar, dando apenas dois ou três passos, mas Kyle fez questão de afastá-lo com suas palavras.

-“Sobreviver”? Você acha que isso aqui, essa merda que eu sou hoje, que isso é sobreviver?!

-Kyle…

-Eu não sou você! Eu não sou o Gregory, que perdeu uma perna e continua… Continua vivo, continua sendo forte, eu não sou como vocês! - Ele gritava. - Eu ouvia as coisas que faziam com ele… Eu ouvia aquela risada, ainda ouço toda vez que eu fecho os olhos, e agora ele tá aí, são, trabalhando, e eu não consigo nem… Eu não sinto nada, Christophe! Nada! E eu sinto muito que você tenha desperdiçado tanto comigo, porque eu preferia muito que você tivesse me deixado lá.

Ao dizer a última frase, sua voz pareceu terrivelmente sóbria. E Christophe se aproximava dele com angústia, não mais capaz de discernir as barreiras, pedindo com o corpo, pelo amor de Deus, que ele parasse de falar. Mas assim que suas mãos tocaram os braços de Kyle, que o empurrou com desespero, os gritos voltaram:

-Você chegou tarde demais!

As mãos do Toupeira congelaram. E por todos os anos que se passassem, Kyle se lembraria desse momento como um dos únicos em que viu medo real nos olhos de Christophe. Foi apenas por alguns segundos, de hesitação e terror, antes que ele agarrasse Kyle pelos braços novamente para puxá-lo para perto, e nesse tempo inteiro, Kyle murmurava como em um mantra:

-Não sobrou nada de mim, nada, não sobrou nada… Eu te odeio por me tirar de lá, eu podia já estar morto agora…

-Cala a boca. - Christophe sussurrou na voz mais doce de sua vida, as mãos subindo pelo rosto quente de Kyle, repousando a testa contra a dele, deixando que os olhos se fechassem. - Você não pode dizer essas coisas.

Os lábios de Kyle ainda se moviam, mas quase não saía som. A proximidade e a firmeza naquelas mãos fez com que ele, instintivamente, repousasse seu rosto na curva do pescoço de Christophe, deixando-se ser tomado em seus braços. Os olhos verdes, no entanto, permaneciam abertos, vazios, desfocados. E Christophe o apertava como se Kyle fosse areia escapando pelos dedos.

Ficaram em silêncio por sabe-se lá quanto tempo. Christophe descansava o queixo no topo da cabeça dele, onde os cabelos ruivos voltavam a crescer. Sua mão cobria a nuca de Kyle, subia pela parte de trás e descia devagar.

-Eu daria qualquer coisa… Qualquer coisa pra você nunca ter se juntado à resistência. Eu juro por Deus. - Christophe abriu os olhos devagar, as palavras saindo em uma voz rouca, o sotaque francês pesado. - Tudo o que eu queria, como nunca quis nada antes, é que você tivesse uma vida medíocre e feliz com o Stan, bem longe dessa merda toda.

“Longe de mim”, ele dizia nas entrelinhas. Porque para Christophe DeLorne, nunca houve salvação realmente. Nunca houve a possibilidade de se tornar outra coisa, de ser feliz, medíocre e ignorante. A guerra estava nele. Era ele. Assim como era Kyle agora. E durante toda a sua caminhada, Christophe sempre teve certeza de que a luta estaria acima de todas as coisas. Era parte de sua identidade, a única coisa com que poderia, de fato, contar. Até que veio Kyle, alguém que mobilizava suas preocupações de tal forma que Christophe errava o tiro em novembro de 3644, o que quase lhe custou a vida, e capturava um homem inocente em 3645, e voltava da Europa em 3660, todas essas ações foram movidas pelo mesmo fim.

Uma parte dele sempre desejaria nunca ter conhecido Kyle. Teria sido melhor para os dois.



Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...