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História Magoar, Perdoar e Esquecer (Edição de Ouro) - Alguém partiu (antepenúltimo capítulo)


Escrita por: GSilva

Capítulo 25 - Alguém partiu (antepenúltimo capítulo)


ALGUÉM PARTIU

Quando o sinal para a volta do intervalo tocou, Lucas bufou em discordância. Passamos todos os quinze minutos meio que abraçados, de mãos dadas, com ocasionais beijos. Pessoas nos olhavam e achamos melhor guardamos todo esse afeto para quando estivéssemos sozinhos.

            Lucas parecia mais calmo, depois que desmistifiquei a mentira de Thomas e finalmente pude voltar a ficar com ele. Foi um alívio, sentir aqueles braços em volta de mim, aqueles beijos apaixonantes, e poder olhar para ele com a certeza de que ainda éramos apenas nós dois. Apenas nós.

            Porém, quando o sinal tocou, praticamente fomos obrigados a voltar para a sala. Ele me deixou com um olhar triste, dizendo que precisava estudar qualquer coisa sobre a dinâmica em Física. Eu o deixei ir com um sorriso triste e me voltei para a passarela.

            Mal podia esperar para contar tudo à Aqua. Com certeza ela estava curiosa, tão envolvida nessa história quanto eu. É claro, nada tinha de fato acontecido com as minhas amigas, ou com Larry – era algo muito pessoal, entre eu, Thomas e Lucas –, mas eu precisava contar tudo para elas e para ele, cada mínimo detalhe.

            Subi as escadas até a passarela e me dirigi ao pátio do ensino técnico, com o coração calmo. Foi a primeira vez que notei que meu coração estava de fato calmo, num ritmo normal e constante. Eu tinha voltado ao normal, depois de um dia muito perturbado e fora do comum. Tudo por causa de Thomas.

            Lembrei-me de como Thomas era antes de sair do Colégio Vargas e retornar. Ele mal olhava para mim, pois passava a maior parte do tempo jogando algum jogo sanguinolento no celular. Eu nem suspeitava de seus sentimentos por mim, até que ele confessou, no mesmo dia em que me abri para Andrew. Foi um desastre. Afinal, Thomas mais parecia uma bomba de sentimentos, prestes a explodir. Ele era perigoso, eu sentia isso, em cada movimento lento dele, cada olhar profundo; só nunca tinha percebi o quão perigoso ele poderia ser.

            Quando voltei para a sala, encontrei-a quase vazia. Poucos alunos estavam sentados nas mesas e nenhum deles virou o rosto para olhar para mim. Agradeci por isso. Aqua também estava lá, claramente entretida em investigar as unhas de sua mão direita. Aproximei-me sorrateiramente, provocando um pequeno susto nela.

            — Aqua! — Eu disse, sorrindo. Ela abaixou a mão e olhou para mim, estreitando os olhos.

            — Deixe-me adivinhar. — Disse ela. — Você estava com o Lucas.

            — Está tão evidente assim? — Perguntei. Ela deu de ombros.

            — Você tá sorrindo igual uma criança.

            Desviei o olhar dela para minha cadeira, sentando-me rapidamente. Ela se virou para mim e de repente uma cortina invisível parecer cobrir o nosso pequeno mundo, escondendo-nos dos olhares das outras pessoas.

            Rapidamente, contei um breve relato do que havia acontecido com Lucas, porém com cada mínimo detalhe: o olhar de garoto perdido dele quando ainda não tinha me aproximado, sua aparência, o olhar esperançoso quando disse que o amava. Aqua franziu as sobrancelhas e quase me interrompeu no meio de uma frase.

            — Você disse que o ama? — Perguntou ela.

            Por um tempo, não respondi, apenas fiquei pensando. Eu nunca tinha dito isso para outra pessoa tão deliberadamente, sem hesitar, mas não tinha dúvidas da verdade. Eu realmente o amava. Muito. Lembro-me que havia dito que Andrew tinha sido meu primeiro amor verdadeiro, o que não é mentira, mas pensando bem, Lucas foi o meu primeiro, meu primeiro em tudo. Meu primeiro namorado. A primeira pessoa que me amou como eu merecia.

            — Sim, eu o amo. — Respondi. — Sei que parece um pouco falso, porque eu ainda nem convivi com ele para ter certeza. Mas, sim, eu tenho certeza.

            Ela deu de ombros novamente e revirou os olhos.

            — Se você diz...

