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História Melodia sociopata - Relembrar é viver


Escrita por: Jingotbelts

Notas do Autor


Gostaria de agradecer às pessoas que favoritaram/acompanharam a história até aqui. Fico muito feliz em saber que a história teve exibições!

"— Mas isso não faz sentido!
— Exatamente como deve ser."

Capítulo 10 - Relembrar é viver


Fanfic / Fanfiction Melodia sociopata - Relembrar é viver

Bati a porta atrás de mim e me encostei na mesma, escorregando lenta e dramaticamente, até chegar ao chão. Estava em posição fetal, apertando minhas pernas com força, cravando minhas unhas em minha carne. Por que isso ainda me destruía tanto? As lembranças, por que elas não iam EMBORA? 

Senti as lágrimas finas descendo pelo casaco. Tirei o agasalho e levei as mãos ao rosto. Vão embora, eu não quero lembrar. Vão embora. Vão embora! VÃO EMBORA, VÃO EMBORA! SAIAM!

Minha metade que deveria ter se afogado em meio a remédios e sedativos naquele porão. Era ela que estava fazendo isso. As lembranças, era tudo culpa dela, querendo me mostrar o que eu não precisava ver. Eu que mando! tentei gritar, mas não pude emitir som algum.

Ao invés disso, só ouvi vozes gritando e sussurrando em minha cabeça. Às vezes sentia que o silêncio era pior ainda, fazia eu escutar as batidas desesperadas do meu coração. Era ensurdecedor.

Gritei até sentir minha garganta does. Aquela bagunça de vozes não podia tomar o que era meu, não depois de tudo pelo que havia lutado para recobrar a consciência.

Eu estava fazendo tudo certo, não estava?

Eu fiz de tudo, tudo estava normal, eu estava bem...

Então por quê?!

— Stella?

Abri os olhos. Bernard me encarava preocupado, mas o preocupante mesmo era seu estado: um olho roxo e inchado, nariz torto e a marca certeira de uma mão em seu pescoço. Meu Deus, Bernie, com quem você se meteu?! Ele veio correndo em minha direção, quase caindo da escada. Senti sua mão acariciar meu cabelo, um singelo afago fraterno.

Precisávamos resolver tudo aquilo, caçar e aniquilar nossos fantasmas do passado. Me levantei sem dizer nada e corri até meu quarto, buscando papel e caneta. Puxei um caderno qualquer da mochila e uma lapiseira, já que foram as primeiras coisas que encontrei – e a pressa não me permitia hesitar.

Voltei aos tropeços até o andar de baixo da casa e puxei Bernie até o balcão da cozinha. Ele se sentou em uma banqueta por ordem minha, e então, pus o caderno e a lapiseira sobre o balcão. Me sentei ao seu lado e comecei a escrever.

"Park City, Utah"

— O que tem? — ele me perguntou, confuso. 

— É onde morávamos com mamãe e papai. Lembra do que aconteceu depois? 

— Mas morávamos em Austin, mana. Fugimos pra Baldwin quando tudo aconteceu, lembra? — Respondeu. — Lembro como se tivesse sido ontem.

Eu o corrigi e continuei escrevendo a linha do tempo "Três mortes". 

Cinco, contando com o que fomos um dia, pensei. 

— Três?!

— Bernie,  você viu! Você estava lá comigo!

Escrevi mais, como se estivesse começando um livro. 

"Park City, Utah, três anos atrás. 

Mamãe adquire uma doença grave, mas Dr. Chemint diz que não é nada. A situação de mamãe piora..."

Fui interrompida pela mão fria de meu irmão. O encarei confusa e ele arrancou a página do caderno, amassando e lançando-a na lixeira. 

— Comece do começo. 

  Risquei as informações e voltei a escrever. 

"Park City, Utah, dezessete anos atrás. 

