Point Of View — Charlie
Abro meus olhos lentamente, acostumando-me com a claridade do dia e também com a ideia de me levantar. É inverno, a brisa nos entorpece durante o dia e também à noite. As árvores estão secas, nuas sem suas folhagens e desesperadas para receber o deleite da primavera. Os casacos grossos ocupam grande parte do guarda-roupa, enquanto as peças frescas que não nos aquecem permanecem no fundo das gavetas, quase implorando para serem usadas.
Ao fixar meu olhar na ampla janela a minha frente, sou atraída não pela forma quase poética como as cortinas balançam por causa do vento, mas sim pelo sol radiante, surpreendentemente tentador. Há dias a magnífica estrela nos não banhava com sua luz, foram longos dias com o céu nublado e chuvas implacáveis. Mas, apesar da ideia de levantar-me e aproveitar o sol antes de ir para o trabalho realmente me cativar, a cama parece excepcionalmente atraente essa manhã, assim como nas manhãs anteriores.
Sendo absurdamente sincera, não é o colchão macio que me atrai ou o travesseiro felpudo abaixo de minha cabeça, tampouco a coberta quentinha. A verdadeira tentação é o homem deitado ao meu lado, cujos braços fortes e tatuados circundam minha cintura amorosamente, colando meu corpo ao dele, garantindo assim que durante todo o nosso tempo juntos nessa cama eu não passe frio ou carência, pois ele é absolutamente capaz de suprir essas duas necessidades, entre outras mais.
Com todo o cuidado e delicadeza do mundo eu me mexo, movendo seu braço infelizmente para longe de mim e afastando-me o suficiente para conseguir me virar e encarar sua face adormecida. Sustento meu corpo pelo cotovelo, fitando-o fixamente. Ele sorri enquanto dorme, não um sorriso largo perceptível para qualquer pessoa, mas a forma como seus lábios se contraem o torna visível para mim. Seu cabelo loiro está bagunçado, um completo desastre e imagino que o meu esteja da mesma forma. Observo seu peito subir e descer, musculoso e tentador.
No mesmo instante em que minha mente leva-me de volta aos momentos de ontem á noite, provocando devaneios excitantes em minha mente, sinto um arrepio por todo o meu corpo. Balanço a cabeça negativamente e suspiro. Inclino minha cabeça em direção ao seu peito, tocando a cruz tatuada em sua pele com os meus lábios. Ele se remexe, mas não acorda. Repito meu ato, desta vez tocando seu abdômen com minha mão.
–– Acorda preguiçoso, nós precisamos ir trabalhar. –– sussurro contra sua pele, distribuindo beijos por seu tronco até chegar aos seus lábios.
–– Mais cinco minutos. –– implora, se virando para o outro lado como um adolescente preguiçoso que não quer ir para escola.
–– Nem cinco, nem um. –– debato, como uma mãe autoritária. Ele sorri. –– Levanta. –– insisto, dando um tapinha em sua coxa.
Deslizo para o fim do colchão a fim de me levantar, mas quase imediatamente sinto a mão de Justin segurar a minha e me puxar para cima fazendo com que meu corpo se choque contra o seu. Ainda de olhos fechados ele desliza suas mãos por meu corpo, até pousá-las em minha cintura. Ao abrir suas pálpebras de forma lenta e preguiçosa, coçando os olhos, ele sorri.
–– Bom dia, esposa. –– a rouquidão exagerada em sua voz me faz estremecer, mas é a palavra esposa que causa um sorriso largo em meus lábios. Mesmo a tendo ouvido tantas vezes, mesmo estando casada há um ano, eu não consigo evitar o efeito desta palavra sobre mim.
É bobo, quase infantil, mas inevitável e compreensível. Quantas vezes eu machuquei meu coração? Foram muitas vezes. Eu o deixei quebrar até que o mesmo finalmente se despedaçou, virou cinza e abalou minha fé na única coisa mágica desse mundo.
Eu tinha fé de que um dia eu iria encontrar o homem da minha vida, meu melhor amigo, minha alma gêmea, aquele para quem eu poderia contar todos os meus sonhos e segredos. Ele tiraria meu cabelo dos olhos e me enviaria flores quando eu menos esperasse. Ele me admiraria em momentos simples como, por exemplo, quando estivéssemos assistindo um filme. Ele me ligaria pra dizer boa noite, apenas porque sentiu minha falta. Ele olharia no fundo dos meus olhos e diria que eu sou a mulher mais bonita do mundo, e pela primeira vez eu iria acreditar.
