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História Liberté - O Meio


Escrita por: caulaty

Capítulo 9 - O Meio


20 de setembro de 3644

 

O peso do que fazíamos até tarde da noite era um fardo para a maioria do grupo, uma responsabilidade terrível e inevitável que deveríamos levar nas costas por não termos outra opção. O senso de coletividade era tão forte que muitos de nós acabávamos esquecendo que éramos indivíduos distintos, cortando vínculos familiares, deveres acadêmicos, tudo em prol do que acreditávamos ser um bem maior. Uns gostavam menos desse senso de coletividade do que outros. Craig Tucker tinha os dedos cortados por papéis e a língua seca de tanto lamber selos para enviar cartas aos outros membros Monarcas espalhados pela república velha. Não era apenas em South Park que os preparativos para o aniversário do presidente estavam a todo vapor. Nós trabalhávamos dentro de um apartamento pequeno, um dos cinco que Christophe e Gregory conseguiram espalhados pelo centro da cidade para que nós tivéssemos espaços fáceis de ser abandonados caso alguém denunciasse movimentos suspeitos. A maioria ficava em prédios velhos, abandonados, e nunca víamos vizinhos. Eu fiquei particularmente aliviado quando removemos toda a maquinaria, os folhetos e as armas de nossa casa; apesar de ter sido uma decisão mais sensata, o alívio era infundado, pois o governo ainda poderia farejar nossas atividades sob os panos e facilmente nos rastrear caso não seguíssimos o código da clandestinidade.

Os primeiros meses foram os mais tensos, aqueles em que você caminha na rua e frequenta a universidade com a certeza absoluta de que todos enxergam através de você e sabem o que você faz. Essa paranóia nunca foi embora totalmente, mas eu me acostumei. Estava focado o suficiente; tudo o que eu queria era trabalhar. Depois que designamos funções, traçamos planos de ação e aprendemos a nos mover com cautela, sem pressa, tudo pareceu mais concreto. Havia rumores sobre aprendermos a usar armas de fogo, mas ninguém falava sobre isso de forma concreta ainda.

O apartamento em que fazíamos as artes de protesto era o menor, abafado por todas as janelas estarem vedadas com madeira e, portanto, a única iluminação ser através de velas. Kenny estava imundo de tinta, habilmente deslizando o pincel carregado de tinta roxa pelo contorno do terno que vestia a figura do presidente no pano largo estendido ao chão. Era muito mais difícil conseguir papel naquela época, especialmente sem dinheiro. Todas as articulações de Gregory vinham do dinheiro que o partido dos Monarcas fornecia depois que nos tornamos aliados. Por vez ou outra, chegávamos a receber pagamentos por dedicar tanto tempo, suor e risco àquele trabalho. Kenny limpou o suor da testa, espreguiçando-se ainda com o pincel na mão, sujando o cabelo ainda mais de tinta roxa escura. Havia traços de tinta verde pela sua bochecha também. Kenny era o único que raramente parecia de mau humor dentro da nossa unidade, contrapondo a energia pesada de Craig, que quase nunca tinha algo gentil a dizer. Isto é, pelo menos quando Clyde não estivesse por perto. Estranhamente, a presença de Clyde sempre parecia torná-lo mais leve, ainda que ele continuasse igualmente silencioso e fechado. Clyde o ajudava a lamber selos e a escrever cartas; apesar de suas excelentes intenções, o pobre rapaz mal sabia escrever o próprio nome e sua letra beirava o ilegível. Às vezes, a presença de Clyde me irritava por parecer ocupar demais a sala que já era estreita o suficiente. Ele nunca parava de falar.

Tweek também me dava nos nervos, simplesmente porque a sua ansiedade era contagiante. Kenny tinha muito jeito com ele, sabia ocupá-lo com trabalhos manuais ao ponto de acalmá-lo, bem como estar próximo de Clyde e de Craig parecia fazer muito bem a ele. Tweek normalmente não fazia parte da nossa unidade, onde produzíamos os pequenos jornais, os folhetos e as artes de rua que espalhávamos de madrugada pela cidade. Ele não tinha qualquer talento de articulação verbal ou artístico, então costumava acompanhar Gregory e Wendy nos processos burocráticos, mas não era incomum que o mandassem para o apartamento em que trabalhávamos, ou ele aparecia por conta própria. Ele era extremamente dependente de Craig, isso era visível. Sempre foi, desde criança. Eu não era ninguém para julgar relações de inter-dependência; Stan me fazia muita falta, mais do que posso descrever. Stan não nasceu com o dom do discurso verbal propriamente, mas eu sei exatamente o que Gregory viu nele para colocá-lo na frente das relações com os movimentos estudantis, conscientizando de dentro das organizações acadêmicas para atrair aliados. Stan é um articulador nato, charmoso e atraente demais para que não ouçam o que ele tem a dizer. Ele pode não ser eloquente como Gregory, mas sabe perfeitamente como prender a atenção de alguém.