Nossos pais se conhecem: Stella Baljor, uma garota de dezesseis anos que tinha o sonho de ser bailarina, mas sua família não tinha dinheiro para uma academia de balé e ela não pôde realizar seu sonho; Bernard Houlph, o jovem de mesma idade, criado por marceneiros e com o sonho de ser soldado ou agente das forças policiais mais importantes do mundo. Os dois se apaixonam, se casam, têm dois filhos, tudo no mesmo ano e de maneira muito apressada."

— Não lembro nossos nomes — confessei.

— Coloca a parte que sabe deles, caso saiba alguma — disse rapidamente. — Não lembro do casamento ter sido tão cedo, mamãe parecia mais velha.

— Ela era a porra de uma chaminé fedorenta — respondi com nojo.

Mesmo assim, cheguei a me questionar se realmente lembrava de vê-la fumando alguma vez.

"As iniciais dos nomes eram 'E' e 'J', e eram gêmeos de cabelos escuros e olhos prateados."

Encarei Bernie como quem pede uma confirmação. Ele assentiu meio contrariado e eu prossegui.

"A caminho da maternidade para ver seus filhos recém nascidos, Bernard Houlph é atropelado e fica paraplégico, não podendo se mover abaixo da cintura. 

Um ano depois, o jovem agora com dezoito anos tenta entrar para as forças especiais, e discriminatoriamente é negado por sua deficiência. A família passa a viver da marcenaria, assim como todos os Houlph. Stella e Bernard fazem caixinhas de música com bailarinas de porcelana e entalham soldadidinhos de madeira.

Os pais ensinam aos filhos tudo o que aprenderam, os dois dão tudo o que não tiveram e podem dar, inclusive aulas de balé para 'E' e aulas de tiro ao alvo, informática e combate corpo a corpo para 'J'."

— Eu lembro que ele morreu pouco antes da mamãe em um acidente de carro. E nós dois não fazíamos balé?

— Acho que você não está se lembrando direito. 

— Tambem acho. Pensando bem, acho que eles não nos deram nada.

— Continuando.

"A mãe... "

Parei e olhei para o papel. Era difícil continuar, depois de tudo o que havia acontecido. Não sabia nem de onde vinha minha coragem para colocar o grafite naquele papel. Aquelas palavras trazidas por aquelas lembranças. 

Uma mão fria se juntou a minha. Também era difícil para ele lembrar, mas talvez juntos...

Juntos nós conseguiríamos. 

Voltamos a escrever. 

"Mamãe adquire uma doença grave, mas Dr. Chemint diz que não é nada de mais. O estado dela piora, e a confiança de papai no médico apenas diminui." 

— Ela estava grávida...

Lágrimas, outra vez. Bernie as enxugou. 

— A culpa não foi nossa, Tella. Não chore.

 — Não diga isso pra mim — respondi. — Não é algo que eu consigo entender.

"Joel Chemint, pai de Franklin..."

— Opa, só um instante. Seu namoradinho é-

— É. Ele não é meu namorado, Bernard. 

"...Praticamente invade a casa e se depara com a cena. Sem explicação, Chemint nos leva ao seu porão. 

Passamos dois meses sofrendo, cada um de um jeito diferente. Torturados por algo injusto. Um levando tiros de borracha..."

—Assim como seu pai deveria ter levado — Bernie disse de maneira sombria.

"E a outra, sendo furada por agulhas e sofrendo de outras coisas..."

Você se parece com ela quando fica quietinha assim, aquela voz sinistra ecoou em minha cabeça, fazendo com que sentisse vontade de vomitar.

"Fugimos com ajuda do filho do médico maluco, Franklin Chemint, um garoto sem mãe que provavelmente acha que foi tudo um sonho. "

Um sonho. Tudo o que tentamos realizar por nossos pais, e veja só onde nossa vida veio parar.

"Queimamos nossa antiga casa, seguimos sentido Baldwin e depois de muitas caronas, conhecemos lá o cara que faria parte de nossa vida criminal de disfarces e identidades, Tarik Ramírez.