           

            A sala foi enchendo aos poucos. Muitas pessoas entravam, acompanhadas em grupinhos ou algumas sozinhas. Eu observei o rosto de cada uma. Aimee, Pierre, Anne... Todos pareciam felizes. Pela primeira vez em muito tempo, várias coisas estavam dando certo na minha vida. Pela primeira vez, eu me senti feliz. Foi a melhor sensação do mundo, sentir que estava no lugar certo, na hora certa, rodeado pelas pessoas certas.

            Entretanto, nem todas as pessoas que me rodeavam eram as certas.

            Vi Thomas entrar por último na sala, seguido pela professora de Gestão Pessoal. O choque foi instantâneo, assim como quando vi meu namorado há minutos, mas foi uma espécie de espanto diferente. Eu senti algo que nunca tinha sentido, não verdadeiramente. Começou como uma agitação que subia pelos pés, se derramava sobre meu estômago e fazia meu coração congelar. Era raiva. Raiva por ele ter me feito passar por tudo que passei, por toda a desconfiança. Depois da Alexia, quase nunca mais confiei em alguém, pois sentia que qualquer um poderia me trair, mas, quando confiei no Lucas, Thomas retirou isso de mim.

            — Greg, você está vermelho de raiva. — Disse Aqua, colocando uma mão no meu ombro. Seu toque me despertou do devaneio, mas não me acalmou imediatamente. Eu desviei o meu olhar do garoto para ela.

            — É, eu estou com muita, muita raiva. — Respondi.

            — Acalme-se. — Respondeu ela. — Criar uma briga não ajudaria em nada agora.

            Olhei para Thomas novamente. Ele parecia mal notar a minha presença, ou fazia parecer, sentado na sua cadeira perto de nós. Estranhamente, senti uma profunda piedade por ele; não piedade pelo garoto que mentiu para mim, que agrediu Andrew e ameaçou Lucas, mas sim pelo garoto ingênuo que apenas ficava jogando videogames violentos. A raiva dele era diferente, afinal, repreendida pelo sentimento que ele tinha por mim.

            — Eu não preciso de ajuda em nada agora. — Rebati, com meu rosto queimando de ódio.

            Aqua recuou, retirando a mão do meu ombro. Ela sabia que eu estava prestes a destruir qualquer estabilidade emocional dele, que eu estava prestes a destruir qualquer barreira que ele tinha criado em volta dos sentimentos enrustidos. Ela não podia me impedir, sabia disso, e não tentaria.

            Olhei alguns graus para o lado, para a outra extremidade da sala. Num impulso irracional, esperei ver Larry sentado em alguma das cadeiras, mas ele não estava lá. Lembrei-me que ele tinha faltado naquele dia. Larry seria a única pessoa naquele momento, com exceção à Lucas, que poderia me impedir de fazer qualquer coisa inconsequente.

            Como não o vi sentado em alguma das cadeiras, levantei-me rapidamente. Ouvi Aqua suspirar. Minha cabeça latejava, girava num redemoinho de coisas que eu queria dizer para Thomas: como o que ele fez não nos aproximou, apenas afastou, como ele me magoou muito mais do que esperava. Mas subitamente lembrei-me que aquilo já tinha acontecido uma vez, porém ao contrário. Quando eu quis magoar a Alexia, acabei me magoando ainda mais. Quando Thomas quis me magoar, o efeito acabou voltando contra ele mesmo.

            Comecei a caminhar lentamente para ao lugar onde ele se sentava e subitamente congelei. Algo vibrava na lateral do meu corpo. Com espanto, percebi que era o meu celular. Droga, foi a única coisa que pensei. O mundo que antes parecia tão enegrecido, meu foco que antes parecia tão centrado, foi se diluindo e novamente retornei à percepção de que estava numa sala de aula e não num ringue de luta ou num tribunal, pronto para dar meus melhores argumentos.

            Coloquei a mão no bolso e retirei o celular. Desbloqueando-o rapidamente com a senha, vi a mensagem piscar na tela como uma viso.

 

            Andrew: “Eu preciso te ver”

 

***

 

            Rapidamente, sem que Thomas sequer percebesse a minha movimentação, voltei-me para o lugar à frente de Aqua. Ela me olhava com o cenho franzindo, evidenciando que também estava confusa. Mas, era impossível estar mais confuso do que eu.

            Sentando-me, olhei para a mensagem novamente. Ela mostrava a mesma coisa, uma frase de Andrew. Não pude responder, não consegui pensar em algo para dizer. Nos últimos dias antes da mentira de Thomas, ele nem havia falado um “oi” para mim e, de repente, chegou com essa história de “eu preciso te ver”. Foi demais para mim. Percebi que não queria mais aquilo, aquela agitação, aquela vontade de estar perto dele e ao mesmo tempo vontade de estar longe. Bloqueei o celular e o coloquei novamente no bolso.

