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História Liberté - A Esperança


Escrita por: caulaty

Capítulo 6 - A Esperança


 16 de março de 3644


 

Quando se planeja uma rebelião, você precisa ser silencioso. Precisa saber guardar um segredo ou dois, saber manter a boca fechada diante das piores condições possíveis, precisa olhar em torno para o seu povo e percebê-los, não como indivíduos singulares, mas como um todo. Não há ego na rebelião, não há a minha ética e a sua. Nós somos todos um só. E você também precisa de um líder, porque há uma proporção tão ampla de pessoas unidas pelo mesmo propósito, é muito fácil se esquecer de que você não é importante no contexto geral, que você é um soldado. Gregory desempenhava esse papel de liderança com perfeição. Podia ser pelo seu rosto belo, a sua voz penetrante e infinitamente certeira que invadia a sua alma e anestesiava todos os sentidos, ou talvez fosse o fato de que ele não se parecia com nenhum de nós, que ele se parecia com alguém da alta sociedade que desceu para dizer aos ratos que eles precisavam lutar pelo que já lhes pertencia. Eu devo ter subestimado o poder de persuasão e a força das palavras de Gregory na época, pois eu nunca imaginaria que ele teria conseguido reunir tanta gente propondo a loucura que propunha naquela época: que arriscassem a vida em prol de algo totalmente incerto.

Talvez eu tivesse me esquecido, levado pelo meu próprio conformismo, que todas as pessoas que apareceram no Café do pai de Gregory naquele dia sentiam na pele, e em níveis muito mais profundos do que eu, o que era a miséria e a exploração. Eu não tinha total compreensão daquelas palavras na época. É claro, eu era dominado pelo desejo de mudança, mas quem não era? Desejar é muito fácil, muito primitivo.

Não sei dizer quantas pessoas eram. A coisa toda se deu em plena luz do dia, no horário em que era permitido andar na rua. Stan e eu entramos no estabelecimento conversando sobre o risco, sobre as consequências do que estávamos prestes a fazer. Falávamos baixo, mas não baixo o suficiente para entregar que estávamos prestes a cometer um crime. Porque a rebelião era, sim, um crime. Qualquer ato de resistência contra o governo era considerado como traição à pátria, ao presidente, homem que nos esquecera naquela terra seca, ao qual jurávamos fidelidade todos os dias. O sino da porta anunciou nossa chegada, mas o barulho foi abafado pelas inúmeras vozes que cochichavam todos os tipos de barbaridades. Estávamos no meio da tarde, algumas horas depois do almoço, então o Café em si estava fechado. Talvez chamar aquele lugar de Café seja uma elegância forçada da minha parte, pois se tratava muito mais de uma taberna escura que proporcionava um buffet pela metade do que se pagaria em qualquer outro lugar, especificamente para os alunos da universidade que não tinham dinheiro para comida. O pai de Gregory era um homem britânico de mais de sessenta anos, bastante intimidador a princípio porque não mostrava seus dentes amarelados para sorrir com frequência, mas convivemos por tempo o suficiente para que eu soubesse que era uma das almas mais gentis que existiam nessa terra. Walter era o seu nome. Apesar da idade, os cabelos ainda eram de um loiro platinado e seus olhos pareciam dois resquícios de um céu que já não era mais azul.

Ele se sentou numa banqueta no canto, fechado, fumando um cachimbo longo com toda tranquilidade do mundo. Olhando de fora, alguém poderia pensar que aquele velho não fazia a menor ideia do que aconteceria se os sapadores de ferro entrassem no seu estabelecimento a qualquer momento nas próximas duas horas. Ele sabia melhor do que qualquer um. Walter, assim como seu filho, também era um guerrilheiro. Havia um preço que ele estava disposto a pagar.