Até hoje ele deve acreditar que somos apenas ladrõezinhos, mas tudo o que 'roubamos' foi nosso próprio dinheiro. E vidas. Trinta e quatro, ao todo. 

Mudamos de nome todos os bimestres há três anos, de cidade, de escola, tudo graças ao cara que nos arranja as casas e a 'J', que é um hacker nato." 

— Por que estamos fazendo isso? 

O encarei pelo canto do olho. Certo. Respirei. Ele precisa saber. Me ajeitei na banqueta, ficando reta.

— Acho que estou ficando louca, Bernie — respondi. — seu plano não quer funcionar e está ficando cada vez mais difícil controlar meus pensamentos intrusivos. Está criando vontades próprias. Tomando minha cabeça dia após dia.

— E você acha que isso vai pará-los?

— Não. Eu estou procurando a chave pra desencadear essa merda toda de uma vez.

Ele se levantou, examinando mais uma vez a trágica história. Nossa infeliz história. Seus olhos me estudaram por longos segundos, até que voltou a questionar. 

— E você acha que isso vai pará-los?

Dei de ombros e fiz uma expressão neutra, cruzei os braços e me levantei. Olhei para a porta de vidro e falei:

— Ou pará-los, ou fazer alguma coisa acontecer. Alguma mudança significativa. 

— Nossos nomes, talvez? — suas palavras cortaram o ar rapidamente. 

— Um bom palpite — o estudei com o olhar de volta. 

— Uma coisa curiosa-

Meu celular tocou. 

Era Lola. Eu não podia desistir do meu objetivo original, precisava saciar minha vontade. E para saciá-la, precisava continuar enganando a todos só por mais alguns dias. Até o dia depois do dia dos gêmeos. 

Meu aniversário. Nosso aniversário. Véspera do dia da diversão. 

Corri para atender, e logo que atendi, sua voz preencheu meus ouvidos. Meu pescoço pulsou de ódio enquanto eu forçava um gole em seco. Ouvi atentamente o recado, me chamando para acampar. Perguntou sobre Bernie, mas apenas respondi que ele estava cansado de um dia bem cheio. O acampamento era no dia seguinte. "Vamos lá, Tella Panela!", esse apelido ridículo... Mais ridículo que o que ela mesma se deu. 

Fui simpática e disse que sim e que estava animada para ir. Apontei que já era tarde e que precisava dormir, então nos despedimos e eu desliguei. Respirei fundo e bati os dedos no balcão. Sem dizer mais nada além de "noite", adentrei meu quarto e me joguei na cama. 

Nem tomei banho ou jantei naquela noite. Dormi, apenas, e com uma certa dificuldade. Eu estava com medo, o que para mim, não era normal. 

Ela tinha a agulha em mãos, vindo em minha direção com aqueles olhos prateados derretendo sua fúria. Conseguia ver meu reflexo nas orbes da garota de 13 anos. Meu reflexo estava preso, ali dentro, meu medo. A agulha era para me extrair e eu corria com toda a força de minhas pernas para impedir que acontecesse. Tropecei no corredor da casa de madeira e a mesma começou a pegar fogo a minha volta. Estava encurralada.

O chão se abriu e mergulhei nas trevas, escutando aqueles gritos outra vez, cada vez mais altos e desesperados. Queria abrir a boca para gritar mas sentia como se estivesse embaixo d'água, então uma corrente elétrica percorreu meu corpo e senti que tudo ficou mais leve.

Se ao menos pudesse convencer a mim mesma de que não era minha hora de morrer

Acordei em um pulo daquele pesadelo horrível.

 Olhei a hora em meu celular, tirando-o do carregador – onde o deixava todas as noites e desconectava ao acordar. Eram seis e quarenta e oito da manhã, logo, deduzi rapidamente que estava atrasada e me arrumei às pressas. Quase arrombei a porta de Bernie com batidas violentas, quase sete horas, idiota! A aula! ACORDE!

    — Quê é? 

Apoiei uma mão na cintura e com a outra apontei para um relógio imaginário em meu pulso. 