Eu não tinha certeza de se concordava com as estratégias de Gregory para chamar o povo aterrorizado à luta, mas aparentemente estava funcionando. Discreta e lentamente, o número de aliados crescia. Isso também, inevitavelmente, aumentou a suspeita da direção acadêmica, que redobrou a atenção dos sapadores sobre a movimentação dentro da universidade.

O que eu fazia, basicamente, era escrever. A guerra reduziu o acesso à tecnologia, deixando-nos com recursos baixíssimos para produzir material. Eu usava uma máquina de datilografar automática que desenterrei do sótão do meu pai; elas ainda eram produzidas, mas uma nova custaria muito mais do que tínhamos a gastar. O único detalhe era a falta da tecla “s” na máquina, o que me obrigava a dar um espaço a cada vez que deveria haver um s na palavra e, depois, cuidadosamente escrever todos os s à mão com tinta. Craig auxiliava na produção do jornalzinho, especialmente com fotografias.

Christophe não havia sido designado a nenhuma tarefa específica, apesar das tentativas de Gregory de adestrá-lo e discipliná-lo a cumprir com alguma tabela. O Toupeira aparecia quando tinha vontade, e toda vez que colocava os pés no apartamento – quer fosse o esconderijo ou nossa casa, quando visitava Gregory -, já começava por arrancar os óculos de grau e as camadas de roupa que não condiziam com quem ele era, mas faziam parte do disfarce. Eu sempre me perguntava sobre as nuances da clandestinidade, se havia algum prazer sádico em fingir ser outra pessoa. Ao observar o Toupeira, parecia que não. Ele parecia aliviado usando somente a regata que havia por baixo de todas as roupas, com os pés descalços ou revestidos por uma meia furada e uma calça jeans com a barra suja de lama. Dentro do esconderijo, ele sempre parecia mais ativo do que em outros momentos, pronto para o trabalho, sempre de pé e alerta, verificando tudo o que era feito, raramente dando palpites. Fumava naquele lugar minúsculo e fechado, sem qualquer consideração pelos outros presentes, rosnando quando Kenny fazia alguma piada a respeito.

Surpreendentemente, ele e Kenny pareciam se dar muito bem. Havia algum laço estranhíssimo entre os dois que se criou de forma improvável e não planejada, através de poucas palavras, geralmente pela partilha de uma bebida barata e concordâncias ideológicas. Acho que eles viam o mundo de um jeito parecido, igualmente pessimista, com um toque de sarcasmo quase maldoso. Kenny defendia-se do mundo com humor, Christophe, com agressividade. Em geral, nós três ficávamos até muito mais tarde trabalhando, o Toupeira retomando as tarefas que Craig havia deixado pela metade – quando tinha disposição para isso. Não era aconselhável ir para casa depois que de determinado horário, pois quem fosse pego depois do toque de recolher perambulando pelas ruas provavelmente seria fuzilado por, certamente, não estar fazendo coisa boa. Kenny gostava de se acomodar na pilha de almofadas que havia no chão, próximo à janela, deitado como um felino para dormir o sono dos justos quando o cansaço lhe vencia. Christophe e eu continuávamos acordados até o sol nascer, às vezes trocando palavras, analisando os trabalhos já feitos, tirando um cochilo sobre a mesa cheia de objetos, papeis e tinta. Ele gostava de desmontar coisas e montá-las de novo, como minha máquina de datilografar. Às vezes, eu continuava elaborando textos, organizando as imagens que Craig trouxe impressas, e ele ficava sentado do outro lado da sala apenas observando. Era muito confortável entre nós, até mesmo no silêncio.

-Você me preocupa. - Stan me dizia frequentemente quando eu chegava no apartamento de manhã cedo. Ele sempre acordava quando eu entrava no quarto e me despia. - Está envolvido demais nisso. Não come, não dorme.