E quando eu pensei em desistir, quando eu pensei que esse homem nunca aparecia... Ele apareceu. Ele não veio me resgatar em um cavalo branco, mas ele me ajudou no momento em que eu mais precisei. Ele se tornou meu amigo, a pessoa para quem eu contei os meus segredos e depois se tornou minha alma gêmea, meu marido. Ele tira meu cabelo dos olhos e me envia flores quando eu menos espero. Ele me admira em momentos simples como, por exemplo, quando eu faço o jantar ou lavo a louça. Ele me liga diariamente, apenas porque sente minha falta. Ele me olha no fundo dos meus olhos e diz que eu sou a mulher mais bonita do mundo. E pela primeira vez, sem duvidar, eu acredito.
–– Bom dia, marido. –– beijo seus lábios rapidamente.
Contra a gosto nós nos levantamos da cama a caminho do banheiro, onde nós esperamos sonolentamente até que a banheira se encha por completo. O banho dura mais do que o necessário e não consigo evitar pensar o quão decepcionado meu pai ficaria se desse uma olhada em nossa conta de água. Entretanto isso não me faz sair imediatamente da banheira, pelo contrário. Permaneço em meio às pernas de Justin, sentindo suas coxas ao meu redor, com todo o meu corpo coberto por uma grossa camada de espuma enquanto meu marido massageia minhas costas com a bucha azul, impregnando meu corpo com o cheiro de lavanda. Minhas mãos carregadas a sabonete líquido deslizam por toda a extensão de suas pernas, desde a virilha até o tornozelo, esticando seus pelos cumpridos para cima e depois para baixo.
E quando finalmente eu o convenço a sair da banheira sou obrigada a usar um argumento totalmente e completamente exagerado, dizendo que ambos estamos limpos e cheirosos o suficiente para o resto da semana. E apesar do mesmo perceber a incoerência em minha fala, ele ri e se levanta pegando uma toalha para mim logo em seguida.
Exatos trinta minutos, esse foi o tempo que nós passamos no banheiro. Ao sair esforço-me ao máximo em vestir minhas roupas e me arrumar decentemente, o que é uma tarefa realmente muito difícil quando se tem um homem tão atraente quanto Justin ao meu lado, fitando-me dos pés a cabeça como se fosse devorar-me a qualquer instante. Ruborizo. Não envergonhada com a situação, é mais do que satisfatório saber que meu marido me deseja. Mas sim, devido à intensidade de seu olhar sobre mim, mesmo estando casados há um ano, não consigo me acostumar com seu olhar e provavelmente nunca irei.
–– Como eu estou? –– pergunto parando a sua frente, realmente interessada em sua resposta. Com o pouquíssimo tempo que tive para me arrumar, será um milagre se ele disser que estou no mínimo ajeitada.
–– Linda, como sempre. –– ele sorri tão verdadeiramente que eu me julgaria uma tola se não acreditasse em suas palavras.
Dou alguns passos em sua direção, aproximando meu corpo do seu e tocando seus ombros largos com minhas mãos. Tomo seus lábios e o que era para ser um beijo rápido se intensifica quando Justin me aperta contra si, descendo suas mãos para bem perto de minha bunda coberta pela calça jeans. Sua língua pede passagem, adentrando minha boca de forma majestosa e me fazendo sentir o gosto de menta do creme dental.
–– Eu não posso me atrasar, preciso ir à fazenda do senhor Wilson hoje. –– digo ao separar meus lábios dos dele.
–– Oh, claro. É hoje o tão esperado parto certo? –– assinto, calçando meu par de botas pretas, tento em mente que qualquer outro sapato seria inapropriado para caminhar em uma fazenda. –– Ainda está animada?
–– Muito animada. –– aprumo meu corpo. –– É o meu primeiro grande parto.
–– Você já fez outros partos antes, inclusive o de Molly. –– diz ele, vestindo uma camisa xadrez por cima da regata branca.
Mordo o lábio inferior, ele está tão lindo. Justin fica terrivelmente sexy com as mangas da camisa arregaçadas até os cotovelos, exibindo algumas de suas tatuagens.
–– Sim, mas eu nunca fiz o parto de um animal de grande porte. –– debato, pegando minha bolsa no cabideiro.