            — O que aconteceu? — Aqua perguntou.

            — Nada. — Respondi com um aceno. — Eu só pensei melhor. Talvez esse não seja o jeito certo de abordar o Thomas.

            A garota estreitou os olhos para mim, mas, no final, deu de ombros e não fez mais perguntas.

            — Está certo. — Disse ela.

           

            A quarta aula se estendeu mais rapidamente, com a professora de Gestão Pessoal insistindo na mesma tecla (algo sobre Treinamento e Desenvolvimento de funcionários numa empresa fictícia). Eu passei os minutos debruçado sobre a mesa. Aqua parecia mais adepta a prestar atenção nos ensinamentos da aula, então decidi não atrapalhá-la. Eu não conseguiria prestar atenção nem que quisesse.

            Quando o sinal tocou e os alunos se levantaram, a professora deu uma trégua e a quarta aula finalmente acabou. Continuei sentado, enquanto Aqua se levantava e saía da sala, provavelmente indo até o banheiro. Olhei para Thomas. Aquela parecia a oportunidade perfeita para confrontá-lo, para dizer toda a verdade, mas senti, lá no fundo, como o cálcio em meus ossos, que não era o momento certo.

            Meu coração quase parou quando olhei para a porta.

            Andrew estava lá, sem o uniforme do colégio, com o olhar diretamente dirigido a mim. Eu senti cada célula e cada tecido nervoso se eletrificar dentro de mim.

            Alunos entravam e alunos saíam, preparados para a quinta aula, mas eu fui contra as intenções e levantei-me rapidamente. Ignorei todo o resto, Aqua, Thomas, Lucas, as aulas. Tudo. Continuei andando até conseguir chegar até ele. Parecia um pesadelo: sabe, quando você tenta alcançar algo, mas, por mais que corra cada vez mais,  seu objetivo parece mais distante. Ele parecia mais distante a cada passo.

            — Eu precisava te ver. — Disse ele quando me aproximei.

            Eu não respondi. Aquilo já tinha se tornado automático, uma rotina. Ele entrava no colégio, me via e ambos íamos conversar num local isolado. Então, segurei seu antebraço e comecei a guiá-lo contra o fluxo de alunos que entrava no corredor. Fomos andando até o pátio.

            — Andrew, o que você está fazendo aqui? — Perguntei.

            Ele deu um sorrisinho.

            — Acho que já disse. — Andrew respondeu. — Eu precisava vir.

            — Você não... Você não pode me ver. — Respondi. — Eu estou no meio de algo muito complicado.

            — Como assim, “não pode me ver”? — Ele rebateu. — Desculpe se ainda me importo com você.

            Ai. A frase doeu como um tiro. Senti meu estômago revirar. Pela primeira vez, olhei seus olhos brilhantes. Ele parecia atormentado, seriamente. Tipo, verdadeiramente atormentado. Percebi com espanto que havia marcas avermelhadas em torno de seus olhos, arranhões no maxilar, rastros de sangue no supercílio e até uma falha na sobrancelha direita que não estava lá antes.

            Meu coração disparou.

            — Andrew, o que é isso? — Perguntei, aproximando-me do rosto dele. Cada marca, avermelhada e preenchida com sangue seco, me dava arrepios.

            — Nada, nada. — Ele respondeu, afastando-se. — Nada demais.

            — Você está... péssimo. — Respondi, arqueando as sobrancelhas. — O que houve?

            Ele não respondeu, apenas me olhou. Naquele olhar, pude ver tudo, toda a dor e todo o tormento. Ele se parecia com um vidro estilhaçado, com seus pedaços espalhados por todos os lados. Senti uma profunda piedade, uma vontade de chorar por ele, de gritar por ele, de lutar por ele, embora não pudesse fazer nenhuma dessas coisas. Alexia deveria lutar por ele, apesar de já ter o conquistado.

            — Eu disse que precisava ver você. — Ele respondeu, mudando sua expressão. Eu pude ver um pouco de doçura no olhar.

            — O que houve? — Refiz a pergunta. — Parece que você foi atropelado, de novo.

            Ele deu uma gargalhada seca, que ecoou pelo pátio.

            — Não, não foi isso.

            — Então, o que foi? Pelo amor de Deus, me fale. — Insisti.

            Ele se aproximou, com as mãos atadas na frente do corpo. Andrew, pela primeira vez em semanas, parecia muito inseguro. Essa não era a imagem que eu dava para ele, insegurança. Sempre o vi como um garoto corajoso, que nunca teve medo de amar e de ser amado, que, apesar de tudo que eu tenha feito, escolheu viver um amor com a pessoa que realmente amava.