A taberna era escura, mesmo com a sequência de luminárias penduradas em sequência no teto, cuja cúpula era de um vidro grosso em laranja escuro que mantinha o ambiente sombrio, mesmo durante o dia, pelas únicas duas janelas estreitas ao lado da porta não permitirem que a luz penetrasse o cômodo. As tábuas do chão eram de ébano empoeirado e rangiam em determinados pontos quando alguém pisava sobre elas. Pelo ambiente, estavam dispostas poucas mesas redondas de madeira e velhas cadeiras de ferro. A maior parte das pessoas, quando o estabelecimento estava funcionando, sentava-se nos bancos embutidos nas paredes, cujos estofados eram vermelhos quase bordô, contrastando fortemente com as paredes verde-escuro que pareciam pretas sob aquela luz. Ainda era possível ver que as paredes eram listradas, alternando somente a tonalidade do verde entre uma listra e outra, mas aquilo era um detalhe para quem já conhecesse bem a taberna, pois a extensão toda da parede era coberta por cartazes e quadros de complexos mapas de navegação em sépia, fotos de carros de uma época que desconhecíamos, outras fantásticas cenas de Londres e uma imagem do próprio presidente. Na foto, ele usava um monóculo dourado e erguia o queixo com tanta imponência, com um bigode farto e as sobrancelhas grossas, em frente a um fundo de tecido adamascado roxo.

Era como se ele silenciosamente vigiasse os sussurros de uma revolução prestes a eclodir.

O mero pensamento daquele Senhor da Lei espionando o que estávamos prestes a fazer me dava ânsia de vômito. Stanley, como se sentisse a minha apreensão, escorregou discretamente sua mão macia pelo meu braço, descendo até encontrar a minha. Não chegou a entrelaçar os dedos nos meus, apenas roçou, sabendo que eu precisava daquilo. Stan sempre sabia do que eu precisava antes mesmo de eu saber. Meu peito se encheu de calor, bem como as minhas bochechas, e eu quase precisei sorrir. Não tinha vontade de sorrir, não exatamente, mas parecia a única reação possível diante da cena que estávamos presenciando. Mesmo que todas aquelas pessoas continuassem em silêncio, a energia acumulada naquela taberna pequena era dolorosamente contagiante. Era algo que eu não sentia há tantos anos que até havia me esquecido como se chamava: esperança.

Stan não parecia chocado com nada daquilo. E isso não me surpreendeu, pois se havia uma alma regada de esperança, era a dele.

Convém apresentar as figuras que já faziam parte da minha vida antes daquele momento.

Convém ainda mais começar por Wendy Testaburger, a mulher mais forte que já conheci. Um dos seres humanos mais fortes, independente do seu gênero, que já cruzaram o meu caminho. Fazia anos que eu não via essa mulher usando saias, e aquela noite não era uma exceção. A short de veludo marrom era colado na coxa, curto, expondo a pele branca até o joelho, e dali pra baixo só se via a bota de cano alto com as amarras bem firmes, um salto curto, mas significativo para sua postura. O corselet bem amarrado era do mesmo tom do veludo na região da barriga, mas para cima era de um verde caqui amarelado, estupendo, com finas listras pretas. Havia um cinto grosso amarrado em diagonal na cintura dela, com uma enorme fivela dourada. Era uma mulher magnífica. Wendy vinha de uma família aristocrática, rica, mas seus pais viveram como guerrilheiros temidos em uma época distante, quando ela era pequena demais para se lembrar. Desapareceram, como a maioria esmagadora dos rebeldes, nunca se soube o que foi feito deles. Aquilo era uma amargura profunda que Wendy carregava no peito. Foi criada por um tio que a colocou num internato renomado, onde ela precisava vestir rendas, saias e espartilhos. Foi nessa época que nos conhecemos, quando ela ainda era uma menina que fugia do internato para jogar cartas conosco, escondidos embaixo da escada da peixaria. Já havia um fogo dentro dos olhos dela, uma paixão que a movia até aquele momento: Wendy Testaburger tinha certeza de que poderia mudar o mundo. Sempre teve dificuldade para manter a boca fechada diante de qualquer injustiça, e nisso, eu me identificava muito com ela. Wendy podia passar horas discutindo a liberdade sexual, o feminismo, a opressão social, o império. Eu quase me sentia mais seguro por saber que ela estava lá.

