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História Liberté - O Horizonte


Escrita por: caulaty

Capítulo 8 - O Horizonte


04 de setembro de 3644

 

Stan tirou o casaco assim que entrou no quarto e o fez com certa dificuldade, devido à quantidade de camadas de roupa que havia por baixo. Fez menção de jogá-lo sobre a poltrona logo ao lado da porta, mas teve a sanidade de parar (ele sabia muito bem o quanto isso me irritava), dirigindo-se ao armário para pendurá-lo no cabide, oferecendo-me um sorriso sem graça que imediatamente me lembrou meu irmão mais novo quando estava prestes a fazer uma malcriação e nossa mãe chegava de repente. Lembrar de Ike me provocou uma pontada dolorosa no meu estômago vazio. Stan costumava saber de longe, pela microexpressão do meu rosto, quando eu sentia essa dor. Era de um tipo muito específico. Arrancou um sapato de cada vez e engatinhou devagar na cama, onde eu estava deitado com um livro no colo. Eu tinha que segurá-lo com cuidado, pois a coisa se desfazia depois de anos e anos sendo devorado por traças.

Ele se ajoelhou ao meu lado e estendeu a mão para afastar o cacho que caía sobre a minha testa, usando seus dedos grossos para fazer carinho no meu cabelo. Eu tinha adoração por aqueles dedos, pelos pêlos escuros que cobriam seu braço, a mão pesada e gentil que sabia me acalmar com tanta simplicidade. A pele de Stan estava sempre quente. Ele passou anos trabalhando como ferreiro com seu pai, até que lhe fosse designada a função de estudar jornalismo (afinal de contas, a comunicação midiática fundava o controle do governo sobre a população), mas mesmo tendo desempenhado esse cargo de trabalho pesado durante toda a adolescência, sua palma continuava macia. Deitei meu rosto contra sua carícia, roçando a bochecha como faria um cachorro, sorrindo vagamente.

Stan tinha olheiras escuras, eu pude perceber. Na verdade, ele quase sempre tinha. Sua pele era muito pálida e seu cabelo era muito escuro, o que acentuava aqueles círculos arroxeados sob os olhos. Ele dormia sempre muito mal, como meu pai, com um instinto de proteção tão forte, esperando por um bombardeio na rua ou coisa pior. Era seu estado natural àquela altura. Eu tive vontade de puxá-lo para perto, mas não me movi. Ele beijou o canto da minha boca e se ajeitou ao meu lado, seu corpo nem tão sentado e nem tão deitado, espreguiçando-se. Ainda usava o moletom preto e azul marinho, que levantou conforme ele arqueava as costas e gemia, expondo o suéter bege de lã que havia por baixo.

–Dia cheio? - Perguntei.

–Não muito. Quando os homens de branco fazem... “Limpas”, acho que podemos chamar, ninguém quer sair na rua. Mesmo quem não deve nada. Você sabe como é.

–Céus. - Cobri o rosto com as duas mãos e o esfreguei. Meus olhos ardiam. Stan costumava ficar muito perturbado com o que via nas limpas das ruas, quando hordas de homens de branco varriam os becos para dar um fim aos mendigos, prostitutas e quem mais fosse conveniente. Muitos miseráveis eram exectuados ali mesmo, à luz do dia, porque ninguém os defenderia e ninguém sentiria falta deles.

Eu já fui visitar Stanley no armazém em determinada ocasião e passamos quase dez minutos em silêncio assistindo ao dono da peixaria em frente esfregando uma mancha imensa de sangue na parede de tijolos, logo ao lado de uma placa que dizia “linguado em promoção”.

Quando abaixei as mãos, Stan segurou meu braço e apertou de leve; era um gesto de apoio.

–Gregory me falou que vai haver uma outra reunião. - Eu disse a ele e fiz uma pausa, esperando por algum tipo de reação. Stan não reagiu. - Você vai?

Ele sabia o que eu estava perguntando. Não era apenas “você vai à reunião?”. Era um “você vai fazer parte disso? Da luta, da causa, do sangue derramado?” Desde o último ocorrido, meses antes, Stan se ausentou de tudo o que tivesse a ver com a revolução, dentro dos seus limites. Porque ele morava com duas pessoas que faziam parte constante disso. Não havia exatamente como não se envolver.

