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História Língua de Fogo - ;extra


Escrita por: JAYG0TH

Notas do Autor


Olá, meus leitores.

Venho aqui com o capítulo extra, e espero que esclareça as dúvidas de muitos vocês.

Sem querer demorar mais, vejo vocês lá embaixo.

Capítulo 4 - ;extra


 

 

 

Cindo dias depois 

 

 

“Minha querida Lua, 

Perdoe-me por deixar-lhe apenas minhas humildes palavras, pois elas não são suficientes para demonstrar tudo ― tudo o que eu sinto, tudo o que eu tenho, tudo o que eu sou ― embora estejamos falando da minha pessoa aqui. Mas receio não poder ter feito isso de qualquer outro jeito. 

Se você está lendo isso, é por que já estou morta. Não se preocupe, eu não sofri. Bom, talvez um pouco. Mas não havia a dor física, havia apenas o vazio existencial. Eu sei que vou deixar de existir sem você. Mesmo que você fugisse, que me deixasse ali, para não ter de fazer o que meu pai lhe pediu, eu estaria praticamente morta agora. Meu corpo estaria ali, mas minha mente e minha alma estariam ausentes. Meu coração bateria fraco, pois a outra metade estaria onde quer que você estivesse. E, cedo ou tarde, meu corpo sucumbiria. Mas o sofrimento seria muito maior do que uma morte rápida ao seu lado e pelas suas mãos. 

Eu sei que você se pergunta como eu descobri. Mas o fato é: eu não descobri. Eu sempre soube. Não é fácil crescer sabendo que um dia seu próprio pai vai encomendar sua morte. Mas eu aprendi a viver com isso, e a esperar isso. Para que, quando o momento chegasse, eu não lutasse, apenas acolhesse a Morte como a uma velha amiga. 

Eu não queria ter de esconder tudo de você. Mas eu tinha medo de que, se você soubesse que eu sabia, recusaria. Negaria. E como eu queria que você fizesse, minha Lua. Queria, não, eu precisava. Quando você passa a esperar muito por algo, a criar a expectativa, você não consegue mais evitar, é algo que se anseia muito. Mesmo que eu te ame muito ― pois mesmo após a morte, os anjos me permitem amá-la ― eu não poderia viver. Não se pode viver tanto tempo às portas da Morte, sob a sombra de sua asa, e depois ser levada ao Olimpo. É como sair de temperaturas abaixo de zero no topo do Everest para o sol imortal das areias do Saara em um segundo. É um choque térmico. Como o choque que acontecia quando eu colocava minhas mãos em seu rosto. 

Não faz nenhum sentido, eu sei. Como ainda desejar a morte depois de encontrar alguém que te dê motivos para viver? 

Para entender isso, você precisa saber minha história. ” 

 

 

O céu cinzento parece pesar sobre os ombros de todos presentes. Mais do que as lágrimas e as expressões tristes. Eu sei que são todas falsas. Não há uma só pessoa aqui que sabe como ela era, o jeito como sorria e como esfregava as mãos antes de tocar em alguém, com medo de assustar a pessoa pela frieza de sua pele. Ninguém aqui sabe de nada. Ninguém aqui sabe como eu me sinto. 

As roupas pretas são magníficas.  As mulheres que acompanham os maridos usam vestidos abaixo dos joelhos, simples mas luxuosos. Pelo pouco brilho propiciado pelo céu cheio de nuvens, o veludo de alguns parecia escorrer como água, e a seda balançava no vento como pétalas de rosa despedaçadas. São um luxo incompatível com a pessoa que ela era. 

Os homens, todos usando sobretudos e chapéus negros de feltro, olham para o mesmo ponto, com suas mulheres seguras em seus braços. Olham para o pai dela, sentado em uma cadeira ao lado de um pequeno púlpito, onde uma foto dela em moldura dourada sorri para todos os presentes. Ele fita o chão, fingindo uma expressão de dor e sofrimento, enquanto por dentro eu sei o que ele sente: triunfo. Saturno finalmente se sente vingado. 

Eu deveria me sentir uma intrusa, mas é o contrário.  Sinto que todos os outros são intrusos, que são pessoas convidadas ou contratadas por ele para “manter as aparências”. Para convencer os policiais de que ela era uma menina amada e querida, admirada por todos. Que ninguém iria querer seu mal. E de que somente ela queria ao se matar. 

Isso é mentira, sinto vontade de gritar.  

Saturno não sabe que estou aqui. Me mantenho à certa distância, perto de um casal de idosos na última fileira de cadeiras, dispostas mais ou menos em seis fileiras de cada lado, de cinco em cinco. Estou perto deles para fingir que os acompanho. A maioria das pessoas não está sentada, mas eu me mantenho, com medo de cair de joelhos por fraqueza a qualquer momento. Por causa da carta.  