            — Alexia. — Ele respondeu.

            — Como assim? — Rebati imediatamente, não entendendo o que ele queria dizer.

            — Ela brigou comigo. Tipo, brigou mesmo. — Ele respondeu. — Não terminamos, mas... Mas não creio que isso não vai demorar. Ela disse que queria me matar.

            Ouvi as palavras dele com um aperto no coração. Não era justo para ele, para nenhum de nós: querer viver um amor aonde sua alma gêmea o tratava como um lixo.

            — O que aconteceu entre vocês? — Suspirei. — Espere. Você não revidou, não é?

            — Não.

            — Mesmo?

            — Sim, olhe as minhas mãos. — Ele respondeu, estendendo os braços para mim. Realmente, as mãos dele estavam imutáveis; se tivesse revidado, ambas teriam ficado marcadas.

            — Andrew... — Eu disse, puxando-o para perto sem hesitar, segurando-o pelo antebraço.

            Abraçamo-nos com vontade, ambos juntos por algo maior do que nós mesmos: o amor.

            — Você está quebrado. Eu quero muito, muito mesmo te concertar. Mas... — Eu disse no ouvido dele.

            — Mas você tem seu namorado.

            — Sim. — Respondi. — E isso não explica porque você veio para cá, porque disse que precisava me ver.

            Andrew interrompeu o abraço com desgosto, olhando-me profundamente nos olhos.

            — Eu precisava te ver porque talvez nunca mais o faça. — Respondeu ele. — Eu vou embora. Em uma semana.

 

***

 

            Fiquei olhando para ele por um tempo. Andrew estava imutável, parado, olhando para mim com os olhos imóveis e a boca rígida. Ele era a personificação do sério, algo que eu já havia me acostumado a enxergar nele, mas desta vez foi diferente. Era outro tipo de seriedade.

            — O quê? — Perguntei, estreitando as sobrancelhas.

            Ele revirou os olhos como se não quisesse repetir aquilo.

            — Eu disse que vou embora. — Andrew respondeu. — Meus pais têm contatos com outros membros da nossa família no exterior. Eu vou me mudar em uma semana.

            Novamente, apenas fiquei encarando-o. Foi a segunda vez que eu escutei aquilo, aquela mesma afirmação, mas simplesmente não conseguia nem queria acreditar. Ele não podia estar falando a verdade, isso não seria humano, não seria normal.

            — Não. Você só pode estar brincando com a minha cara. — Eu respondi, afastando-me dele por alguns passos.

            — Greg, eu não estou brincando. — Ele afirmou com a voz dura, simples, como se já tivesse treinado aquilo na frente do espelho.

            Eu sorri de nervosismo, desviando o olhar. Uma explosão ocorreu na minha mente quando vi os olhos sérios dele, aquela rigidez na mandíbula. Eu não podia acreditar.

            — Não, eu não acredito. — Respondi. — Você não pode ir embora, Andrew. Depois de tudo que passamos!

            — Desculpe-me se isso for um pouco grosseiro, Greg, mas nós somos pessoas diferentes. Você passou por coisas que eu não passei. — Ele rebateu. — Não generalize.

            — Você entendeu o que eu quis dizer. — Elevei a voz. — Depois de tudo, todas as mentiras, todas as verdades, os sorrisos, as lágrimas. Você não pode simplesmente fugir agora.

            — Eu não estou fugindo.

            — E a Alexia? E a sua namorada? — Rebati, metaforicamente cutucando a ferida dele. Uma singela expressão de dor passou pelo rosto de Andrew, seguido por um olhar cheio de raiva.

            — É justamente por ela que eu quero ir embora. — Ele respondeu. — Eu não vou abandoná-la, se é o que você está pensando. Ela vai junto.

            Ficamos em silêncio. Naquele momento pensei em coisas horríveis e coisas belas para dizer a ele, mas toda a minha raiva e toda a minha gratidão subiram ao meu rosto em forma de sangue. Senti minha pele fervilhando de ódio.

            — Então você vai simplesmente me largar aqui e tentar começar de novo como se nada tivesse acontecido? — Perguntei, fitando seu rosto. O olhar dele foi como uma faca.

            — Achei que era isso que você pretendia fazer quando tentou ficar com o Larry. — Andrew respondeu. — Tentou me esquecer, como se nada tivesse acontecido.

            A frase dele desbloqueou lembranças em mim, lembranças que eu queria esquecer: Larry apoiado contra mim, empurrando-me sobre o muro, seus lábios tocando os meus, suas mãos no meu quadril, o perfume...