Tentei espantar do meu cérebro a voz horrivelmente melódica do Toupeira dizendo “seu amigo não vai aguentar”, chamando Stanley de pobre coitado idealista por tabela, por não compreender que qualquer revolução precisa pesar o extremo oposto e destruir para construir. Eu não acreditava nisso realmente, assim como não acreditava que Stan não pudesse aguentar. Só não sabia ao certo se ele queria. Não havia um pingo de dúvida em nenhuma célula do meu corpo que Stan vislumbrava um mundo verdadeiramente humano, que acreditava cegamente na essência dos ideias defendidos pelos Monarcas ou quaisquer outros grupos radicalistas que se usavam de violência para resistir à opressão. Mas ele também acreditava cegamente que, a partir do momento em que se abre mão da humanidade para fazer o mesmo que os opressores, esse propósito se perde.

Ou pelo menos era isso que eu pensava que ele pensava. Não conversávamos sobre esse tipo de coisa tanto quanto eu gostaria.

–Você vai? - Ele me retribuiu a pergunta. Era a única coisa que eu não queria ouvir dele.

–Eu preciso, Stan. - Respondi sem hesitação, da forma mais honesta que eu pude. - Ele continua vivendo num porão úmido e gelado, eu fico esperando o tempo inteiro uma ligação da minha mãe dizendo que ele contraiu pneumonia ou que... Que o encontraram.

Nós nunca mais falávamos o nome de Ike em voz alta. Era proibido. Stan encontrou uma maneira de se referir a ele sempre que necessário: “o peixe”. Foi um apelido que ele deu ao meu irmão antes mesmo de começarmos a namorar. Eu nunca entendi exatamente o motivo, acho que nem Stan sabia explicar. Também me sentia muito desconfortável em usá-lo, mas veio muito a calhar quando a coisa toda aconteceu. Não dizer o nome de Ike em voz alta parecia contribuir com o seu desaparecimento, como se ele não pudesse mais existir no mundo em que vivíamos. Como minha mãe era uma filiada e ativista do partido, uma figura pública na guerra contra o Canadá, eu era obrigado a manter um perfil ainda mais discreto e Ike foi declarado como morto para que pudéssemos escondê-lo no porão até que a guerra acabasse – o que minha mãe acreditava que não demoraria, mas eu tinha um palpite bastante contrário, pois ela já nos dizia isso há anos. Em partes, o ativismo de minha mãe auxiliava na nossa tarefa; ninguém desconfiaria do meu envolvimento em qualquer núcleo clandestino de revolução.

Talvez minhas motivações para me juntar àquele grupo fossem muito mais egoístas do que eu admitiria em voz alta. Eu já havia tentado, de outras formas, convencer minha mãe a tirá-lo do país. Ele estaria mais seguro no Canadá, vivendo com alguma família a quem pagaríamos muito dinheiro para manter a boca fechada. Era um risco imenso, quase trágico, mas qualquer coisa me parecia melhor do que ver meu irmão definhando naquele porão úmido por ser canadense. Nossa mãe, naturalmente, refutou em absoluto a ideia. Meu pai era submisso diante dela, não teve o que dizer a respeito. Eu tirava alguma satisfação mórbida em lutar pelas costas dela por uma causa contrária, uma causa que ganhou força pelas mãos de dois homens canadenses em Nova York, um movimento rebelde que visava derrubar o presidente que minha mãe defendia como uma espécie de Deus. Não era incomum ver um altar para o presidente nas casas do subúrbio, as casas de “gente honesta”, como diziam. Contaram-nos que houve uma época em que esses altares que cultuavam uma imagem eram associados a figuras religiosas, não políticas. Mas a religião se perdeu quase que totalmente.

Gostaria tanto de olhar para trás e pensava que eu fiz tudo o que fiz por um mundo mais justo, igualitário, em que o povo tivesse voz. E é claro que eu desejava desesperadamente tudo isso. Mas olhando bem fundo dentro de mim, eu estava disposto a fazer qualquer coisa para que Ike pudesse viver como qualquer pessoa. Para que ele pudesse ser livre e não precisasse comer os restos para que ninguém desconfiasse de que meu pai estava cozinhando demais. Eu quase não o via mais. Não gostava de visitar a casa de meus pais, e quando o fazia, era exclusivamente por ele.

Stan me envolveu em seu braço e me puxou contra o seu peito carinhosamente, despido dos receios daquele assunto, plantando um beijo no topo da minha cabeça quando cedi ao contato, juntando meu corpo ao dele. “Sua mente vai para lugares tão obscuros”, ele me dizia com alguma frequência. Não havia como esconder nada dele; a simples menção de Ike costumava fazer meus olhos arderem. Mas eu nunca chegava a chorar por causa disso.