Ontem à noite, em um hostel a trinta quilômetros da cidade em que o motorista do carro preto me deixou, apenas com a recomendação de “sumir”, eu fui arrumar as poucas coisas que tenho. Entre elas, a jaqueta vermelha que a Sol me deu, a com o dragão bordado nas costas. A que ela me deu antes de eu matá-la. A lembrança na hora encheu meus olhos de lágrimas, e é o mesmo que acontece agora. Pisco para afastá-las, e aperto o papel que seguro nas mãos.  

Dentro de um dos bolsos havia um pequeno envelope azul. E dentro do envelope, uma carta dela. 

A que estou lendo agora. 

 

 

“Desde o nascimento eu fui a alegria de meu pai e minha mãe. 

Eles já eram casados há muito tempo, e sempre quiseram um filho. Meu pai queria um menino, e minha mãe uma menina. Quando eu nasci, meus pais me contaram, as lágrimas da minha mãe limparam o sangue do meu rosto, e a parteira disse que, por causa disso, eu nunca choraria. Todas as lágrimas que, algum dia, escorreriam pelo meu rosto já haviam escorrido, e lavado minha alma. 

Eu cresci na mesma casa em que nasci. Era grandiosa para mim na época, mas tenho certeza de que se a visse agora, ela não seria tão grande assim, pois eu era muito pequena. Assim que aprendi a andar, corria por todos os lados, e depois de alguns anos de acidentes, minha mãe aprendeu a guardar tudo que pudesse quebrar e me machucar em um lugar seguro. Quando aprendi a falar, eu já cantava. Até antes disso eu já cantarolava as melodias que minha mãe cantava para mim; ela cantava o tempo todo, e sua voz era maravilhosa. Ela me ensinou a tocar piano e violino, assim como a importância da música para ela. Assim que aprendi a ler, tive acesso a todos os livros que meu pai tinha, e eram muitos e de todos os tipos.  

Minha fascinação pelo fogo ― quase uma adoração ― começou a surgir quase ao mesmo tempo que tudo isso. Eu ficava sentada em frente à lareira nas noites frias, admirando as labaredas até cair no sono, e adorava o cheiro de queimado de quando meu pai cozinhava em um dos raros episódios quando ele estava em casa. Eu às vezes pegava escondido um de seus isqueiros da gaveta do escritório para admirar a dança hipnótica das chamas, e acendia uma vela tidas as vezes em que meus pais brigavam tarde da noite, quando eu já deveria estar dormindo. 

Eu nunca fui à escola. Era ensinada em casa, por um motivo que nunca questionei: meu pai não confiava nas outras pessoas. E como ele dizia, não confiaria seu ‘maior tesouro’ a estranhos. 

Mas a questão é que ele nunca estava em casa. Nunca estava presente. Todos os dias ele saia antes do amanhecer, e chegava tarde da noite. Eu só sentia o beijo que ele deixava em minha testa todas as noites, sempre que chegava. Quando pequena, eu nunca questionei seus sumidos, mas por volta dos seis anos, eu já podia perceber que algo estava errado; um pai deveria querer ver sua filha crescer, não? Deveria dar atenção à ela? 

Mas ele nunca o fez comigo. Me questiono até hoje se ele alguma vez me amou de verdade, como minha mãe me amava.  

Os problemas começaram a acontecer quando eu percebi isso.” 

 

 

Seus olhos cinzentos parecem mais escuros do que estavam da última vez que o vi. O terno fino e bem cortado, totalmente preto, com botões dourados que reluzem na pouca luz, parece menos glamouroso do que os anteriores, os que usou em todas as vezes que eu visitei em sua salinha subterrânea. Tudo nele parece querer mostrar aos outros como ele está sofrendo, mas é tudo muito exagerado. Qualquer um que preste um pouco mais de atenção poderia ver a atuação por trás da expressão sofrida. Mas ninguém vê pois estão todos ocupados fitando o buraco de terra em frente ao púlpito, rodeado com vasos de flores brancas e amarelas, e o caixão de mogno reluzente suspenso sobre ele. Ninguém olha para ele. 

Suas poucas palavras não ficam marcadas em minha mente. São apenas ecos, eu não gravo as palavras. São insignificantes. Falsas. A culpa que eu sinto desde que o apartamento dela se acendeu em chamas parece suavizar agora, quando eu vejo o quão culpado ele é. As mãos dele estão tão sujas quanto as minhas, e com sangue de seu próprio sangue.  