Clyde era o próprio espírito da juventude. Meu deus, que alma leve. A vida não foi gentil com Clyde; arrancou-lhe a mãe quando era apenas uma criança, diante dos olhos dele, ela foi espancada até a morte por duas moedas de cobre que roubou para alimentar o filho. Clyde não tinha mais do que seis anos quando tudo aconteceu. Era um dos jovens ao nosso entorno que mais passaram dificuldade naquele sistema impiedoso, mas não lembro de muitas ocasiões em que o vi sem um sorriso largo na cara, mostrando aqueles dentes tortos – e ainda sim terrivelmente brancos – a quem quisesse ver. Era por isso que Clyde sempre tinha uma ou duas garotas envoltas nos braços musculosos, músculos esses que ele adquiriu trabalhando na construção das obras da prefeitura desde que era garoto. Vestia quase sempre – e aquele dia não era exceção – uma boina marrom que cobria os cabelos castanho-escuros repicados e imundos. Ele cortava o cabelo em casa, não havia nada sobrando para barbeiros. O colete que vestia era cinza atrás e azul marinho na frente, a camisa amarelada que deveria ser branca por baixo estava completamente amassada e havia um princípio de gravata borboleta em torno do seu pescoço, embora fosse mais uma cordinha preta que ele tentava fazer passar por uma gravata. Clyde era impossivelmente charmoso. Mal sabia ler e escrever, nunca usufruiu da educação gratuita de especialização que o governo oferecia para manter o povo útil e sob controle. Era, portanto, considerado um peso morto que servia somente para trabalho braçal. Não se importava com isso. Bebia e flertava, mesmo naquele dia tenso, como se fosse qualquer outro. Foi uma surpresa vê-lo ali.

Ao seu lado, como sempre, Craig Tucker. Craig era como uma sombra de Clyde, de certa forma. Estavam quase sempre lado a lado e um era tudo o que o outro não era. Eu não sabia muita coisa sobre de onde Craig vinha, mas até onde tinha conhecimento, tinha pai e mãe vivos e uma irmã mais nova. Seu pai era lenhador, sua mãe era costureira, já fez alguns vestidos para a minha quando éramos mais jovens. Craig era uma das pessoas mais rudes que eu já conheci em toda a minha vida, e não era uma rudeza como a de Cartman, facilmente ignorável por ser trivial. Talvez porque, com Cartman, eu sabia muito bem o que havia por baixo daquelas camadas e mais camadas de grosseria, e com Craig não. Descrevê-lo como uma sombra não poderia ser mais acurado, pois ele estava sempre ali, presente, com o semblante fechado, uma ruga entre as sobrancelhas negras, observando. Sua pele era muito branca, como se nunca tivesse tomado sol na vida, evidenciando muito bem as olheiras escuras sob seus olhos. Craig sofria de insônia, talvez por um conflito com sua própria consciência. Já havia sido aprendido mais de uma vez, sempre por furtos pequenos ou por burlar normas básicas de comportamento, como andar na rua depois do toque de recolher. Também por algumas agressões. O sistema e Craig nunca se deram bem.

Próximo aos dois, mais atrás, escondido sob a proteção da sombra daqueles dois gigantes, estava Tweek, uma das pessoas pelas quais eu mais tinha apreço. Não éramos tão próximos, pelo menos não naquela época, ainda que tenhamos crescido na mesma rua. O pai de Tweek, assim como o pai de Gregory, era um comerciante. Eu tinha quase certeza absoluta de que ele estava ali por influência dos outros dois. Era uma amizade peculiar, quase tanto quanto a que Stan, eu, Kenny e Cartman preservamos desde a infância. E assim como conosco, num primeiro olhar, era difícil dizer o que exatamente os manteve tão próximos. Tweek havia sido diagnosticado como esquizofrênico, mas eu nunca tive certeza do quão acurado era esse diagnóstico e do quanto seus pais realmente deram atenção a isso. Era um garoto cheio de problemas internos, sempre foi. Ele tinha muito medo da própria sombra, de andar lá fora, dos sapadores, de ser pego fazendo o que não devia. Meu coração apertou no peito por vê-lo tão encolhido, aterrorizado, com os olhos verdes esbugalhados e a boca entreaberta, respirando como um cachorro agitado, agarrando compulsivamente o tecido da manga do casaco feito de denim verde militar. Ele passava a mão pelo próprio rosto, pelo cabelo, apertando entre os dedos tudo que pudesse alcançar. Clyde pôs uma mão amiga em seu ombro, o que pareceu anestesiá-lo até parar de tremer. Craig cruzou o olhar comigo, mas sua boca permaneceu uma linha reta, estudando-me com a mesma atenção. Ergueu o copo que segurava, como em um cumprimento, mas de forma tão sutil que eu podia ter imaginado. Retribui com um gesto com a cabeça.