Ele jamais me diria em todas as letras que não queria que eu ficasse no esconderijo a noite inteira, especialmente porque tinha consciência de que não poderia (nem deveria) me impedir de nada. Então ele me falava com seu tom preocupado, puxando-me para perto dele, compartilhando seu calor e falando sobre a minha saúde física e emocional. Eu sabia que ele estava certo. Eu realmente me esquecia de comer durante horas, esquecia de fechar os olhos e parar de pensar, porque estar imerso na materialização dos nossos planos era intoxicante. Quanto mais eu escrevia sobre a cólera do nosso tempo, sobre a mão de ferro do governo e sobre a acomodação daquele que tem fome demais para lutar, mais fascinado eu me percebia Fascinado pela alvorada de uma revolução sangrenta que era questão de tempo, todos nós sabíamos. Era como olhar para o céu do campo, afastado das luzes da cidade, enxergar a olhos nus que a imensidão sobre nossas cabeças é feita de estrelas e sentir-se insignificante diante de tantos outros corpos celestes magníficos. O meu ego, os meus desejos, os meus medos, tudo isso parecia cada vez menor. Eu não sabia como explicar isso quando olhava para o rosto de Stanley, amassado de sono, carregado de amor. Então eu apenas o abraçava.

Era diferente quando eu estava perto de Christophe. Eu nunca tive que explicar a proporção daquela luta a ele, pois era ele quem mais me ensinava isso. E era maravilhoso. Era maravilhoso estar próximo de alguém que compreendia, sem que eu precisasse abrir a boca. A presença de Christophe era contagiante; ele vivia, respirava, transpirava a resistência. Eu me sentia mais forte ao olhar para ele, como se houvesse uma conexão entre nós que permitisse que eu me alimentasse daquela força.

A noite da qual melhor me lembro já se aproximava do fim de setembro, o clima gelado ao ponto de, mesmo dentro daquela sala abafada, bater os dentes de frio. As condições do prédio eram terríveis, as paredes mofadas e a umidade por dentro certamente não eram fatores aconchegantes. No entanto, Kenny dormia como um anjo no chão, sujo de tinta como sempre. Eu tive vontade de cobrí-lo com o poncho de lã que eu usava, mas senti-me mal por não ter coragem de tirá-lo. De qualquer forma, ele não parecia sentir frio. O Toupeira tinha os braços cobertos por uma camisa de denim fina e aberta que expunha uma regata branca assustadoramente limpa por baixo. O cabelo dele também parecia ter sido recentemente lavado, algo raro desde que o conheci. Ele cheirava a almíscar selvagem e cachaça naquela noite, a barba crescia mais clara do que o tom castanho escuro do cabelo, seus olhos de âmbar reluziam contra a luz das velas sobre a mesa. Um aroma de café tomava conta da sala; ele coava o pó em um bule de ferro em um fogãozinho à lenha improvisado na cozinha, substituindo o cheiro de cigarro que eu já nem sentia mais. Estava acostumado com ele. Chegava a achar agradável quando ele fumava os cigarros de cravo e canela de aroma doce.

Deus, como ele era bonito. Tinha uma cicatriz discreta na bochecha, apenas mais um dos pequenos registros de uma história fascinante que ele carrega no corpo. Decidi interromper as divagações dentro da minha própria mente para verbalizar uma dúvida frequente, sobre a qual eu ponderava muito quando ficávamos a sós:

-Como era na Europa?

Fiz essa pergunta quando dei por encerradas as minhas atividades noturnas, pelo menos durante algum tempo. Coincidiu com o momento em que ele desligou os reguladores do fogão para deixá-lo esfriando e pegou o bule de ferro pela asa para servir duas velhas canecas de alumínio.

-Como era o quê? - Ele me perguntou, espiando-me por trás dos fios de cabelo que caíam em frente aos olhos enquanto servia meu café, o som doce do líquido fumegante sendo despejado no recipiente era como música aos ouvidos. Havia um cigarro sobre sua orelha, do qual ele aparentemente havia se esquecido.

-Você sabe. Algo me diz que vocês não dedicavam tanto tempo a trabalhos manuais como fazemos aqui.

-E está certo. Ninguém gastava tempo fazendo... Desenhinhos em tecidos brancos e cantando kumbaya. As prioridades eram outras.

-Você não acredita no que estamos fazendo aqui?