— Dez minutos para se arrumar — falei com tom autoritário. Ele piscou os olhos espremidos de sono, pegou o próprio celular e ficou cerca de cinco segundos processando tudo. 

— Ah, caralho! — E foi se arrumar, lançando o celular sobre a cama.

Desci para o primeiro andar, mas por algum motivo, tive vontade de ir ao porão das bailarinas. Não me questionei, apenas fui. Andei até a lateral esquerda da casa e entrei em uma pequena sala em formato de corredor, na qual havia uma escada. Desci os degraus rapidamente ficando de frente para uma armário de casacos. Dentro do armario, atrás dos casacos e botas, havia uma porta de correr feita de madeira, trancada por um cadeado de  código. deixei os números 1, 1 e 7 gravados e tirei as correntes.

Mantinhamos nossas oficinas totalmente restritas, fazendo o possível para o cheiro de carniça não transparecer. 

No momento em que fui abrir a porta, recuei e mudei de ideia. A chave poderia estar ali, e era um risco que eu não queria correr por enquanto. Voltei para a sala de estar, onde encontrei Bernard. Estávamos prontos para ir.

         

***

 

— Não! — O ruivo advertiu James, que não queria escutá-lo de jeito nenhum. 

Cruzei os braços e me sentei ao lado do vocalista na grande mesa do refeitório. 

— Você não vai fazer isso — falei sustentando a intervenção de Bernie.

— Mas ele merece! — James retrucou socando a mesa. 

Explicando mais ou menos o que estava acontecendo: James queria vingar Bernard murrando Patrick até arrancar o nariz. E nós, pessoas responsáveis, estávamos tentando impedi-lo. Franklin, Olivia e eu tentávamos ajudar a acalmá-lo, Bernie até mesmo ameaçou esconder suas drogas, o que não ajudou em nada.

  Que moleque teimoso!

— Jam, eu fiz isso porque eu quis. Eu o irritei, ele simplesmente se defendeu — Explicou. E era verdade, ele tinha me explicado isso a caminho da escola.

— Eu fui até ele e comecei a me gabar sobre minha nota. Sentido pelas indiretas, ele veio pra cima. Tudo como planejado — sorriu. — Só precisei convencer James que chamar o Fonks seria o melhor a fazer. De novo, como planejei, o professor veio e Franklin pode dar uma "fugidinha" com você.

— Você é um idiota.

— Também te amo.

O garoto de cabelos loiros e manchados tinha os punhos serrados sobre a mesa. Vimos, ao longe, Patrick se aproximando e eu podia jurar ter visto a Morte andando do lado dele.

— Então... — Liv pigarreou. — Porque a gente não fica no pátio aproveitando o sol?

— Eu acho uma ótima ideia! Vamos? — Franklin concordou afobado, ele e Olivia tentando cobrir o campo de visão de James. 

De trás dele, surgiu Karen. O pior de tudo, era que pela expressão de James, aconteceria mais de um homicídio naquele bimestre. Os dois não conseguiram esconder que patrick estava por perto e o garoto parecia ter um samurai assassino dentro dos olhos que refletiam a silhueta de patrick. O que eu não entendia era por que Karen estava andando com Patrick, logo ela, uma patricinha que só andava com quem tivesse tanto dinheiro quanto ela. Notei que seus cabelos estavam diferentes, ela possuía mechas pretas e sua franja estava cortada de lado também.

Bernard foi calmamente na direção do rapaz de cabelos escuros e enrolados. Olhos castanhos, envergonhados, encarando olhos verdes piedosos. 

— Patrick — sorriu fraco. 

 Aquilo só deixou o valentão com um sentimento de culpa maior. 

— Bernard, eu... — Patrick passou a mão pelos cabelos curtos e cacheados. — Eu realmente sinto muito. Não quis te dar aquela surra, estava fora de mim, juro.