-Ali. - Stan sussurrou ao meu ouvido, levando a mão à parte baixa das minhas costas, conduzindo-nos entre as pessoas que aguardavam, ansiosas, pelo que estava prestes a acontecer. - Está vendo o Cartman?

-Sim.

Ele estava sentado em uma das mesas redondas, era uma das poucas pessoas que se sentiram confortáveis o suficiente para sentar como se estivessem ali pelo rum e pela conversa fiada. Descansava o cotovelo casualmente sobre a mesa, dono do lugar, não devendo nada a ninguém. Kenny não estava com ele. Mas parado, de pé, logo atrás de Cartman, avistamos Leopold, cujos cabelos eram tão loiros que – Kenny sempre dizia – era como se sua mãe tivesse espremido limões na cabeça dele e o esquecido ao sol quando era bebê. Butters sempre tinha um sorriso genuíno nos lábios, mesmo que apenas uma insinuação fraca, mas tal sorriso se tornou inquestionável quando nos aproximamos da mesa, esbarrando em estranhos. Stan o abraçou afetuosamente, apertado, feliz por vê-lo.

-Butters. - Chamou pelo apelido de infância enquanto o soltava.

-Como vai, Stan?

Era extraordinário como os dois podiam fazer parecer que aquele encontro era amigável, casual.

De repente, Gregory deu três batidas fortes na superfície do balcão de madeira para que os poucos estudantes que trocavam palavras enfim silenciassem. Não precisou subir na mesa, como se espera de alguém que está prestes a fazer um discurso para uma pequena multidão. Não esperou mais do que alguns segundos.

-É muito bom ver tantos rostos. - Começou, mas sua voz não era plena e orgulhosa como eu havia imaginado que seria. Gregory apenas parecia exausto. - Eu quero avisar a vocês que não estamos reunidos aqui para fazer algo belo. Sei que tem aparecido todo tipo de ato de resistência nos jornais, as vigílias brancas para os desaparecidos, velas e flores, essa merda não é o objetivo aqui. Então, não estão presos. Retire-se quando quiserem, carreguem consigo a consciência do que acontecerá se abrirem a boca sobre o que ouviram aqui hoje.

Ele alcançou no bolso interno do colete xadrez em busca de um maço de cigarro amassado, alcançando um com a boca e acendendo com um fósforo que descansava sobre o balcão. Eu me sentei lentamente, quase sem perceber que o fazia. Stan continuou de pé, com a mão no meu ombro, como um guardião.

-Agora, aos que ficarem: olhem em volta e compreendam que esses são seus irmãos a partir desse momento. Uma vez que tarefas forem delegadas e começarmos a agir, vocês estarão selando um compromisso uns com os outros de confiança e fidelidade. Aí sim será tarde demais. - Gregory ainda era jovem demais para saber como se fumava um cigarro com elegância. Segurava-o entre o dedo médio e o indicador, gesticulando com a mão em frente ao rosto, pausando para tragar vagarosamente e com prazer. Voltou-se a Wendy, que aguardava de pé segurando uma pasta verde com as duas mãos. Fez sinal com a cabeça para que ela se aproximasse. - Wendy.