–– Boa sorte com a égua. Dizem que Celeste é a égua mais brava das redondezas.
–– Pare de tentar me botar medo, não está funcionando. –– ele ri.
• • •
Flexiono minhas pernas apoiando as mãos em meus joelhos, ficando assim na altura perfeita do móvel branco. Meus olhos escuros percorrem curiosamente toda a extensão da ampla gaiola a minha frente, acompanhando o movimento de todos os quatro bichinhos astutos ali dentro enquanto uma guerra preenche todo o espaço vazio em minha mente.
Os quatro porquinhos da índia sem nome se misturam uns com os outros, mas nitidamente são completamente diferentes. Enquanto os dois brancos com manchas pretas se divertem nos tubos coloridos, o branco com manchas marrons e pretas para de beber sua água no instante em que percebe estar sendo observado, e o último porquinho, o branco com manchas marrons permanece adormecido sem se importar com qualquer coisa além de seu sono.
Em minha mente a guerra continua, acompanhada da dúvida. Devo ou não devo? Teoricamente estarei sendo antiética e isso é algo imperdoável, mas ao lembrar-me da face da pequena Taylor e de seus olhinhos marejados fico sem outra opção e não penso duas vezes antes de apanhar cuidadosamente o porquinho dorminhoco com minhas mãos.
Por coincidência, destino ou pura sorte, o porquinho dorminhoco é o gêmeo de Pikachu, o porquinho morto em meu escritório. Os cinco porquinhos, contando com o falecido, foram gerados na mesma ninhada e trazidos até o consultório duas semanas atrás na expectativa de serem adotados. Taylor é pequena demais e ingênua demais para perceber que seu mais recente melhor amigo veio a falecer ontem à noite e com o coração puro de uma criança de cinco anos pensou que uma vinda ao veterinário faria com que seu bichinho ficasse bom novamente.
Mas, infelizmente há coisas que nem o profissional mais competente pode resolver. É normal que bichinhos recém-nascidos sofram no começo de suas vidas e acabam não resistindo. A mãe da menina por sua vez não teve coragem de dizer à filha o que realmente aconteceu com Pikachu e quando me pediu para trocar o porquinho por algum de seus irmãos, eu me vi em um impasse, me sinto mal por enganar a pequena, mas é claro que a possibilidade de fazê-la feliz falou mais alto.
–– Aqui está ele, novinho em folha. –– aproximo-me de Taylor com o bichinho dentro da gaiola do antigo Pikachu.
A garota de intensos cabelos ruivos abre sua boca desacreditada e arregala seus olhos, ao mesmo tempo em que corre para me abraçar me fazendo sorrir verdadeiramente. Logo ela pega o bichinho da gaiola e mentalmente eu imploro para que ele realmente seja um gêmeo do antigo porquinho.
–– Pikachu você está bom de novo! –– diz ao porquinho como se esperasse uma resposta.
–– Pois é, ele só estava com sono. –– ela me encara. –– Se quer saber, eu acho que ele pensou que ainda estava na barriga da mãe. –– seu olhar intercala entre mim e a pequena bola de pelos em suas mãos, e logo sua risada ecoa por todo o lugar.
–– Porquinho preguiçoso. –– Taylor aperta o bichinho cuidadosamente contra seu peito.
–– Obrigada doutora. –– agradece Irina, a mãe de Taylor.
–– É, obrigada doutora. –– Taylor repete as palavras da mãe.
–– De nada. Tenham uma boa noite.
No instante em que as duas saem do consultório nitidamente feliz, eu desabo no sofá na recepção, completamente exausta, mas satisfeita comigo mesma. Meu olhar vaga por todo o lugar até estagnar-se no relógio da parede. Ao notar ser exatamente cinco da tarde solto um suspiro cansado, ao mesmo tempo em que sou preenchida pela ansiedade.
Pulo do sofá ficando de pé e ajeitando a roupa em meu corpo.
–– Ah, estou cansada! –– exclama Pattie aparecendo em meu campo de vista e se debruçando contra o balcão da recepção.
O movimento da clínica está indo de vento em pompa, o que é ótimo para os negócios, mas desgastante para as duas únicas veterinárias do lugar. Jazmyn diversas vezes tentou convencer a mãe a contratar outro profissional, mas Pattie insiste que quer manter os negócios apenas entre a família. Quando ouvi tal coisa obviamente debati de forma bem humorada a minha contratação, Pattie disse que na época precisava desesperadamente de alguém que a ajudasse e que me contratar foi a melhor coisa que ela fez, além de ter mantido os negócios apenas entre a família.