Karen apenas o olhava com melancolia estampada em seu rosto. Ela parecia se recusar a encarar Franklin. Um comportamento muito estranho para namorados em uma relação "contemplativa". A loira se aproximou de Patrick e segurou seu braço, o que me fez automaticamente olhar para Frank, que parecia pouco se importar. 

Mas, gente, ele não está vendo isso?!

— Não me segure, ruiva — o vocalista sussurrou para mim. Franklin ouviu e se curvou sobre nossa mesa, chegando bem perto edizendo para o garoto permanecer no mesmo lugar.

— Eles estão se resolvendo. Nós não precisamos criar mais atrito — Olivia disse baixinho.

          — Oi, gente! 

Todos nós dirigimos o olhar para Ellois, que havia chegado no refeitório com animação. Meus dentes rangeram e minha mão tremeu. Outra reação de meu subconsciente manifestada por mim. Quieta, alertei. Eu resolvo. Não estrague tudo. Sorri levemente para Lolla que trazia edições do jornal da escola. O clima amenizou um pouco, mas a expressão de James ainda não era amigável. Ele era bem protetor se tratando de meu irmão. Era uma relação estranhamente íntima a que eles tinham.

O canto onde estávamos estava ficando realmente cheio. Tyler e Emmilie chegaram discutindo filmes de terror – e quando digo discutindo, estavam praticamente em uma guerra civil. 

— Anabelle sempre vai ser melhor que Jason! — Emmilie parecia irada.

— Você só diz isso porque eu te mostrei aquela fanfic — Tye retrucou. — A culpa não é minha se ele é gatinho, tá? Se o povo quer, o povo recebe!

Nunca havia visto uma discussão assim. A Professora Emm também se juntou a eles, e como sempre, estava com o copo de Capuccino na mão e várias pastas sob o braço.  Eles pararam de discutir e começaram a rir com as opiniões da professora.

— Não, porque na minha época os filmes de stop motion eram si-nis-tros!

          Que bagunça de gente!

Para completar a bagunça, Grattence chegou e se sentou ao meu lado, enquanto Franklin e Lola conversam sobre o acampamento. James e Bernie estavam saindo, provavelmente para que o vocalista pudesse fumar um pouco. Olivia havia sumido, o que era estranho porque segundos atrás eu jurava que ela estava sentada bem ao meu lado. Karen também sumiu, mas para mim aquilo já não era tão importante.  Provavelmente, os outros alunos pensariam que éramos parte de um arrastão. Que imã estaria atraindo todos daquela maneira? Isso é a tal lei da atração?

Decidi me concentrar nas conversas a minha volta. Se continuasse pensando nessas coisas de atração daquela forma, ficaria louca.

          

* * *

 

 — E o repelente? Pegou?

Assenti. Às vezes, meu irmão exagerava um pouco. Pelo menos, considerando que era a vigésima oitava vez que ele perguntava isso, sem contar as vezes em que o interrompi para dizer que sim. Minha mochila estava completamente equipada com tudo o que eu precisaria para acampar, talvez até equipada demais. Os gatinhos – que deveriam estar nos fundos da casa – ronronavam a minha volta. 

Esses bichos me amam. Ou amam me derrubar.

Revirei os olhos e peguei Aslan no colo (sim, eu os dei nomes), um gatinho laranja de olhos verdes. Esfreguei meu nariz no do felino, carinhosamente. Ele fechou os olhinhos e miou. Nunca tinha me dado bem com animais, antes. Provavelmente efeito dos recentes acontecimentos. 

Abracei meu irmão e ele afagou meus cabelos. Depois de nos despedirmos mais algumas vezes, finalmente saí quintal afora. Avistei uma cabeleira castanha de um rapaz ao celular, em frente ao portão, do lado de fora. Ele estava acompanhado de um loiro, que caso eu não estivesse enganada, era Robbie. 

Me aproximei um pouco, e como os dois estavam de costas, não perceberam minha aproximação. Já conseguia ouvir um pouco sobre o que o garoto falava ao celular, e embora soubesse que era errado, parecia ser bem importante. Foi mais forte do que eu. 