-Nós já conversamos algumas vezes. - Ela disse ao resto de nós. - Estudamos o que está sendo feito nos grandes capitais. Nova York está tomada pelo movimento dos Monarcas. - Era assim que os militantes rebeldes liderados por Terrance e Phillip eram chamados. Devia haver algum humor obscuro naquele nome. - Existem dois tipos de aproximação: a intelectual, e para isso precisaremos de artistas... Desenhistas, escritores, historiadores, gente que possa redatar folhetos de jornal, pichar construções do governo, caricaturas do presidente, mas em um volume significativo e anônimo. Precisamos de gente rápida, esperta, para fazer o trabalho de informação. Nós ainda somos muito poucos, não há possibilidade de confrontos armados sem a atenção e a coragem do povo. Há um despertar ocorrendo, vocês sabem. Em Nova York, em Chicago, na Philadelphia, em Los Angeles. Nós temos notícias de banhos de sangue diariamente, oficiais do governo sendo atacados, desaparecendo... Não chegaremos a lugar nenhum sem uma população revoltosa, e para isso precisamos instigar em um número cada vez maior de pessoas aquilo que nos motiva a estar aqui hoje.

-E a outra? - Craig perguntou, apoiando o cotovelo na mesa. - Você disse que são duas formas.

Havia quase um brilho de luxúria nos olhos dele, visivelmente mais interessado em outras formas de protesto.

-Bem. - Gregory respondeu por ela, abraçando o próprio tronco com um braço e erguendo o outro com o cigarro, limpando a garganta. - Nós temos uma comunicação, ainda que limitada, com os Monarcas em outros pontos do país. Todo mundo que se une à oposição precisa entender que certas medidas são necessárias.

-Como o quê? - Stan perguntou logo atrás de mim, tirando a mão do meu ombro para se apoiar na mesa. - Matar oficiais? Usar embaixadores como moeda de troca, sequestrar, matar?

-Também. - A resposta veio com uma fria tranquilidade, como se ele já tivesse feito as pazes com aquilo há tempos. - Mas existem outras formas. Os Monarcas usaram granadas para destruir o parlamento, decapitaram todas as estátuas do presidente em Nova York, denegriram patrimônios públicos, invadiram assembleias.

-Sequestraram gente inocente.

-Inocente é uma palavra um pouco forte, Stan. Sabe quantos prisioneiros políticos eles liberaram pela cabeça de um puto da câmara municipal?

-E você sabe o que eles têm feito com as famílias dos militares? Os filhos, as mães, que não tem nada a ver com isso? - Agora, Stan falava alterado e se afastava de mim para dar a volta na mesa, aproximando-se de Gregory, cujo sotaque parecia mais pesado do que nunca. Apesar da distância, Stan se voltou na minha direção, depois olhou para Wendy, como se lançasse a pergunta especificamente para nós dois. - Você acha isso certo? Olho por olho deixa todo mundo cego.

Ele dizia a verdade, naturalmente. Era fácil com os sapadores, os andróides, era fácil não vê-los realmente como humanos. Mas quando um sistema tão delicado se forma e você passa a dividir o mundo entre os que estão do seu lado – o lado do povo – e os inimigos – os militares, os governantes ufanistas, os defensores da ordem – torna-se quase impossível ter sensibilidade com a dor do lado de lá, que é tão humana quanto a dor daqui. A mídia, cautelosamente orquestrada para representar as intenções do Estado, alegava que os Monarcas não passavam de um grupo terrorista. E eles eram mesmo. Terrance e Phillip se tornaram ícones por isso. Dois rostos canadenses que representavam a libertação extremista, o princípio da lei de Talião, a luta armada que não teria fim enquanto o povo americano não fosse livre e a guerra contra o Canadá cessasse. Os movimentos revolucionários grandiosos – talvez isso fosse um padrão na História da humanidade – não apenas derramava sem pudor o sangue de nossos inimigos, como também os próprios revolucionários não temiam oferecer seu sangue pela causa. Era isso que Gregory pedia de nós.

Opiniões começaram a ser emitidas por todos os lados. Cartman esbravejava para que Stan parasse de ser um hippie imundo e se sentasse. Clyde se inclinava sobre sua mesa e trocava ideias em voz mais baixa com Craig, mais em tom de questionamento do que de conclusão, como se estivesse chegado ao café com sangue nos olhos e agora uma luz lhe tivesse sido revelada. Tweek apenas balançava a cabeça negativamente em terror para o que quer que dissessem. Um burburinho tomou conta do ambiente, contaminando as vinte e poucas pessoas que ali estavam.