Eu o odeio por ela. Com todas as minhas forças, eu o odeio. O que teria acontecido se ele não tivesse me escolhido?, eu me pergunto sempre. E se eu não tivesse me apaixonado tão facilmente, diferente de como sempre aconteceu comigo: lenta e cuidadosamente? E se eu não tivesse dado tudo o que eu sou para ela, será que eu estaria tão ferida agora? Será que ela estaria morta agora? Eu teria fugido? Teria sido covarde o suficiente para não enfrentá-la, ou corajosa o suficiente para levá-la comigo? Eu não sei. Eu só sei que parte da culpa é de Saturno, e eu vou garantir que essa parte pese muito em seus ombros. 

 

 

“Quando eu completei nove anos, eu persistentemente pensava que eu não tinha pai. Eu imaginava a minha vida se ele tivesse sido presente o suficiente. Mas então eu pensava que não existia nenhuma vida em que isso pudesse acontecer. Não havia uma galáxia onde Saturno estivesse perto do Sol. Sempre foi minha mãe e eu; Mercúrio e Sol juntos. 

E isso me deixava muito mal. Um dia eu acordei e percebi as fundas olheiras sob os olhos da minha mãe, e umas marcas roxas em seus braços muito semelhantes a pontas de dedos. E isso me deixou com muita raiva, por que eu sabia que fora ele quem fizera isso com ela. 

Minha asma piorou, eu ficava muito tempo trancada no quarto, não prestava mais atenção a nada; não tocava mais piano, não dançava pela casa e nem mesmo cantarolava. Eu estava sufocando, esquecendo de que ela precisava da minha ajuda, do meu suporte. Me esquecendo de que eu não era tudo o que importava. Me esquecendo de pensar nela também. Mas eu só me importava com o abandono que eu estava tendo por parte de meu pai. Com a raiva e o ódio que serviam como capa para a mágoa e a tristeza extrema do fundo da minha alma. 

Em um dia particularmente ruim, depois de acordar mal pela horrível noite anterior, onde desde que meu pai chegara em casa tudo o que ele fizera fora gritar com minha mãe e reclamar das coisas, minha mãe estava do lado de fora da casa, colhendo flores, provavelmente longe o suficiente para que eu não a visse ou ouvisse chorar. Pelo horário ― era quase meio-dia na hora ― ela não ia voltar tão cedo, e eu teria que fazer a comida. 

Fui até a cozinha, fechei a porta, e comecei. Não gostava de ficar em lugares com as portas abertas, pois me assustava sempre que elas se fechavam sozinhas. Tirei algumas coisas que sempre via minha mãe pôr na comida e comecei a prepará-las. Mas tudo o que estava me atormentando não saia da minha cabeça, consumia toda minha atenção, e logo eu parei de prestar atenção ao que fazia. Coloquei azeite demais em uma frigideira ou esqueci de colocar a panela na boca certa do fogão; não sei até hoje o que eu fiz de errado. Só sei que um segundo depois o fogo consumia as cortinas de linho acima do balcão de madeira, e começava a subir para o teto. Em uma tentativa desesperada de apagar o fogo, joguei um copo que estava na pia, pois o líquido era transparente eu podia jurar que era água.  Porém devia ser algum tipo de bebida alcoólica, pois as chamas aumentaram e vieram em minha direção.  

Eu congelei. Simplesmente congelei enquanto assistia às chamas crescerem e começarem a destruir outras partes da cozinha: o armário, o balcão, a porta do corredor. Eu estava maravilhada com o envolvimento das labaredas ao meu redor, com sua cor, com seu calor. Era como estar em um de meus sonhos, que logo se tornavam pesadelos quando do eu acordava gritando pela dor das queimaduras inexistentes.  Foi ao pensar nisso que eu percebi a seriedade da situação. O terror veio então.  

A cozinha não era grande, e o fogo começava a avançar para a porta que eu havia fechado. Uma coisa estranha do fogo é que quanto mais ele queima, quanto mais o tempo passa, mais e mais forte ele se torna.  Ele cresce de tal maneira que chega a se equiparar aos poderosos gigantes do fogo das histórias nórdicas.  

Eu corri para a porta numa tentativa de escapar, tropeçando em meus pés na pressa e caindo no chão.  Uma dor imensa subiu pela minha perna, e eu lembro de na hora pensar que iria morrer. Se eu não morrer queimada, eu pensei, vou morrer de dor. Pelo ângulo estranho de meu tornozelo e pela dor aguda que vinha de meus ossos, estava definitivamente quebrado. 