-É claro que acredito. - Ele esticou a caneca para que eu segurasse e bebesse do conteúdo, o cheiro delicioso invadindo as minhas narinas de longe. Christophe continuava de pé, mas puxou uma cadeira para apoiar o pé descalço e tirou o cigarro da orelha, lambendo as pontas dos dedos antes de pressionar a ponta do paiero, apoiando o braço na própria coxa. - É assim que se faz as coisas na América, é a terra mais demagoga que já conheci. Não vou dizer que a situação do país é melhor do que a da França, depois que os malditos ingleses invadiram... Aqui é diferente. Mesmo com a guerra do Canadá, nenhum de vocês já pegou em uma arma antes, não é?

Balancei a cabeça negativamente. Sempre tivemos intimidade com o armamento, mas nunca tivemos acesso a ele enquanto população civil. Não posso dizer que via isso como algo ruim.

-Pois bem. Isso diz muito sobre como se faz uma revolução.

-Tem certeza de que nós podemos chamar disso? - Apertei a caneca entre meus dedos, ansioso. - Às vezes eu não acredito que é isso que estamos fazendo. Isso tudo parece insignificante.

-Porque é. - Ele finalmente acendeu o cigarro com um fósforo e se sentou, dando um gole demorado no café antes de continuar, apoiando os cotovelos sobre a mesa cheia de migalhas. Seus discursos pareciam mais eloquentes quando ele fumava. - Eu e você não somos nada, Kyle. Nada. Vocês precisam desapegar da vaidade da palavra “revolução”, parar de acreditar que podem fazer alguma coisa. O que eu e você podemos mudar nesse mundo cão?

-Eu não entendo...

Mas em algum nível, é claro que eu entendia. Assim como eu entendia que era insuportável parar e pensar nesse tipo de coisa, perder completamente o propósito do que se tornara a minha vida inteira desde que aquele homem apareceu. Eu precisava acreditar que o mundo era mutável e que nós éramos capazes, basicamente porque eu precisava de qualquer coisa em que acreditar.

Havia uma vela queimando sobre a mesa da cozinha, que era revestida por uma daquelas toalhas de plástico com estampa xadrez, branca e verde. Talvez fossem três ou quatro da manhã, eu não tinha certeza. A lua verde estava escondida por nuvens negras naquela noite, mas o mundo parecia se resumir a nós dois naquele cubículo, como se cada vez mais as paredes se fechassem ao nosso redor. Eu sabia que ele sentia a mesma coisa. Olhou-me sobre os fios de cabelo desgrenhados, afastando-os da testa com as costas da mão. Seus olhos eram quase amarelos sob aquela luz, brilhando como os de um coiote predador.

-Esqueça. Eu só estou cansado. Nem sei mais o que digo.

-Não. - Protestei ansiosamente, empurrando a cadeira para trás de forma que pudesse virar meu corpo em direção ao dele, sentando de lado, esquecendo-me de beber o café. - Eu gosto de como você fala. É... É diferente. Você não romantiza nada disso.

-Não há nada para romantizar quando se vive no inferno. Se você quer saber... Aqui ou na Europa, não há grande diferença.

Uni minhas mãos sobre as coxas em silêncio e pigarreei, observando enquanto ele fumava. Parecia tão em paz com um cigarro na mão.

-O que isso quer dizer, que todas as histórias que Gregory conta sobre os feitos de vocês na Inglaterra não fizeram diferença alguma? É tão difícil conseguir notícias daqui...

Ele encolheu o nariz e mostrou um pouco dos dentes amarelados. Não sabia ao certo se aquilo era uma careta de dor, uma risada amarga ou o quê. Ele sempre estava com a coluna levemente curvada, agora com os ombros relaxados e a cabeça levemente caída para a frente, parecendo mais musculoso do que era de verdade. Tragou do paeiro e assoprou a fumaça na minha direção, acredito que sem querer.

-Gregory realmente acredita que revolucionou a história da humanidade. - Disse finalmente, com um certo tom de ironia, ajeitando-se na cadeira. Esse tom mudou quase que imediatamente ao prosseguir com a fala, como se tentasse se corrigir. - Fez diferença, é óbvio que fez. Pelos céus, não quero nem pensar no que Londres teria se tornado sem resistência civil. Essa merda toda de pintar figurinhas e mancar recadinhos ao governo é... Relevante.