            — Claro. — Respondi sarcasticamente. — Pois é isso que fazemos quando alguém nos magoa: tentamos esquecer. Qualquer pessoa em sã consciência no meu lugar teria feito a mesma coisa, Andrew, até mesmo você.

            — Não tenho certeza. — Ele respondeu.

            — Eu faria. — Rebati. — Disso eu tenho certeza. Teria feito tudo novamente, cada segundo e cada milésimo, por você.

            Andrew ergueu os olhos para mim. Ainda que estivéssemos tristes um com o outro, cansados e magoados, bravos e estressados, ainda assim, ele parecia lindo. As cicatrizes, de algum modo, aderiram uma forma mais alongada a seu rosto, destacando seus lábios e seus maxilares. Seus olhos, verdes como esmeralda, miravam-me seriamente.

            — Isso não é justo. — Disse ele. — Eu não deveria ser o culpado aqui. Muita coisa não deu certo entre nós dois. Você seguiu em frente como se nada tivesse acontecido. Por que eu não posso fazer o mesmo?

            — Porque eu preciso de você, seu idiota. Não percebe isso? Apesar de todas as nossas brigas, decepções, mágoas, irritações... Eu ainda preciso de você.

            — Mas você tem o seu namorado, que te ama e te quer por perto. Mas e eu? A Alexia está por um fio de me mandar embora!

            Não respondi. Não respondi por que sabia que ele estava certo. Eu tinha o Lucas, o Larry, minhas amigas e minha família. Ele, aparentemente, só tinha a Alexia. E, se algum problema estava ocorrendo entre eles... Como será que ele estava se sentindo?

            — Bom — eu disse —, você decide. Eu agradeço por ter vindo aqui para me avisar, mas a decisão é toda sua. Você prefere me deixar na mão e ir embora ou prefere ficar?

            Fiz minha pergunta como meu último argumento e simplesmente me virei para sair daquele lugar. Eu não conseguia mais olhá-lo nos olhos, pois cada conexão de olhares soava como um aviso de algo muito horrível que estava se aproximando. Não queria que algo se aproximasse. Eu apenas queria, pelo menos por um ano, que as coisas dessem completamente certo: Larry feliz, Andrew feliz, Lucas feliz. Eu queria que todos ficassem felizes, mas, obviamente, aquilo era algo caro demais para um garoto como eu.

            Pensando em tudo isso, retornei para a sala com lágrimas nos olhos. Antes de entrar, espantei o choro e sorri para a porta, batendo levemente.

 

            Depois de uns vinte minutos, Aqua perguntou o que havia acontecido. Eu respondi que Andrew estava indo embora – não havia motivo para mentir. Ele não tinha pedido sigilo, aliás. Nossa conversa se resumiu em apenas isso: ela me perguntou, eu respondi, nada demais, simples. Ficamos em silêncio durante a quarta e a quinta aula, até que o sinal tocou e a frase “vou embora” ficou ecoando na minha mente.

           

***

 

            Lucas tinha escolhido um lugar melhor para me esperar naquele dia, mais perto do meu pavilhão. Quando dobrei o corredor, seguido por Aqua, o encontrei parado logo na entrada, sorrindo. Ele estava encostado contra a parede do corredor, com a mochila de um lado só, os olhos acesos, o cabelo bagunçado. Eu sorri para ele quando o vi.

            — Acho que vou ter que deixar vocês sozinhos. — Disse Aqua, com um sorrisinho indecente. — Se quiser conversar mais tarde, me chame. Para qualquer coisa. Até mais.

            — Até mais. — Respondi, fazendo minha voz soar mais alta.

            Eu tentei parecer feliz, tentei mesmo, mas não era como se eu fosse o melhor ator do mundo. Por mais que eu tentasse soar feliz, as pessoas mais próximas a mim conseguiriam ver a minha dor, Larry, Andrew, Lucas ou minhas amigas. Aqua com certeza viu.

            — O que aconteceu? — Foi o que Lucas disse quando me aproximei dele no fluxo de alunos. — Você parece chateado.

            Eu olhei para os braços estendidos dele, as mãos dentro das mangas da blusa. Ele parecia ele mesmo, nada diferente. Agarrei em seus ombros, num abraço apertado.

            — Que pergunta idiota. — Ele gargalhou singelamente. — Por que você não estaria chateado, afinal?

            Eu me afastei. Foi o abraço mais rápido que já tivemos, mas o mais sincero. Só Deus sabia o quanto eu queria abraçá-lo naquele momento, sentir suas mãos sobre as minhas, seus lábios contra os meus, seu corpo, pele contra pele – tudo para esquecer os acontecimentos recentes.

            — Aconteceu algo. — Respondi.

            — Você quer falar? — Ele perguntou.

            — Não.