Com a pouca força que me restava, eu me arrastei até a porta, percorrendo o pouco espaço que faltava em alguns segundos. Alguma coisa subitamente atiçou o ar, e até hoje eu me pergunto o que. Talvez tenha sido Deus, em uma tentativa desesperada de me levar no lugar dela. Mas Deus não existe. 

Alcancei a maçaneta com uma das mãos e tentei girá-la. Mas ela não se mexeu, e nem o fez a porta. Ela rangeu quando eu tentei puxá-la, empurrando a com os ombros enquanto sentia um sufoco no fundo da garganta. Talvez gerado pelo ar impregnado de fumaça negra, talvez provindo das lágrimas que se acumulavam na base de meus olhos. 

Então eu lembrei que podia gritar, e foi o que eu fiz. Eu gritei e não me lembro o que gritei, mas foi mais alto do que qualquer outra vez que eu tenha gritado. Foi como uma última súplica.  

Minutos depois eu ouvi o som da porta da frente batendo e o ruído de uma tosse seca muito familiar. Isso segundos antes de a porta que levava ao corredor explodir, atiçando o fogo ainda mais. A última coisa de que me lembro é do fogo avançando para mim como a língua bifurcada de uma cobra; uma língua de fogo.” 

 

 

Ela odiaria isso aqui. Ela nunca quis luxo, nunca quis nada disso. Nunca iria querer as cadeiras decoradas com prata, ou o caixão caro de mogno, ou a corrente de ouro que o contorna. Ela não era assim. Ela não se incomodaria com as pessoas pois ela sempre gostou delas. Sempre via o bem nelas. Mas eu não. Eu só vejo pessoas que não a conheciam e que nunca a entenderiam. 

Agora eu me pergunto se ela iria querer ser enterrada. Eu sei que ela adorava Memórias Póstumas de Brás Cubas, e de como ria sempre que lia a dedicatória ― ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas ― , mas eu nunca perguntei o que ela quereria depois de morrer. Talvez por causa da angústia de saber que talvez fosse eu a matá-la.  

Mas sei que ela não iria querer assim. Não com tudo pago pelo dinheiro sujo do pai dela. Não pago pelo pai ausente dela. Pelo pai que não a ama e que mandou matá-la.  

 

 

“Eu acordei do lado de fora com o ruído de pessoas falando, algumas vozes ao meu redor abafadas pelas mãos que cobriam as bocas. Tosses secas ecoavam, mas nenhuma tão familiar quanto a dela. Eu sentia uma dormência no braço, assim como um aperto na parte superior deste que começava a incomodar. Quando ergui-o alguns centímetros acima da grama sobre a qual estava deitada, a dormência perdeu força e uma ardência tomou conta do membro, fazendo com que eu perdesse o controle de sua sustentação.  

Comecei a respirar fundo, tentando controlar minha respiração e assim, minha dor. Pouco a pouco, a dormência voltou ao meu braço, substituindo a dor lancinante que me dominava. Mas isso não vem ao caso; o que aconteceu depois disso sim. Meu pai apareceu a minha frente, vindo de algum lugar por entre a multidão,  cambaleante e segurando um objeto pequeno, cúbico entre os dedos. Sua expressão refletia algo que eu nunca tinha visto antes naquela época, mas que agora me é muito comum: desespero. Desolação. Medo. Tudo misturado em seu rosto e em seus olhos. Quando ele caiu de joelhos ao meu lado e as mãos se abriram frouxamente, deixando o objeto cair na grama, eu vi o que era. 

Era a caixinha de música. A minha caixinha de música. A que estava em minha cabeceira, e que eu ouvia todas as noites, admirando a bailarina que rodopia vá na superfície espelhada da parte de dentro, sonhando com o dia em que eu encontraria minha bailarina. 

Mas algo estava errado. Por que motivo meu pai estaria ali, sentindo tudo o que sentia e transmitindo menos da metade de tudo isso, com minha caixinha de música nas mãos? E onde estava minha mãe? 

Ele pareceu entender. Pela primeira vez,  meu pai entendeu algo que eu sentia, que eu queria falar, somente olhando para mim. E então falou: 

― Não se mexa, querida. Você está muito machucada. Quebrou o tornozelo e... ― o jeito como ele me chamou de querida me deixou enojada, e me deixa até hoje. Ele adora me ver com nojo dele, não sei porquê motivo ― está com um queimado muito feio no braço. É melhor ficar aqui. 

Mas assim que ele olhou em meus olhos, eu coloquei todo o medo e a dor e a inquietação que sentia ― havia a uma imensa dúvida em minha mente, e eu a coloquei em meu olhar. Ela está viva? 