–Você sabe que... Uma vez que se entra nisso, não existe volta. - Stan sussurrou com os lábios colados no meu couro cabeludo, virando o rosto um pouco para roçar a bochecha quente contra os meus cabelos. - Nós vamos saber de coisas... Eles não vão nos deixar recuar se a coisa ficar feia. É assim que os Monarcas trabalham.

–”Nós”? - Perguntei, levantando a cabeça.

Ele hesitou um pouco. Mas foi apenas um vislumbre de medo que refletiu nos seus olhos azuis, escurecendo. Separou os lábios alguns segundos antes de falar.

–Se você fizer parte disso, eu não tenho escolha. Não vou te deixar sozinho.

Franzi a testa, apoiando uma mão na coxa dele para erguer o meu tronco e me virar de frente para ele. Stan parecia achar que esse tipo de gesto era tão natural, até mesmo romântico. Eu não conseguia evitar o quanto aquilo me era incômodo.

–Ei. Não, você não pode jogar essa decisão nas minhas costas.

–Não estou. É a minha escolha.

–Baseada na minha. Isso não é certo, Stan. Não é uma brincadeira. Se você não estiver preparado, se você não acredita no que nós temos que fazer...

–Eu acredito em você.

Sua voz era tão macia que quase me torturava. Ele trouxe a mão à minha bochecha, tentando aproximar o rosto do meu, mas desviei o olhar e bufei. Ainda podia sentí-lo fitando minha expressão com ternura e curiosidade; sabia exatamente como seus lábios estariam levemente partidos e haveria um brilho infantil nas suas pupilas. A mão deslizou pelos meus cachos, alisando-os para trás, expondo a minha testa para beijá-la.

–Vai chegar num ponto em que você terá que fazer coisas que você não quer fazer. - Murmurei, voltando a encará-lo. - E você vai me ressentir por isso.

–Isso não vai acontecer.

Stan tinha o terrível habito de me prometer coisas que ele sabia que não poderia cumprir. “Tudo ficará bem, Kyle”. “Ninguém vai encontrar o Peixe”. “Nós veremos o fim da ditadura”. “Sua mãe vai perceber que está do lado errado”. Ele mentia constantemente para mim. Ou talvez não fosse mentira, até aceito que ele realmente acreditasse nas coisas que me dizia. Esse era apenas um dos traços opostos entre nós: sua natureza era otimista, esperançosa. Eu nunca consegui compreender isso. Vivendo no ambiente em que fomos criados, eu nunca aprendi a ter esperança. Stan era como essas flores que teimam em nascer em meio aos escombros e ninguém sabe dizer como.

De qualquer forma, uma decisão foi tomada naquela noite. É claro que ele se arrependeria amargamente de não ter percebido ali, enquanto havia tempo, que nossos ideias distintos eventualmente nos arrancariam um do outro. Eu compreendo como ele não viu isso antes. Deitado naquela cama, com meu corpo junto ao dele, parecia impossível que qualquer coisa nesse mundo nos separasse. Ele era o que eu tinha de mais seguro em vida. Parte de mim, angustiada, desejava que ele não se unisse ao movimento. Não era seguro, eu tinha consciência. Não era essa a razão pela qual Stan não acreditava nos métodos dos Monarcas. Ele era um pacifista. Era muito difícil que eu me pegasse orando por qualquer coisa, mas quando acontecia, era para que Stan nunca fosse recrutado para a guerra. Seria improvável, eu sabia, que pegassem jovens de uma cidade tão pequena que contribuíam com trabalho intelectual. Mas o governo não no daria escolha se decidisse que éramos aplicados para o campo de batalha.

Eu cortaria meus pulsos antes de permitir que me mandassem à guerra.

Nos dias que se seguiram, a preparação para os dias piores finalmente começou. Diante da decisão de Stan, nosso apartamento se transformou em uma pequena redação onde os folhetos eram produzidos. Foi assim que procurei acalmar o espírito inquieto de Stanley, mostrando a ilusão de uma luta mais ideológica. Ele também sabia que aquilo era falso, o que nós realmente fazíamos era criar um material que recrutasse mais guerrilheiros. Gente como nós, de nem vinte anos, nós teríamos que convidá-los à luta da forma mais silenciosa possível. Convidá-los a morrer ao nosso lado. Nós precisávamos de gente. Stan falava sobre a conscientização do maior número possível de pessoas, mas eu sabia que a única forma de fazer isso era inflamar o ódio que já existia para que, quando fizessemos barulho o suficiente, o povo demonstrase a sua fúria. Consciência, todos nós já tínhamos, todos vivíamos na pele todos os dias.