— Posso até ajudar, mas não é meu.

O loiro o observava calado, concordando com a cabeça.

— Ele tem que assumir, não eu! — respirou fundo. Reconheci a voz, era Franklin ao celular. — Já não tenho mais nada a ver com isso, sinto muito. 

Então minha intuição estava certa, era Robert que o acompanhava. Ele cruzou os braços, aguardando o amigo terminar a ligação. 

— Olha, foram suas férias de verão. O que você fez já está feito, só... Entenda que o que acabou, acabou. Não inclua meu nome na história, o prejuízo é seu e dele. Já fiz mais do que eu poderia por vocês — Desligou. 

— Ela ligou para pedir ajuda, outra vez? — Robbie o encarou, colocando as mãos nos bolsos. — Não me admiro mas deve ser complicado mesmo, pelo que você me contou.

Franklin assentiu. Pigarreei e os dois se viraram em minha direção. Acenei cautelosamente e abri o portão para sair. Começamos a caminhar. Apenas quando cheguei a dez quadras longe de casa, notei duas mochilas extras nos ombros dos meninos. Okay, até aí tudo bem, eram as barracas deles.

          Exatamente. 

          As barracas

Levei uns segundos até notar que não havia trazido a minha. Por algum motivo, minha mente começou a trabalhar possibilidades quanto ao que aconteceria nesse acampamento. Por um segundo, tive medo de que fossem me obrigar a dormircok Robert, por exemplo. Eu com certeza dividiria a barraca com Lolla. Sabe lá Deus o que se passava por baixo dos cabelos loiros, naquela mente suja e esperta de editor chefe. 

Um cheiro maravilhoso invadiu minhas narinas. Olhei para o lado e vi que passávamos em frente a um restaurante luxuoso. Não, passávamos em frente ao luxo do luxo. Parei repentinamente para observar o lugar e, percebendo que eu não me movia, os dois que me acompanhavam pararam também. 

— Esse é o restaurante mais chique de todo o estado — disse Franklin. 

Meus olhos brilharam, refletindo os lustres e candelabros de cristais. 

— E o mais caro — completou Robbie. 

Meus pés voltaram para o chão após uma ideia muito maluca. Voltamos a andar. 

Finalmente chegamos no campsite' onde iríamos acampar. Cumprimentamos a todos, os meninos armaram suas barracas e eu conversei com Lola a respeito da minha. Ela disse que não havia problema em dividir comigo. Agora, era rezar para que não me descontrolasse e a esganasse durante a noite. 

A noite chegava lentamente, expulsando o céu alaranjado e dando lugar a um azul escuro e forte. Estrelas piscavam para nós e a lua estava definitivamente linda. Começamos a contar histórias em volta da fogueira – ideia de Tyler. Uma brincadeira da seguinte forma: 

Íamos passando a vez uns para os outros, de maneira que cada um faria uma parte para a história. Estávamos nessa exata ordem: eu, Tyler, Emmilie, Lola, Robert e Franklin, todos em um círculo. Eu comecei. 

"Em um reino muito distante do presente, há muito, vivia..." 

  Então, Tyler, em sua vez, continuou. 

   "Um pato chamado Sidney." 

 Todos o encaramos confusos. Ele sorriu e prosseguiu.

    "... O pato Sidney queria muito ser um cisne, para poder usar fantasias de cisne e dançar balé. E para ser um cisne, ele precisava-"

— Espere aí — interveio Emmilie. — Ele quer ser um cisne, certo? — Tyler assentiu. — Por quê é que um cisne usaria uma fantasia de cisne?! 

Ele franziu o cenho e cruzou os braços.

— Deixa o meu pato em paz, homofóbica! 

"Para ser um cisne, ele precisava de um mago, que se encontrava..." 

 Era a vez de Lola, agora. 

"... O mago se encontrava depois da ponte das sereias. Seu nome era Patolino, e ele era implacável. "

 Era vez de Emmilie. 