            Lucas arqueou as sobrancelhas.

            — Ok.

            Ele me puxou para perto novamente, dando-me um beijo entre meus olhos. Aquela faceta da personalidade dele era desconhecida para mim: o Lucas que queria me dar espaço, aquele que não chegava perguntando o meu nome e demonstrado interesse. Por um reflexo, quase que por um milésimo, percebi que tínhamos mudado muito desde o começo do namoro.

            — Quando você estiver pronto. — Respondeu ele.

 

            Lucas me levou para casa naquele dia, um fato muito fofo da parte dele, porque ele tinha que fazer um estágio à tarde. Eu sorri e agradeci enquanto entrava em casa e ele nem sequer fez menção em querer entrar para conhecer os meus pais. Agradeci por isso. Ainda não tínhamos chegado nessa parte.

            Ryan perguntou por que eu não tinha demorado daquela vez. Respondi que não tinha um grupo de estudos marcado para aquele dia e ele não fez mais nenhuma pergunta.

 

***

 

            Duas coisas ocupavam a minha mente naquela tarde: Larry e Andrew. Eu não conseguia parar de pensar no Andrew, na falta que ele faria se realmente se mudasse, em sua ausência e na forma como olhou para mim quando disse que ia embora. Mas, por outro lado, também não conseguia tirar Larry da cabeça. O engraçado é que eu não deveria pensar em um deles, pois tinha meu namorado e, obviamente, meus pensamentos deveriam ser todos dele. Porém, não era assim.

            Larry tinha faltado naquele dia (tudo bem, pois um aluno faltar não é algo excepcional), mesmo sabendo que aquele era um momento especial para mim, porque tinha descoberto a verdade sobre Thomas. Apesar disso, ele decidiu faltar. Nem Anne parecia tão preocupada quanto eu. Depois do nosso beijo... Eu não pude deixar de pensar que esse era o motivo de sua falta. Minha última lembrança dele era o nosso beijo.

            Andrew também ocupava 50% dos meus pensamentos. Eu estava triste, é claro, porque não queria vê-lo partir e ficar parado, sem fazer nada enquanto nossas vidas iam pela correnteza, mas também estava com raiva. Não era justo. Ele não podia simplesmente me abandonar assim, como se nada nunca tivesse acontecido, como se nunca tivéssemos nos beijado, como se eu nunca tivesse o ajudado, como se... Como se nunca tivéssemos nos amado. Eu sabia (e sei) que aquela era uma decisão exclusiva dele, mas simplesmente não queria deixá-lo ir. Ele mesmo já havia me dito algo assim, que “não estava preparado para me deixar sair da sua vida”. E, afinal, quem decidiu sair foi ele.

            Antes de tomar um banho e me preparar para a noite que caía, abri o aplicativo de mensagens no meu celular. Tudo parecia a mesma coisa, as conversas congeladas como um lembrete de que tudo podia parar a qualquer momento. Cliquei na conversa do Larry e tentei falar com ele.

 

            Eu: “Larry? Você está aí?”

           

            Apenas isso. Dez minutos mais tarde, a mensagem foi lida, mas não foi respondida. Recebi isso como um aviso de que deveria manter minha boca fechada. E se, de alguma forma, nosso beijo o afetou drasticamente? Ele disse que queria saber como era amar alguém. E se ele quis descobrir isso comigo?

            Pensar nisso apenas me estressou mais, então decidi guardar minhas energias para o dia seguinte, pois eu tinha certeza de que iria encontrá-lo. Mas, naquela noite, a realidade recaiu sobre mim. Aquele meu encontro com o Andrew, na quarta aula, provavelmente tinha sido o último. Eu nunca mais o veria. Nunca mais.

 

***

 

            Ryan notou o meu nervosismo quando fomos para o colégio no dia seguinte, mas decidiu ficar de boca fechada. Eu não teria respondido, de qualquer forma, pois a última coisa de que precisava era alguém tentando se intrometer nos meus assuntos pessoais. E, além do mais, seria muita coisa para explicar. Larry. Andrew. Lucas. Thomas. Quatro garotos que, por mais tivessem tentado, me magoaram de algum jeito ou de outro. Ryan não precisava saber disso, então fiquei em silêncio durante todo o trajeto enquanto ele falava algo aleatório sobre qualquer outra coisa.

            Quando o sinal tocou, praticamente corri para a minha sala, pela primeira vez ignorando o meu irmão. As pessoas tinham definitivamente parado de me ignorar – o que eu achei excepcionalmente bom. Andei apressadamente até o pátio do ensino técnico, onde parei e olhei em volta. Nem um sinal de Larry.