Seu queixo indicou um local além da pequena multidão, onde haviam bombeiros e traços de fumaça negra subindo aos céus. A nossa casa. Queimada. 

Eu senti um desespero tão grande que até hoje não sei como isso não me afetou de forma permanente. Tudo o que eu queria era minha mãe. E esse desejo me fez levantar, esquecer toda a dor que sentia no pé e no braço, e procurar em meio às pessoas. Por uma parte de seu vestido. Um vislumbre de seus cabelos. Alguma coisa. Sem fôlego eu procurei, até que alcancei a frente da casa. 

Em meio aos bombeiros e as poucas pessoas paradas com lenços e as mãos nas bocas, havia uma coisa comprida no chão, coberta com uma lona. Eu cheguei mais perto, com uma sensação ruim subindo à minha garganta. Assim que me ajoelhei ao lado da lona, sentindo a minha cabeça girar por causa da dor no tornozelo enfaixado, fitei-a por um longo tempo antes de espiar embaixo dela.  

Foi a pior coisa que fiz. 

Era ela. Era minha mãe.  Coberta de queimaduras pelo corpo, o vestido rosé chamuscado e se desmanchando em muitos lugares. Um imenso monstro se instalou em meu peito desde então, um monstro tão terrível quanto feroz, e que eu carrego até hoje nas costas e na mente: o pesar. 

Eu a matei, era tudo o que eu pensava. É tudo o que eu penso.” 

 

 

É tudo o que eu penso agora. que eu matei a Sol. Mas sabe o que tira esses pensamentos da minha cabeça? Lembrar dela. De como ela fazia a cama de manhã, ajeitando as cobertas até que elas ficassem totalmente esticadas. Como ela passava os dedos pelo piano sempre que passava por ele e não podia parar para tocá-lo. O cheiro do seu shampoo e de seu sabonete. O gosto de balas de cereja que eu sentia toda as vezes que eu a beijava. A maciez de seu toque, incondizentes com os calos nas pontas de seus dedos. 

E então eu choro. Não me importo que estou em seu enterro de penetra, e esqueço que sinto raiva por ter de aparecer aqui disfarçada.  Esqueço a culpa e a dor; esqueço o ódio que sinto de Saturno e dos detalhes luxuosos desse lugar. 

Eu só sinto sua falta. Eu sinto falta de como seu calor frio me aquecia, mesmo eu não precisando ficar mais aquecida do que sempre estou. Mas agora eu me sinto fria.  Eu me sinto vazia. Sinto que estaquei, que parei de orbitá-la. Definitivamente.  

 

 

“Veja bem. Não há outra explicação para o que ocorreu. Eu não sei exatamente o que aconteceu naquele dia, mas posso deduzir muito bem: eu comecei a queimar a cozinha acidentalmente, e a porta que me permitia sair de lá estava emperrada. Minha mãe teve que me buscar pela outra porta, atravessar as chamas e me tirar de lá. Ela me cobriu com um cobertor e nos levou pra fora. E depois voltou para buscar a caixinha de música, por um motivo que eu desconhecia na época, e que sei agora.  Mas isso é outra questão.  O que importa é ela está morta por que ela foi me buscar. Eu estou viva ― não exatamente ― agora por causa dela, e sou mais que grata por isso. Mas o motivo de ela não estar aqui, ao meu lado agora, sou eu. 

Não adianta tentar me convencer do contrário, por que eu já tentei. Não há outra explicação, não há outro meio de contar a história.  E é por isso que meu pai me odeia até hoje. 

Desde que eu nasci, seu casamento começou a ir por água abaixo. Os “negócios” estavam indo de mal a pior, pois a polícia estava na sua cola e ele teria de dar um jeito de despistá-la. O tempo que passava em casa não era nem suficiente para dormir, quem dirá cuidar da esposa e da filha. 

E ele amava minha mãe. Como amava. Ele dizia que ela era a estrela mais brilhante no céu, e a menor de todas ao mesmo tempo. Foi daí que ela tirou os apelidos. Ele começou a chamá-la de Mercúrio, e ela o chamava de Saturno; depois que eu nasci, eles passaram a me chamar de Sol, apesar de meu nome ser Helen, que significa, entre muitos significados, 'raio de sol'. Eu queria ter dito isso para você antes, mas tinha medo de que o fato de você saber meu nome fosse mudar algo, pois nosso laço se formou inicialmente por nós sermos 'Sol e Lua'. Minha mãe escolheu esse nome por que eu fui o Sol que nasceu para eles, que trouxe um novo dia, uma nova era. 