Gregory se ocupava de outras coisas, fora de casa quase o tempo todo. Nós o encontrávamos na faculdade, onde não se podia realmente conversar sobre os planos consequentes. Certa vez, perguntei se seu amigo francês voltaria à universidade para estudar.

–Não acredito que vá. Ele não quer pisar aqui.

Acreditei naquilo, soou como uma resposta honesta. Estranhamente, na semana seguinte, o Toupeira apareceu no salão central da universidade vestindo uma flanela azul marinho aberta com uma regata branca por baixo, usando um óculos de grau que me fez quase não reconhecê-lo. Lia alguma coisa. Nossos olhares se cruzaram brevemente entre aquele monte de cabeças baixas que atravessavam o salão, a maioria subindo a imensa escadaria que levava às salas. O salão era nobre, diferente de seus frequentadores. Christophe estava logo abaixo do imenso lustre de cristal que se assemelhava a centenas de gotas iluminadas escorrendo. Tudo era construído em mármore, as colunas mais avermelhadas, uma composição barroquiana nos detalhes arquitetônicos do salão. Eu permanecia parado no meio da escada, sobre o tapete vermelho-sangue de veludo, querendo andar até aquele homem e dizer-lhe qualquer coisa, mas não pude pensar no quê. Tive que voltar a subir a escadaria, empurrado pelo fluxo de alunos. Logo, o Toupeira se perdeu na multidão.

Fui encontrá-lo novamente três dias antes da próxima reunião de núcleo. Stan abriu a porta do apartamento enquanto eu arrancava minhas luvas, e entramos praticamente juntos, nossos corpos roçando um contra o outro. Demos de cara com Gregory de pé bebendo chá de uma caneca de vidro verde e transparente, enquanto Christophe estava sentado no sofá com os braços apoiados nas coxas e as pernas bem separadas, agora sem óculos e sem flanela, despido daquela persona que aparentemente ele tinha que encorporar quando saía em público. Assemelhava-se muito mais ao homem que eu conheci no desagradável encontro nos fundos do restaurante do pai de Gregory. Ele fumava, como sempre. Olhando-o mais de perto, parecia estressado com a conversa que foi interrompida pela nossa chegada. Passava a mão pelo topo da cabeça, batia o pé compulsivamente e parecia ter um tique nervoso na bochecha que quase lhe dava um aspecto doente. Gregory, ao contrário, permanecia polido e elegante sem seu suéter bem passado.

Stan tirou o gorro e deu um passo à frente, estudando os dois. Pela sala, estavam espalhados moldes de papelão e cartazes que Kenny havia desenhado. Ele logo começaria a sair durante as madrugadas para pichar os edifícios governamentais, mas ainda estudávamos o quão perigoso seria quebrar o toque de recolher.

Christophe e Stan não se reencontraram mais depois do acontecido. Eu também só o vi e conversei com ele naquela ocasião, no metrô, e fiquei atento toda vez que voltava para casa naquele horário. Podia sentir no meu peito uma inquietação, um desejo de encontrá-lo novamente que eu não sabia dizer de onde vinha. Demorei para absorver que ele realmente estava ali, na nossa sala. Ele se levantou e correspondeu ao gesto de Stan, que lhe estendeu a mão para um aperto firme. Não repetiu o movimento comigo porque não me mexi. Continuei parado atrás de Stan, alternando meu olhar entre Gregory e o Toupeira, que parecia ignorar a minha presença completamente.

–Aconteceu alguma coisa? - Stan perguntou a eles. Eu não pude ver seu rosto, mas o som de sua voz parecia tenso e assustado.

Gregory levou sua mão ao maxilar e esfregou, permitindo que os dedos subissem por baixo da orelha até adentrarem os fios do seu cabelo dourado. Evitou lançar um olhar breve ao Toupeira, mas foi inevitável, pois eles compartilhavam de uma informação que evidentemente não sabiam se deveriam abrir para nós dois. Aquilo me incomodou um pouco, mas de forma irracional, pois eu confiava plenamente em Gregory. Ele não teria trazido aquele homem para conversar alguma coisa sigilosa dentro da nossa casa se não tivesse intenção de nos contar. Tive a sensação física do meu coração apertando dentro das costelas. Respirei fundo.

–Sentem-se, por favor. - Ele disse, antes de beber um gole do seu chá. Segurava a caneca com as duas mãos, em vez de utilizar a asa. - Que bom que chegaram.