Gregory fumava quando precisava de paciência; coisa que nunca veio sobrando para ele, é verdade. Correu os dedos pelo cabelo cuidadosamente penteado para trás com gel e disse em uma voz mais agressiva, lutando para se sobrepôr às outras:

-Ouça, se alguém mais tem um problema com isso, eu sugiro que se retire. Nós temos coisas importantes a conversar.

-Não, espere aí, Gregory. - Wendy protestou. - Ninguém se colocaria sob o risco que é estar aqui se não tivesse um real desejo de lutar por mudança. Você não pode expulsar ninguém por divergências ideológicas, Stan tem todo direito de questionar os métodos agressivos. Todos nós temos. É justamente por direito de expressão e liberdade que nós estamos aqui.

Ele levou a mão livre ao peito com um requinte de ironia britânica que teria sido engraçado em qualquer outra ocasião.

-Mas questione, Wendy. Questione o que você quiser. Só não nos faça perder tempo precioso buscando uma saída pacifista que, se existisse, já teria sido posta a prova há muito tempo. Ou vocês realmente acreditam que alguém quer passar a mão em uma criança pra ter suas exigências minimamente levadas em conta?!

O circo se formava bem à minha frente e muito depressa. Wendy cerrava os punhos, Stan se aproximava deles trotando como um cavalo, com um discurso inteiro na ponta da língua. Uma garota entre as cabeças ao meu redor, de dread no cabelo e coberta de tatuagens, gritava que não existia revolução limpa. Os outros discutiam fervorosamente entre si, poucos parecendo não ter uma opinião formada a respeito da procedência de um grupo de rebelião. O senso de irmandade do qual Gregory acabara de falar parecia te se esvaído completamente.

Eis que de repente, pelos deuses, uma garrafa de rum estoura na beirada de uma das mesas, emitindo um som tão estrondoso que não houve uma cabeça sequer que não tivesse se virado em busca da origem do barulho. Em período de guerra, todos nós parecíamos viver na constante espera de um bombardeio. Stan pareceu se esquecer completamente do atrito com Gregory, virando-se na minha direção com os olhos azuis – um azul escuro digno de devoção, raríssimo – assustados, parecendo tranquilizar assim que me viu. Eu aproveitei para chamá-lo de volta à mesas com o olhar. Butters também estava sentado agora, roendo as unhas dos dois polegares ao mesmo tempo. Cartman balançava a cabeça em reprovação, revirando os olhos.

Eu empurrei a cadeira para trás ao me levantar, pondo as duas mãos abertas sobra a superfície de madeira.

Surgindo de um canto escuro próximo aos banheiros do café, segurando a boca da garrafa quebrada na mão direita, avistei o verdadeiro espírito da revolução. Eu ainda tinha cravada em minha mente a imagem da primeira – e até então única – vez que o vi, o Forte, vestindo uma camisa verde tão escura que parecia preta, abotoada até a metade, expondo um pouco do peito dele, suja do que parecia ser sangue. Ele vestia exatamente a mesma camisa, só que dessa vez estava fechada até os últimos dois botões. As botas iam até abaixo dos joelhos dele, uma delas desamarrada, o cadarço solto deslizando no chão conforme ele se aproximava de Stan, umedecendo os lábios. Aquilo, por algum motivo, fez meu coração bater tão forte que queria sair pela boca. Christophe largou aquele caco imenso do que costumava ser uma garrafa sobre o balcão, a língua ainda deslizando pelo lábio superior, erguendo levemente um dos lados da boca de forma que a maçã do rosto subisse e o olho se estreitasse em desconfiança. Durou apenas um segundo. Quando o banho de luz alaranjada caiu sobre seu rosto, revelou os hematomas roxos, alguns até esverdeados, que já não aparentavam tanto inchaço. Lembrei-me imediatamente da surra que ele levou quando o vi pela primeira vez. Ele segurava na mão esquerda um pequeno copinho de alumínio que usava como cinzeiro momentos antes, usando-o agora para cuspir dentro antes de largá-lo também em cima do balcão.