            Meu coração começou a bater rapidamente contra as costelas. Voei para a sala, encontrando-a quase vazia. Aqua e Alison já tinham chegado, então não me permiti ficar com a cara fechada e dei um sorriso singelo ao me aproximar. Após nossos “ois”, perguntei:

            — Vocês viram o Larry?

            Ambas negaram com acenos.

            — Não. — Respondeu Alison.

            — Não. — Aqua ecoou.

            Eu esperei pelas perguntas delas, mas nenhuma indagação veio. Agradeci silenciosamente, sabendo que elas já tinham percebido que eu não gostava muito de perguntas.

            — Estranho. — Respondi.

            — Por quê? — Aqua perguntou.

            — Ele não fala comigo desde o dia do plano. A última vez que conversamos foi enquanto esperávamos o resultado do disfarce da Alanis. — Eu disse. — Ele vê as minhas mensagens e não responde.

            — Ele só deve estar doente. — Alison falou como se não fosse nada importante. Eu me irritei, porque era importante. Para mim, pelo menos.

            — Que tipo de doença não deixa alguém responder uma mensagem, mas deixa visualizá-la? — Rebati. A garota arqueou as sobrancelhas.

            — Ok, desculpe, não precisa ficar nervoso. Eu só estava dizendo que você ficaria sabendo se tivesse acontecido alguma coisa com ele.

            — Faz sentido. — Aqua comentou. — Mas Greg está certo. Larry quase nunca falta, todos sabem disso, e o melhor amigo dele é o Greg. Não tem porque ele ficar em silêncio. A não ser que...

            Olhei para Aqua com o cenho franzido. Droga, pensei. Ela vai perguntar algo que não deve.

            — A não ser que tenha acontecido algo muito estranho entre vocês dois, Greg. — Disse ela. — Aconteceu?

            Eu dei de ombros.

            — Não que eu lembre. — Respondi. — Apenas estávamos conversando.

            — É, mas algo estranho aconteceu com o Thomas. — Alison disse. — Naquele dia.

            Por um momento, por alguma razão, a frase dela despertou algo em mim, um aviso. Algo em que eu precisava prestar atenção estava ocorrendo naquele instante.

            — Como assim? — Perguntei.

            — Ah, você sabe. — Alison respondeu. — Acho que as outras garotas já falaram disso. Logo após a sua amiguinha, a Alanis, investigar ele, Thomas voltou para cá, para os fundos do colégio. Nós não o seguimos, para não levantar suspeitas, mas ele voltou com a pior cara que alguém poderia ter. Ele parecia muito bravo.

            — Eu não entendi. — Respondi.

            — Eu e Alison fomos ao banheiro naquela hora. — Aqua interrompeu. — E vimos o Thomas ir à direção de onde vocês estavam. Alguns segundos depois ele voltou com cara de poucos amigos.

            Fiquei em silêncio, desviando o olhar. Não, não, não, não. Era a única coisa que eu conseguia pensar. Eu não podia acreditar que ele tinha visto o nosso beijo. Não, ele nunca viu. Se tivesse visto, algo terrível teria acontecido à Larry.

           

            Não prestei atenção no resto do dia, tudo passou como um borrão colorido e sem graça. Lucas me perguntou por que eu parecia tão distante, por que eu parecia precisar de um abraço, e eu simplesmente não podia responder que estava pensando em outro garoto, ainda mais no Larry, que era meu melhor amigo. Respondi que era algo sobre as provas bimestrais e ele me deixou ir para casa.

            Eu não queria ir para casa. Deixar meu namorado, parado, sozinho, significava deixar um conforto, um porto-seguro, um lugar onde eu podia descansar meus braços e meu coração. Mas foi preciso. Eu não conseguia raciocinar direito com ele ao meu lado, não conseguia pensar. E pensar era o que eu mais precisava fazer. Felizmente, estávamos entrando num final de semana, então eu teria muito tempo para isso.

           

***

 

            Quando cheguei em casa, corri para meu celular, sem dar a mínima atenção para qualquer coisa que estava ocorrendo em casa – aparentemente Ryan estava quase sendo reprovado numa matéria. Primeiro, mandei uma mensagem para Aqua. “Vou conversar com o Larry”. Meu coração, disparado como sempre, foi meu compasso quando abri a conversa do Larry pela 34982742º vez naquela semana.

           

            Eu: “Larry”

 

            Apenas disse o nome dele. Nós não precisávamos de muitas palavras, ao contrário de como eu me comunicava com meu namorado. Comecei a pensar no pior, foi inevitável. Pensei no que poderia ter acontecido no dia do plano, no que eu poderia ter feito para irritá-lo ou algo assim. Será que eu deveria ter me afastado antes de ter sido beijado? Será que eu deveria ter beijado de novo? Será que... Será que ele me amava, por isso ficou tão consternado, pela pressão de ter que contar isso a Anne? Mas, percebi tardiamente, não era com ele que eu devia me preocupar.