Por isso perdê-la foi um golpe quase fatal para o meu pai. Ele no começo apenas chorava e se lamentava, andando pela casa para a qual nos mudamos, na cidade, sempre sem rumo. Mas depois de semanas ele decidiu que deveria encontrar um culpado. E o único que encontrou foi eu. 

Eu não sabia o que meu pai fazia, mas depois que minha mãe morreu e nós nos mudamos, ele fez questão de me mostrar tudo. Ele usava o mesmo apelido que minha mãe dera no trabalho, mas como um código me.  Ele era o chefe supremo de uma organização secreta, usando a fachada de investigação criminal quando na verdade a organização se incluía no crime: tráfico de drogas e turismo sexual eram o principal negócio.  

Depois disso eu aprendi a tomá-lo, pois ele sempre me levava a execuções de traidores do segredo da organização, a Uni, como todos chamavam, de mentirosos, ou de pessoas de quem ele queria se vingar. E eu, infelizmente, era uma delas. 

Por ser sua filha, eu sabia que ele não queria ser identificado em minha morte, e por isso, não iria me sequestrar, ou contratar um atirador para me mata na rua, pois seria mito suspeito. Não, ele contrataria alguém para fazer seu trabalho sujo. 

No começo, quando eu começava a acreditar nessas teorias que eu desenvolvia nos dias e noites que eu ficava trancada no mesmo apartamento que estamos hoje, tudo o que eu queria era fugir, me esconder, evitar a morte a qualquer circunstância. Mas então a ficha caiu; eu comecei a compreender o ódio de meu pai por mim, por que ele me mostrava tudo do trabalho dele, por que ele me queria morta. 

E eu comecei a querer também. Não a sentir ódio de mim, mas de me arrepender dos pensamentos ruim que me levaram a perder a atenção naquele dia e deixa a cozinha queimar. Que levaram à tragédia que hoje me assombra como as asas estendidas de um abutre. 

Então eu só aceitei. Durante seis anos, dos meus 16 anos até um dia antes de eu te conhecer, minha única realidade era esperar. Minha única certeza era a morte que viria um dia. 

Mas aí, você apareceu. 

E o resto não é mais história. Foi real, por mais que eu me pergunte toda noite, e me belisque tentando acordar do sonho inexistente. É real, você é real.” 

 

 

Decido ir embora assim que o padre termina suas últimas palavras, e o caixão começa a baixar. Mas antes disso, me aproximo das pessoas ao redor dele, prontas para jogar as flores que trouxeram. Ao contrário de flores, eu seguro um pedaço de papel que encontrei na rua, provavelmente rabiscado rapidamente em uma ponta de folha de papel almaço, mas parecia tão real, tão verdadeiro, e ao mesmo tempo, tão breve, que eu não resistiu senão pegá-lo. 

Estava escrito “eu te amo”. 

Retiro o isqueiro favorito da Sol do bolso e o abro. Instantaneamente, uma chama surge, e eu a aproximo do papel em minha outra mão. Quando eles se encontram, o bilhete de incendeia, e eu o largo no fundo buraco na terra, assistindo a sua leveza aí flutuar até o chão.  Antes de tocá-lo, ele se desfaz. Então sussurro: eu te amo, Sol. 

E deixo as outras pessoas para traz. Deixo as lápides para trás. Deixo Saturno e a raiva e o ódio. Deixo as lágrimas e a culpa. Deixo meu adeus. Deixo tudo. 

A única coisa que não deixo é meu amor. Esse permanecerá para sempre comigo. 

 

 

"Eu tenho a cicatriz até hoje na palma da mão.  Foi onde eu cocei mais, onde minha pele não voltou ao normal. Você nunca me perguntou onde eu a arranjei, mas eu sentia que você tinha curiosidade. Talvez até tenha tido algumas ideias de como eu a adquiri, mas com certeza você não imaginou nada como isso. Agora você sabe tudo. É a marca que eu tenho para me lembrar todos os dias da morte dela. 

Eu tenho a caixinha de música até hoje. Ela não toca mais, estragou há muito tempo, mas eu ainda a guardo. Tiveram épocas em que eu quis quebrá-la, mas de que adiantaria? Foi o preço que ela pagou. Ela foi buscá-lo sem pensar nas consequências, talvez porque eu sempre dormia com sua melodia, e admirava a bailarina que dançava dentro dela. Mas é apenas um brinquedo. É apenas um brinquedo. Eu nunca saberei o real motivo dessa façanha, essa façanha que custou lhe a vida.  

Não sei se tenho mais alguma coisa para falar. Tudo o que veio depois você já sabe, pois você estava comigo. Eu aprendi a temer o que te faz triste, e a odiar o que te traz medo. A amar o que te faz feliz e a sorrir quando você sorri. Chorar quando você chora. Sentir o que você sente, e compartilhar com você o que eu sinto. 