-Como é seu nome? - Perguntou com os olhos cor de mel fixos em Stanley, erguendo um pouco o queixo, insinuando um sorriso malicioso enquanto beliscava a ponta do nariz com sua mão enfaixada. Foi a primeira vez que ouvi sua voz rouca, carregada do sotaque francês de quem acabou de aprender uma segunda língua.

-Stan. - Ele fez uma pausa. - Marsh.

-Marsh. Você já foi à guerra?

-Não, eu nunca fui. - Stan respondeu com simplicidade, sem preparar qualquer defesa.

-Você é americano, eu suponho.

-Sou sim.

Christophe balançou a cabeça em compreensão. Havia uma expectativa tensa no silêncio dos espectadores em torno deles.

-Então imagino que nenhum oficial tenha arrombado a sua casa e estuprado a sua mãe bem na sua frente ou coisa do tipo, certo? Porque você não é filho de uma desgraçada francesa e nunca viveu numa zona de guerra, onde os soldados faziam fila para comer todas as mulheres que pudessem encontrar.

Stan franziu a testa, começando a ficar impaciente.

-E do que você chama isso aqui? Nós vivemos uma guerra civil. Eu vivo a ditadura na pele tanto quanto qualquer um de vocês. - Ele erguia mais a voz agora, olhando em volta por um momento. - A partir do momento em que começamos a fazer o mesmo que eles, não estamos lutando por mudança nenhuma.

-Quando você vê uma cena dessas, Marsh, uma fila de homens sedentos por carne e tantos outros que não estupram ninguém, apenas observam, uma coisa se torna muito clara: não fazer nada diante de uma atrocidade pode ser ainda pior do que executá-la. Aqueles que você chama de inocentes são os omissos, os filhos da puta que não se importam conosco, o escárnio. Ou são covardes demais para fazer alguma coisa.

-Isso não importa! Eu não dependo da compaixão de ninguém pra não me tornar um monstro.

-Não existe “eu” numa rebelião, Stan. - Gregory acrescentou, tentando soar racional. Pôs uma mão no ombro de Christophe como se pedisse para que ele voltasse para onde estava.

Mas Stan não deu atenção a ele, continuava sugado pela presença dominante de Christophe. Era uma energia animalesca e eu podia ver que Stan também a sentia, que aquilo chegava a assustá-lo. Estava tão envolto pelo olhar sangrento daquele homem francês um pouco mais baixo do que ele que mal podia pensar. Eu chamei seu nome, esticando a mão para acenar que ele se aproximasse, mas nem mesmo consegui fazer com que olhasse para mim.

-Ouça. - Deu um passo na direção do Toupeira, que ergueu o queixo. - Vocês estão falando de destruição, de ódio. Nós já temos o suficiente disso em nosso mundo. Todas as conquistas que fizeram pelo medo não conscientizam ninguém, não mudam nada. Ao sequestrar a filha de um governador ou queimar uma câmara que pode ter gente dentro, estão ensinando esses ignorantes a terem mais ódio, não a nos enxergar como seres humanos. Eles têm muito mais poder de fogo e matam, torturam cada vez mais o povo até que aprendamos a nos comportar. Isso não faz com que eles entendam.

Christophe soltou algo parecido com um riso baixo, apoiando o braço na bancada, sacudindo a cabeça. Logo, aquela careta que se assemelhava a um sorriso sarcástico desapareceu por completo.

-Você conta com a boa vontade daqueles que têm a cabeça pequena e a barriga cheia, monsieur Marsh. Vai morrer faminto esperando pela revolução pacífica.

-Existem outras formas.

Eles estavam muito próximos agora, como se não tivessem acabado de se conhecer, um encarando o rosto do outro. Eu não sei o que viram nessa troca, sei apenas de como me pareceu olhando de fora: um contraste grosseiro entre aquela beleza aristocrática harmoniosa do rosto polido de Stan, o nariz reto e as covinhas, as maçãs do rosto altas e elegantes, a forma arredondada do maxilar, tudo em contraponto com o rosto quadrado e agressivo de Christophe, aquele tipo de beleza imunda, os olhos penetrantes como os de um gavião.