Foi como se ele cortasse a fala pela metade ao se levantar bruscamente, fumando com mais agonia, levando a caneca na mão esquerda para se aproximar da pequena janela de vidro fosco logo acima da pia, emperrada demais para abrir. A janelinha dava para um muro de tijolos de um prédio abandonado bem em frente, e olhando para baixo, haveria somente um beco cheio de latas de lixo e mendigos tentando se aquecer. O Toupeira virou a caneca para dar fim ao resto do café e a largou dentro da pia de modo grosseiro. Parecia pensar muito antes de abrir a boca novamente, desta vez virando-se para mim e gesticulando com a mão que não segurava o cigarro.

-A diferença era que tanto na França quanto na Inglaterra os nossos jovens sabiam segurar uma arma. Eles estavam prontos para a guerra civil. Eu não sei de que outro modo vocês americanos esperam que isso aconteça.

A população foi desarmada depois do golpe de Estado e eu jamais considerei isso como algo ruim antes. Stan sempre falou como as coisas seriam piores se a população estivesse com revólveres até os dentes esperando pelos sapadores. Haveria muito mais derramamento de sangue. Esse pensamento me remeteu imediatamente à forma com que Christophe falou de Stan quando nos encontramos no metrô, referindo-se a ele como um pobre idealista que não enxergava as coisas como eram, preto no branco. Eu não compreendi naquele momento, mas pouco a pouco, era como se um véu fosse erguido da frente dos meus olhos.

-Você pode nos ensinar.

-O quê?

-A segurar uma arma. Você sabe, não sabe? Por experiência própria, para o que nós devemos nos preparar.

Ele pressionou a língua por dentro da bochecha, pensativo, e então tragou do seu cigarro com calma. O mero pensamento de segurar uma arma me excitava de uma forma inexplicável, não pela ideia concreta de atirar em alguém, mas por ser um objeto palpável, físico da nossa luta. Por ser o símbolo de poder que nos foi arrancado durante tantos anos. Eu estava exausto de me sentir impotente.

Uma hora e meia depois, Kenny acordou para que saíssimos antes do sol nascer e antes da primeira ronda dos sapadores. Aquele também se tornara uma espécie de ritual entre nós dois; as manhãs geladas pelas ruas vazias de South Park, pichando os muros, colando cartazes. O frio ficava gradativamente pior e Kenny carregava consigo um cantil cheio de rum como café da manhã. Era um hábito terrível, mas eu não o reprendia por isso. Gostava demais da companhia dele, em especial quando éramos só nós dois sob o céu vermelho antes do amanhecer, a lua esverdeada se escondendo e dando lugar aos raios de sol que mal chegavam até nós através da camada grossa de poluição. Era tão feio e tão bonito ao mesmo tempo. Às vezes, quando tínhamos tempo, Kenny e eu apenas ficávamos no meio da cidade fantasma, olhando para cima em silêncio, respirando o ar gelado da manhã. Christophe nunca nos acompanhava.

Eu estava exausto. Meus olhos ardiam, lacrimejando em defesa. Kenny usava uma boina de lã marrom que cobria-lhe as orelhas, protegendo-o contra o frio que ele odiava. Sua pele ficava facilmente avermelhada com o clima cruel de South Park. Caminhávamos pelos paralelepípedos úmidos em uma das ruelas estreitas, entre dois prédios tortos que pareciam prestes a cair a qualquer segundo. Já havíamos colado uma boa quantidade de cartazes e pendurado panos com desenhos, e agora, Kenny queria encontrar o lugar perfeito para uma pichação violenta. Sentei-me no meio-fio e apoiei os ante-braços nos joelhos, observando-o trabalhar durante algum tempo. A forma como Kenny trabalhava com a tinta e o spray naquele muro, como se fosse sua tela em branco, não era nada menos do que artística. Em questão de alguns minutos, formava-se o contorno da face gigante do Presidente, com olhos sangrentos e feições que faziam referência ao maior genocida da história da República, chamado apenas de Cahim, caracterizado para sempre pela careca lustrosa e os pequenos óculos redondos sobre o nariz. Cahim vivera no século XXIX e ficou conhecido por exterminar cem milhões de sulistas americanos durante a terceira Grande Guerra. Era uma comparação hedionda para a nossa nação.

-Pobre Tweek. - Kenny comentou de repente. Eu imaginei que ele estivesse se referindo ao episódio da noite anterior, em que Tweek passou quarenta minutos agarrando-se ao braço de Craig, contando sobre os experimentos de arma biológica que faziam com prisioneiros políticos (o que era apenas um boato), ao ponto de Craig genuinamente se irritar com ele e ir embora mais cedo.

-É... Às vezes é doloroso de assistir. Craig não costumava ser tão impaciente com ele.