 "... Passar pela ponte das sereias não era fácil. As criaturas eram carnívoras e muito persuasivas, e adoravam carne hum-"

— Emmilie, ele é um pato. 

— Shh, deixa as minhas sereias comedoras de humanos em paz, machista opressor!

"... Adoravam carne humana, principalmente acompanhada de uma boa ave. "

— Melhorou — o de cabelos azuis sorriu.

— Vai se foder — Ela advertiu segurando o riso.

Vez de Grattence. 

"... O sapinho-"

— PAAAAATO! — gritamos todos em uníssono. Ele deu um pulo e pôs a mão no coração. 

"... O pato Sidney pediu ajuda ao seu grande amigo, Flávio Faustão. Os dois pegaram duas caixas de isopor com gelo e quando for minha vez de novo, vocês saberão o porquê – e foram de motoquinha em direção a ponte..." 

Vez de Franklin. 

"... Então o pato Patati Patacolá-"

— SIDNEEEEEY — corrigimos outra vez.

Essa história não vai sair hoje...

"... Calma! Mais conhecido como Sidney, começou a cantar a musiquinha da tele sena. Ele e Faustão dançaram para chegar mais rápido... "

 Minha vez. 

"...No meio do caminho, apareceu um menino. Era o um cachorro caramelo, ensinando a eles o passinho da Tele sena..." 

Horrível! Não aguentei e ri com a história mal inventada. 

"... Ele se juntou a dupla em busca do grande mago implacável..."

A história foi prosseguindo, até que Robbie matou o pato Sidney. Faustão e o cachorro caramelo o jantaram com carne de sereia, e era cerveja barata no cooler. Fim. A moral da história? Não confie em quem acabou de conhecer, porque Faustão já planejava devorar Sidney.

Ficamos todos pasmos com o grau de idiotice que a história teve, mas Tyler pareceu ter gostado. Disse que iria mudar algumas coisas e tentar publicar, colocando nossos créditos no conto. Revirei os olhos e avisei que procuraria mais lenha. Estava muito frio.

Estranhamente, Tyler veio comigo.

Nenhum de nós falava nada, o silêncio chegava a ser perturbador. Um vulto preto passou por nós, mas ele pareceu não ter notado. Mais um, e mesmo assim, nenhuma reação, enquanto eu já começava a ficar assustada. Um terceiro vulto preto passou literalmente do meu lado, de formaque pude até mesmo sentir sua presença. Parei de andar imediatamente. Olhei em volta e, tudo o que encontrei foram os olhos amarelos de Tye. 

— Franklin te disse, não disse?

Pai, filho, Espírito Santo, amém, que susto!

Fiz que sim com a cabeça, ainda assustada. Ele suspirou e seu semblante demonstrou melancolia. 

— O nome dela era Dara — sorriu tristemente. — Ela era a aspirante a caça-fantasmas mas desajeitada que eu já vi. Todo verão estávamos juntos. Eu e ela obrigamos o Frank a participar de várias trapalhadas perigosas, chegamos até a resolver um crime uma vez! — Ele riu, mas logo depois ficou sombrio — Sempre disseram que ela mexia com o que não devia. 

Depois desses três vultos que passaram? Olha, acho que estavam certos.

Eu comecei a ficar nervosa. Ele avisou que iria dar uma volta e disse para eu voltar para a fogueira. Concordei. Ele não iria se perder, não era a primeira vez que se aventurava na mata fechada. Achei estranho o fato de ele parecer que sabia exatamente onde deveria ir. Era como se estivesse sendo chamado.

Encarei o céu, pensando sobre como ela havia sumido? Será que havia fugido de casa? Calculava o que uma pessoa como ela poderia querer fora de uma área de conforto em Saint Joan, passando o verão com uma tia que deveria ser muito fofa, se divertindo com os melhores amigos e tendo também a adrenalina de ter algum tipo de contato com planos superiores ou inferiores. Ela devia ter uma vida com "energia pesada" ou sei lá o que. Talvez tenha fugido por causa disso, por não aguentar o espaço de trabalho tão cheio de energia pesada e cabulosa. 