            Thomas.

            Ele sim era o problema. Um garoto problemático, ciumento, repreendido, que tentou conquistar o meu amor com suas brincadeiras e seus joguinhos de poder. O que as garotas falaram para mim realmente me deixou com dúvidas. O que ele poderia ter visto de tão horrível para ficar com tanta raiva?

            Se tivesse visto, algo terrível teria acontecido à Larry.

            Meu coração pareceu explodir.

            Abri novamente o aplicativo de mensagens e constatei que a mensagem não tinha chegado ao celular do Larry. Com enjoo, mandei outra mensagem para Aqua. “Acho que algo ruim aconteceu com ele”. Nem ela me respondeu.

            Decidi esperar um tempo, dar espaço para ele. Talvez eu apenas estivesse indo rápido demais, talvez ele só estivesse me evitando. Talvez. Era cedo demais para pensar em qualquer coisa horrível. Aliás, não era de se espantar que um garoto como ele ficasse tão consternado ao beijar outro garoto, e, além disso, ninguém além de mim sabia de sua bissexualidade.

            Voltando para minha “conversa” (com muitas aspas, por o termo conversar significa troca de falas, e ele não estava me respondendo há dias), mandei mais uma mensagem.

 

            Eu: “Larry, eu preciso muito de você”

                   “Por favor, venha até a minha casa”

                  “Você sabe onde fica”

 

            Joguei o celular sobre a cama, esperando pela resposta que com certeza ia destruir o meu mundo. E quase pulei de alegria quando o aparelho vibrou com outra mensagem.

           

            Larry: “Eu já estou indo”

                        “Não se preocupe”

 

***

 

            “— São flores, veja. — Ele esticou ambos os braços, segurando o blazer com uma mão. Vi seus músculos expandindo-se, as veias por baixo da pele, seus pelos finos quase loiros. — Aqui está um olho, considerado por muitos como “Illuminate”. — Ele arqueou as sobrancelhas. — Significa um recomeço. Significa que a beleza sempre observa os maus momentos, sabe, tipo a calmaria que sempre vem depois da tempestade.”

 

            Uma hora se passou. Nenhuma mensagem nova. Larry não havia chegado. Minha ansiedade retornou. Finalmente me permiti olhar para o celular novamente. Ele tinha mesmo mandado aquela frase, eu não estava delirando, como tinha pensado. Ele estava vindo, não havia porque se preocupar.

            Estava.

            Minha ansiedade foi aumentando conforme o tempo foi passando e a ausência dele se tornando cada vez mais desconfortável. Nossas casas não ficavam muito longe uma da outra, uma viagem que durava no máximo vinte minutos. Decidi pensar que ele tinha mentido, que nada ruim havia acontecido, mas ele nunca gostou de mentir.

 

            Eu: “Onde você está?”

 

            Enviei a mensagem e não desgrudei os olhos da tela, esperando pelos dois risquinhos que indicavam quando uma mensagem chegava ao destinatário, mas eles não vieram. Malditos risquinhos.

            Comecei a me desesperar, entrando e saindo do aplicativo para constatar que não havia uma falha no sistema. Às vezes acontece: mensagens que chegam duas horas depois, visualizações que não contam. Continuei fazendo isso até perceber a realidade, e ela veio num som estridente.

           

            Meu celular tocou com uma música alta que quase me tirou do chão por causa do susto. Era ele. Ele estava ligando. Ele estava bem. Ele...

            — Alô? — Eu perguntei quase sem fôlego, apertando o botão verde.

            — Olá. Você é o Greg? — Uma voz disse. Não era voz dele, era mais fina, porém séria. Ouvi barulhos indistintos ao fundo, como algo mais estridente do que o toque do meu celular; depois, percebi com espanto. Sirenes. Polícia. Ambulância.

            — Sim. — Eu disse, com a boca trêmula.

            — Olha, cara, eu não sei como te dizer isso. — O tom do outro homem era deprimido, claramente triste com algo. — E eu juro que não estou mentindo, juro que isso não é um trote. Você conhece um tal de Larry?

            — Sim. Diga-me logo, o que aconteceu?!

            — Bom, cara, é que... Aconteceu que houve um acidente. — O homem respondeu. Meu coração parou. — Achei o telefone dele no meio dos escombros. Parece que o carro dele bateu contra uma casa. Eu sinto muito. Ele está morto.



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