Gregory estava entre os dois. Decidiu se pronunciar:

-Stan, por favor. Nós não temos muito tempo. Não existe outra medida a ser tomada, nós precisamos começar a nos organizar.

Stan voltou o olhar para ele, dando um passo para trás como se isso tivesse rompido qualquer que fosse o feitiço que Christophe tinha sobre ele. Eu conhecia Stan quase melhor do que a mim mesmo; sabia portanto que, mesmo diante do silêncio e do olhar contido de decepção, ele estava prestes a cerrar os punhos – e assim o fez – para conter a raiva. Respirou fundo, mas continuou sem dizer nada. Gregory prosseguiu:

-Eu espero continuar te vendo aqui.

-É, eu não acho que vá.

E com isso, Stan deu meia volta, marchando para fora, passando por mim como se não lembrasse que eu estava ali também. Eu fiz menção de seguí-lo, mas antes voltei o olhar para o Toupeira, aquela criatura exótica e intimidadora. Ele se inclinava sobre o balcão para alcançar um palito de dente, levando-o à boca enquanto se virava, encontrando o meu olhar. Eu abaixei a cabeça instintivamente, como se tivesse sido pego fazendo algo errado. Quando me deu conta disso, voltei a encará-lo, somente para ver que ele não havia movido um músculo. Continuava ali parado, com o palito preso entre os dentes, aqueles olhos castanho-esverdeados manchados de amarelo me comendo vivo, a expressão dura como se ele observasse uma parede sem qualquer pudor. Eu ouvi a voz de Cartman resmungando algo como “finalmente”, mas, ainda que ele estivesse bem ao meu lado, soava a milhas de distância. Foi só quando Christophe ergueu as sobrancelhas para mim, talvez em questionamento, é que eu pude quebrar o contato visual e andar em passos firmes atrás de Stan.

-Espere. - Eu gritei para ele assim que saí do café, correndo para encontrá-lo. Não era preciso; ele parou imediatamente e virou de lado para me aguardar com as mãos nos bolsos.

Absolutamente não parecia alterado.

-O que foi? - Ele me perguntou como se nada houvesse.

Quando o alcancei, minha própria respiração estava alterada. Eu não sabia dizer se era pela pequena corrida, pela tensão ou pela maneira com que aquele homem animal me encarou. Esfreguei o rosto com as duas mãos, sentindo minha pele muito quente contra o toque. Ao abaixá-las, encontrei aquele par de esferas azuis me observando com toda gentileza que havia no mundo. Peguei no braço dele com cautela, afagando carinhosamente como se isso pudesse oferecer uma espécie de conforto antes de dizer:

-Stan, eles têm razão.

Como eu esperava, a expressão dele se fechou em um segundo.

-Você não pode estar falando sério.

-Eu também não gosto disso, tá bom? - Olhei em volta, escaneando a ruela deserta. Os paralelepipedos estavam molhados, mas não chovia mais. Fitei a câmera no topo do poste mais próximo de onde estávamos, logo me voltando a ele, quase sussurrando. - Nós não podemos falar disso aqui. Eu sei que isso tudo te faz mal, mas nós sabíamos que seria difícil. Volte pra dentro, por favor.

-Não, eu... - Ele encolheu os ombros, desconfortável. Suspirou fundo. - Volte você. Eu não tô pronto pra isso.

Havia verdade na sua voz. Stan não era o tipo de pessoa que diz uma coisa esperando que eu fizesse outra. Então levei as duas mãos ao seu rosto e o puxei contra mim, me colocando na ponta dos pés para encontrar seus lábios frios, suaves, encaixando-os nos meus, sentindo sua respiração quente. Escorreguei as mãos para o pescoço dele e senti um dos seus braços envolver a minha cintura, puxando-me para um abraço tão bem encaixado, tão confortável. O beijo foi curto, barulhento, nossas línguas não chegaram a se encontrar. Rocei a ponta do nariz pela bochecha dele, beijando sua face, sussurrando contra sua pele:

-Eu te amo, Stanley.

Fui tomado por uma vontade incontrolável de dizê-lo, simplesmente por ele ser quem era. Por ele acreditar em coisas que nenhum de nós podia.

Ele sorriu.



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