Você é meu tudo, você mudou a minha vida. Onde antes eu só via um futuro previsível e limitado, agora eu vejo como realmente deveria ser a vida de alguém, instável e turbulenta e maravilhosa. E a minha vida eu quero viver com você.  Se nós tivéssemos mais tempo... eu peço perdão por você ter que fazer isso, por você ter feito isso. Não é o que eu desejava, mas que eu tenha morrido por suas mãos foi melhor de que sucumbir pela lâmina de um assassino de aluguel, ou pela bala de um atirador de elite. Você me amou como eu nunca fui amada. Não é como o amor de uma mãe, e nem o amor de um amigo; foi diferente, é diferente.  

Você se lembra daquela tela que eu pintei? Aquela onde você estava deitada em um canteiro de flores ao luar, com sapatilhas de balé nas mãos e o sorriso mais lindo que eu já vi? Eu me sinto mal por você ter chorado depois, e como na época eu não sabia o motivo de você chorar tão subitamente, eu levei o quadro embora, achando que era por causa dele. Eu quis destruí-lo, sabe? Pois eu sabia que algum dia, se alguém o encontrasse, poderia te incriminar. Mas eu não poderia fazer isso. Eu coloquei tudo o que eu sentia naquele quadro, o que eu ainda sinto. Ele continha demais de mim e de você para eu jogá-lo fora. Então eu o escondi. 

Convenci Bill, o porteiro, a escondê-lo em um lugar para mim, e lhe dei o endereço do galpão. Ele levou-o para mim no dia seguinte. E esta lá desde então. Eu fui chegar apenas duas vezes de nesse dois anos. E se estava lá na última vez, creio que ainda está lá. Então... ele é seu. Sempre foi, e quero que guarde-o para se lembrar de mim. Isto é, se quiser se lembrar de mim, é claro. Não sei se isso será um peso para você, ou uma ferida aberta que não cicatriza; uma doença mortal, incurável. E mesmo se for, eu pessoalmente que pegue o quadro mesmo assim. E espero que, sempre que olhar para ele, sua dor diminua, nem que seja só um pouquinho. 

Sinto que estou chegando ao fim de tudo. Tudo o que eu sinto, eu espero poder transmitir à você em todos os dias em que estivermos juntas, que eu possa te mostrar no que eu faço, em como faço. Que ele esteja em meus sorriso e meus (poucos) abraços.  Que esteja em minhas pinturas e em minhas músicas. Em meu toque e em meus beijos. Em meus olhos e em meus movimentos. Em tudo o que faço, pois tudo o que eu faço, eu faço por amor. Eu faço por você. Você é o meu vício, Lua. Meu único e original vício.  Você é o fogo que eu via em meus sonhos quando criança, como se meu inconsciente já soubesse que eu te conheceria, e que a amaria. Minha piromania ― e eu sei que eu tenho essa doença, eu leio muitos livros ― não se tratava de minha obsessão pelo fogo. É pelo seu fogo. O fogo que você carrega dentro de você, que você representa. Não há nada assim em toda galáxia, apenas em nossa galáxia.  

E ela existe. Aqui dentro, em meu coração.  Aqui dentro, o Sol sempre orbitará a Lua, e a Lua sempre orbitará o Sol. Aqui dentro, nos somos uma. Para todo o sempre. 

Com o amor das estrelas,  

Sol. 

 

P.S.: O endereço está dentro do envelope.” 

 

 

 

Dois dias depois 

 

 

Assim que abro a porta de madeira, uma nuvem de poeira sobe, me fazendo tossir e engasgar, e um rangido alto é emitido pelas dobradiças enferrujadas, provavelmente gritando por óleo lubrificante. Obviamente a porta não é aberta há muito tempo. 

Tento acender as luzes do lado de dentro do cômodo, mas o interruptor está estragado. Então retiro a lanterna que trouxe de dentro da bolsa, dando graças por ter me lembrado dela. Assim que a ligo, um feixe de luz ilumina a única parte mobilhada do cômodo ― talvez mobilhada não seja a palavra certa. Há apenas algumas caixas empilhadas, de madeira, e ocupam o centro da sala escura.  Todo o resto é vazio. 

Ignorando o fato que que talvez haja mil espécimes de ratos e aranhas nesse lugar, e que alguns podem transmitir inúmeras doenças, eu o adentro. 

Vou diretamente até as caixas e começo a abri-las, uma por uma. 