Christophe se afastou do sofá, puxando um trago tão longo do seu cigarro que cheguei a perceber a tontura por trás dos seus olhos. Stan obedeceu à ordem, curioso, deixando a mochila no chão logo ao lado de sua perna quando se sentou no lado oposto ao que Christophe havia estado. Eu, por outro lado, fui até a janela que sempre emperrava para tentar abrí-la. A fumaça me incomodava. Foi só então que o Toupeira me concedeu um olhar, mas eu fugi, dando-lhe as costas para me concentrar na impossível tarefa de abrir a janela para arejar a sala.

–O núcleo dos Monarcas de Nebraska entrou em contato com Christophe hoje. Talvez nós possamos ser reconhecidos como uma entidade. Haverá a passeata do aniversário presidencial em dois meses, todos os núcleos farão uma intervenção agressiva. Juntará muita gente. É o momento ideal para se enviar uma mensagem.

–Mensagem?

A organização geográfica foi reestruturada pela demanda da guerra. Apesar de oficialmente vivermos em South Park, não havia mais uma divisão muito clara entre cidades e os estados não tinham qualquer tipo de autonomia. Todos nós vivíamos à sombra do mesmo grande olho, o olho do governo, o punho de ferro que regia o país. Minha mãe estava à frente dos preparativos para a comemoração do aniversário do presidente. Faltava pouco mais de um mês, na verdade, mas o evento não se limitaria a South Park. A região central do Colorado participaria da mesma passeata. Gregory gastou algum tempo nos explicando, como se fôssemos imbecis, que nos próximos dias tentaríamos contatar organizações de baixo perfil que houvessem pelas redondezas para unir forças e assim, talvez, houvesse um número significativo para uma “intervenção”, como ele se referia.

Algo naquele discurso me deu força o suficiente para empurrar a janela para cima, imediatamente sentindo o frio cortante da rua em meus dedos nus. Engoli seco.

–Isso seria... Expôr nosso rosto. Eles saberão quem somos. - Eu disse, mais para mim mesmo do que para eles.

–Nós nos cobriremos o quanto for possível, Kyle. Mas eu entendo que... É uma situação delicada para você. Sua mãe já é uma figura pública, você já... Eu entendo. - Gregory me disse em seu tom mais condescendente.

Christophe cruzou os braços nus, musculosos, pois vestia apenas uma regata solta do corpo em verde militar, como se não sentisse frio. Passou a língua pelo lábio superior enquanto me fitava, algo tão predativo no seu semblante, as sobrancelhas levemente franzidas.

–Sheila Broflovski é sua mãe, não é? - Ele finalmente disse. Seu sotaque francês tornou imensamente problemático pronunciar “Broflovski”. Assentiu de leve com a cabeça antes mesmo que eu confirmasse, como se agora tudo fizesse sentido. - Eu percebi a semelhança.

Foi curioso como uma parte de mim não queria que ele soubesse. Era tão idiota, mas dentro de mim, havia uma hesitação; como se o Toupeira não pudesse descobrir que eu tinha um vínculo de sangue tão forte com o inimigo. Por vezes, eu acreditava que minha mãe era a encarnação de tudo que havia de errado com o mundo. Ele não pareceu surpreso, enojado, nada do que eu havia imaginado para aquele momento. Abracei meu próprio tronco, sentindo um aperto terrível na boca do estômago.

Stan, que se virou em minha direção e me observou durante algum tempo, endireitou novamente o tronco e passou alguns segundos em silêncio, imerso nos próprios receios.

–Vão nos fuzilar. - Disse de repente, tomado por uma estranha calma. - Se fizermos isso.

–Eu concordo que qualquer manifestação pública contra o governo resultaria em fuzilamento se nós descêssemos às ruas agora mesmo e erguêssemos nossas bandeiras no meio de um dia normal. Mas não em um evento com tantos civis, televisionado para o mundo. Será uma comemoração. Terá milhares de pessoas, será fácil de se mesclar à população. Claro, provavelmente... Tudo tomará os rumos do caos em algum ponto. Mas pensem. Pensem na força dessa mensagem.

Cobri o rosto com as duas mãos. Ainda podia sentir o cheiro da fumaça do cigarro de Christophe, assim como podia sentir a janela aberta roubando meu calor pelas costas.

–Você não precisa fazer isso, Kyle. - Ouvi Stan me dizer, o que fez com que Christophe bufasse (talvez uma coisa não estivesse relacionada à outra, mas aconteceram em sequência).

Mas aquilo também não era verdade.



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