-Ah, ele está estressado. Todos nós estamos. - Kenny se agachou para destampar uma lata de tinta e a cheirou antes de mergulhar o pincel. - E também... Eu ouvi essa conversa esquisita entre Craig e Clyde anteontem. - Ele sacudiu a cabeça em reprovação a si mesmo de repente, enquanto espalhava habilidosamente a tinta pelo muro. A imagem era assombrosa e começava a me dar arrepios na espinha. Tentei não encarar. - Eu não sei o que acontece com aqueles três. Acho que o Craig faz ccom o Tweek o que Clyde faz com ele. Entende?

Deixei escapar apenas um gemido pensativo, talvez um pouco desinteressado, levando a mão até minha nuca, abaixando a cabeça entre os joelhos. Havia vapor saindo da minha boca. Eu já delirava com a sensação da minha cama quente, o corpo de Stan por trás do meu.

-Você está bem? - Kenny me perguntou, sacudindo uma lata de tinta.

Ergui a cabeça repentinamente para enxergá-lo. Ele limpava as mãos sujas na própria calça.

-Acho que sim. Eu não sei, Kenny.

-Você e o Stan estão...? Eu sinto que ele ainda não tá totalmente de acordo com o que nós estamos fazendo aqui.

-Ele só quer o que todos nós queremos, você sabe disso.

-É lógico. É só que... Você parece bem investido nisso. Eu só quero saber se está tudo bem entre vocês dois.

-Eu não sei como responder isso.

Ele já começava a fechar as tintas, olhando apressadamente em seu relógio de bolso. Umedeceu os lábios, um pouco apreensivo com o limite da hora. Eu, assim como ele, também sempre me perguntava o que seria feito de nós caso uma ronda de sapadores aparecesse fora do horário usual. Nós certamente seríamos fuzilados de imediato, sem questionamentos. As roupas de Kenny tinham respingos de tinta e só isso já era suficiente para me deixar inquieto.

Levantei-me para ajudá-lo a fechar e carregar as tintas antes de voltarmos a seguir caminho pela longa ruela. Ele ajeitava a boina na cabeça e me espiava de canto, como se quisesse dizer algo, mas tivesse receio.

-O que foi, Kenny?

Ele mordeu o lábio inferior e respirou fundo, e por algum motivo, eu repeti o gesto, enchendo meus pulmões de ar frio. Era desconfortável, mas ao mesmo tempo, um alívio. Olhei em volta para me certificar de que nada estava pingando nos parelelepípedos. Caiu uma gota de tinta vermelha, nada que fosse deixar um rastro atrás de nós.

-Você não adora poder caminhar pela cidade vazia nesse horário? Quando você deixa de fazer algo por muito tempo, esquece de como é bom. Eu fugia do toque de recolher o tempo inteiro quando era moleque.

-Você é louco. - Eu disse com carinho, rindo para ele.

-Vamos correr.

-O quê?

Kenny trotou como um cavalo à minha frente, virando em minha direção para caminhar de costas durante algum tempo sem dizer nada, ganhando velocidade. Havia um sorriso de criança em seus lábios, tão livre e desinibido. O ar da manhã fazia bem a ele. Eu entendia perfeitamente do que ele estava falando. Não havia um momento sequer do dia em que nós não estivessemos atados pelos tornozelos de uma forma ou de outra, mesmo trabalhando em grupos de resistência. Inclusive, eu me sentia cada vez mais preso por viver e respirar a ditadura para, assim, opor-me a ela. Eu havia me esquecido do quanto South Park era bonita antes do sol nascer, com suas ruas estreitas e assombradas, seus prédios tortos e seus paralelepípedos molhados pela chuva, o vento cortante oferecendo-nos um sopro de vida, de liberdade. Kenny desatou a correr pela ladeira que dava para o centro, despreocupado com a possível presença de homens de branco fazendo vigia no topo dos prédios, mandando um verdadeiro foda-se para o universo.

-Anda! - Ele berrou para mim, já de longe.

E eu corri. Timidamente primeiro, como um bebê que aprende a andar, como se minhas pernas tivessem se esquecido de como correr. A descida certamente ajudava, inclusive, na perda de controle. O vento era ainda mais forte quando se cortava através dele com velocidade. Nossos passos produziam sons que reverberavam pela ruela inteira, especialmente quando pisávamos com tudo em poças de água da sarjeta. Não nos importávamos. Era o primeiro gosto de liberdade que sentíamos em muito tempo.



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