A primeira tem uma camada grossa de poeira sobre ela, e desprende boa parte dela assim que a abro. O interior é preenchido no fundo por um papel muito fino e vermelho, com pequenos rasgos em alguns lugares. Sobre ele, há uma tela. Está meio velha, mas continua linda. É a pintura de um vaso grego, com flores laranjas e azuis dentro, tão perfeitas que parecem reais. Eu estico a mão para tocá-las, para ter certeza de que não são de verdade, mas acabo tocando o tecido grosso da tela. A assinatura na base não é a da Sol, mas lembra muito a dela. 

Depois de guardar a pintura na caixa, alcanço outra, dessa vez sobre algumas caixas maiores, mais acima da anterior. Abro-a mas não há nada dentro. Minha ansiedade aumenta, e depois de fechá-la, analiso as outras caixas, tentando descobrir qual contém a pintura certa, para não perder mais tempo. 

Respiro fundo, me sentindo mais perto dela agora, mais perto do que me senti na última semana. Eu achava que, a cada dia mais, ela escorria por entre meus dedos como areia do deserto. Mas agora sinto ela voltando pra mim, como se corres e na direção de meus braços abertos em um canteiro de flores. Espero que, quando eu encontrar a tela, ela finalmente me encontre. 

Finalmente avisto uma caixa média abaixo de uma maior, e ela contém menos poeira do que as outras.  Retiro a grande de cima e abro a de baixo, ávida.  

Prendo a respiração ao vê-la. É ela. É a minha tela. 

Com cuidado, retiro-a de lá, segurando pela lateral com uma das mãos, apontando o feixe de luz com a outra, para admirá-la.  

É exatamente como eu lembrava. O céu parece mais vivido sob a luz da lanterna, o azul noite e o roxo se misturando perfeitamente. As estrelas tão brilhantes quanto as verdadeiras. As flores miúdas emolduram meu corpo na pintura, mas há detalhes que eu não tinha percebido antes. 

Há rostos desenhados em meu vestido, olhos brilhantes e sorrisos travessos, como de crianças; no fundo da paisagem, há um penhasco, e na ponta, uma árvore inclinada, com os galhos retorcidos em forma de lua; as estrelas formavam uma constelação bem conhecida: capricórnio. Meu signo. 

Não consigo evitar. As lágrimas enchem meus olhos e eu as deixo cair. Não são lágrimas de dor e em de tristeza. São lágrimas de felicidade. 

Ele foi tudo pra mim, ainda é e sempre será. Não é porque ela se foi desse mundo que ela irá embora de meu coração e minha alma também. Ela continua aqui, ao meu lado. Sempre que eu ouço uma música, ou leio um livro. Sempre que passo na frente de uma loja de pintura ou vou a um museu de história.  Quando vou à livraria ou à biblioteca, eu me lembro dela. Quando eu danço, eu lembro dela. Quando eu durmo, quando respiro, eu lembro dela. E eu gosto de lembrar dela. Me faz ter certeza de que ela era real, e que não foi só fruto da minha imaginação. Quando percebo, estou de joelhos, e minhas lágrimas pararam de jorrar. 

Enquanto me levanto do chão, segurando a tela contra o peito com um dos braços, eu sinto como se ela estivesse aqui, e em vez de segurar a tela, eu seguro a Sol em meus braços. Eu sinto o calor frio dela, e sinto o fogo em suas veias. E o fogo dela interage com o meu. É algo que eu nunca tinha percebido antes; o mesmo fogo que passeia pelas veias dela passeia nas minhas também, são as mesmas chamas que acendem nosso corações.  Eu achei que esse fogo se apagaria quando o fogo do apartamento dela se extinguiu, mas ele continua aqui. Nós ainda estamos ligadas por esse lume, ainda me sinto incendiada por ela. 

Essa língua de fogo que nos mantém juntas nunca vai desaparecer. 

Nunca. 

 

 

 


Notas Finais


Espero que vocês estejam bem à essa altura, kgdkgjdkjdk.

Para quem quiser saber, o quadro que a Lua encontrou primeiro era da mãe da Sol, e ela assinava com um "H" mais curvo e mais delicado que o da Sol, pois o nome dela era Hélinè. Ela era francesa, mas isso é só um detalhe. Só que a Lua nunca percebeu que a assinatura da Sol era um "H".

O resto das dúvidas, se eu puder responder, eu responderei, se vocês me perguntarem por MP. Eu tentarei responder todas, mas algumas coisas devem permanecer em segredo.

Obrigada a todas e a todos que me acompanharam todo esse tempo, e peço desculpas por algum erro e pela demora. Daqui a algum tempo, volto com uma história totalmente inédita para vocês.

Eu amo todos vocês,

Dual.


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