Imagine minha felicidade ao perceber que sim, eu sou definitivamente da família. Não sou apenas uma Dawson. Sou uma Bieber. Sou oficialmente da família.
O meu casamento com Justin foi o assunto mais comentado durante os dois primeiros meses entre as duas famílias. Pattieassim como a minha mãe, ficou inconformada por termos nos casado sem ao menos pensar em comunicá-las, não que elas desaprovassem nossa união, pelo contrário, ambas fazem muito gosto de nossa união, mas mesmo após meses de casados elas ainda não superaram o fato de como as coisas aconteceram. Nem mesmo o casamento no civil seguido de um grande almoço para os parentes mais próximos foi o suficiente para elas.
–– Charlie, você não deveria estar na fazenda do senhor Wilson? –– ela indaga.
–– Sim, estou indo para lá agora mesmo.
–– Boa sorte com o seu primeiro grande parto.
–– Obrigada, eu vou precisar. –– ela ri.
O caminho até a fazenda é mais rápido do que eu havia imaginado e durante todo o trajeto o silêncio é preenchido pelas músicas tocadas na rádio local. Estranhamente desenvolvi um amor por música country, e culpo Justin por isso ao mesmo tempo em que lhe agradeço. Nunca pensei que esse som pudesse ser tão relaxante, e graças a ele que eu não tenho um pequeno ataque de ansiedade durante o caminho.
Quando chego à fazenda sou recebida pelo senhor Wilson nervoso e completamente preocupada com sua égua, o que me deixa apreensiva e nervosa. Celeste é linda, simplesmente estonteante. Uma égua negra de pelos brilhantes, crina cumprida e uma barriga imensa.
Uma vez com as luvas em mãos e materiais necessários a postos, me aproximo de Celeste acariciando-a levemente. Muitos donos de éguas são contra os partos assistidos e ao auxílio de profissionais nesse momento, mas no caso de Celeste minha presença é estritamente necessária. O histórico reprodutivo da mesma é extremamente problemático, contando com três gravidezes não completas. O senhor Wilson quase soltou fogos de artifício quando a mesma conseguiu chegar até o décimo primeiro mês da melhor maneira possível.
O parto demora sessenta minutos para ser concluído, trinta minutos a mais do que um parto habitual, mas felizmente Celeste passa por todo o processo muito bem e seu potro é o mais saudável e forte possível. Se disser que durante esse tempo não senti medo estarei mentindo, diversas vezes eu senti minhas mãos tremerem e quase chorei de nervoso, com medo de estragar tudo.
–– Se ela apresentar algum sintoma estranho ou qualquer sinal de sangramento me ligue imediatamente, ok? –– me levanto após recolher o meu equipamento e imediatamente curvo meu corpo para frente, apoiando uma das mãos na barriga ao sentir uma forte dor no abdômen.
–– Doutora, você está bem? –– pergunta o senhor Wilson.
–– Sim, é apenas uma cólica. –– respondo com os olhos fechados.
–– Quer que eu ligue para alguém? –– seu tom de voz é nitidamente preocupado, e por mais que eu aprecie sua preocupação no momento só consigo me focar na dor repentina e perversa. –– Doutora?
–– Eu estou bem, só preciso ir pra casa. –– respondo com dificuldade, virando-me para pegar as coisas que sem perceber deixei cair no chão.
–– Eu acho melhor eu ligar para a ambulância. –– ele insiste, mas eu seguro seu braço antes que ele se afaste.
–– Senhor Wilson não precisa, mulheres sente cólicas o tempo todo. –– apesar de ser verdade, algo em minha mente grita debatendo as palavras ditas. Nunca havia sentido uma dor tão intensa.
–– Doutora, eu não sou mulher, mas tenho certeza de que essa mancha de sangue em sua calça não é normal.
Meu olhar vaga até o meio de minhas pernas. Ao tocar o jeans à umidade passa para meus dedos e ao erguê-los fico tonta ao ver o vermelho sujar minha pele. Engulo a seco, preocupada, nervosa e ainda sentindo dor.
–– Senhor Wilson ligue para o hospital, por favor.
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