Quando notei, já estava outra vez perto da fogueira. Emmilie me abordou:

 — Cadê o Tyler? 

Procurei esquecer o que vi e respondi:

— Ele foi pegar lenha por si próprio, e também dar uma volta — comprimi os lábios rapidamente. — Fiz certo em concordar? 

Ela disse que sim, então dei de ombros e fiquei sentada em frente à fogueira quente e acolhedora. Começamos a falar mais sobre nós mesmos durante o tempo que Tyler não voltava. 

— Vocês nem vão acreditar no que aconteceu comigo, hoje — disse Lola empolgada. — Apareceram duas garotas na minha porta pedindo pés de cabra, foi muito estranho! 

Pediram no lugar certo — ouvi Franklin murmurar, estreitando os olhos e arqueando as sobrancelhas. 

Me descuidei e puxei as mangas do casaco para aproveitar melhor o calor do fogo, mas os pontos de incisão eram visíveis, e logo fui questionada sobre eles. Emmilie, a garota que não confiava em mim, perguntou.

Comprimi os lábios e encarei o chão, pouco antes de olhar para um par de olhos castanhos e encontrar um suporte. O olhar dele me acalmou. 

— Eu tive um surto depressivo quando meus pais morreram — comecei a dizer. — Fui levada para uma clínica, onde fiquei internada por dois meses inteiros. Levava muita dosagem de remédios e calmantes.

O clima ficou pesado, dava para sentir. Lola arregalou os olhos e fixou o olhar no nada, assim como naquele dia na aula. Seus olhos voltaram em minha direção, completamente vazios. O olhar de um fantasma. Parecia olhar dentro da minha alma mas sem enxergar nada, quase como uma boneca.

Desviei o olhar, com medo. Me perguntei se estava começando a desconfiar de mim. De repente, pensei que tinha escutado uma risada de criança. Me empertiguei ao lembrar de Tyler andando sozinho pela floresta.

— Gente, Tye está demorando. Não é melhor procurarmos? — Sugeri.

Todos concordaram. Ficamos horas e horas procurando, gritando o nome dele. Não houve nem sinal daqueles cabelos azuis. Começamos a entrar em pânico, principalmente eu, porque seria eu a contar para Liv sobre o sumiço do namorado dela. Pior ainda, o pai de Tyler era um policial.

Já eram três e trinta e três da manhã! Meu coração começou a palpitar, parecia querer sair pela boca. Eu confesso que estava tonta. Quando olhei em volta, vi faces borradas e cinzentas a minha volta, fazendo caretas tortas com bocas enormes e olhos brancos e vazios, pareciam ter a pele esticada e me encaravam como se pudessem me atacar a qualquer momento. Minhas pernas vacilaram e eu cambaleei para trás, quase caindo.

Franklin, que até então estava tentando telefonar para o amigo desaparecido, se virou para mim e viu meu estado. Eu estava verde, fraca, sentindo os olhares nos devorarem a nossa volta. Ele veio até mim e me pegou pelo braço. O encarei, meus olhos pediam ajuda como há três anos atrás, mas agora deviam ser irreconhecíveis, já que não se lembrava de mim. Por mais ridículo que fosse pensar numa possibilidade como essa, por um momento, o "sonho" pareceu passar por seus olhos. 

— A Stella não está se sentindo bem — avisou aos outros, sem tirar os olhos de mim. Ele tornou a sussurrar: — Vou te levar de volta para a fogueira, certo? 

Concordei aliviada. Puxei o ar com força e expirei. Tudo começou a rodar. Mais vultos aparaceram e eu apertei o braço de Franklin. Ele me colocou sentada sobre um paralelepípedo e me pediu que dissesse o que havia de errado, com calma. Respirei fundo. 

— Tem algo errado aqui — eu disse. — O Tye, ele... ele disse que a amiga… diziam… ela-

— Ela mexia com o que não devia — completou, passando a mão no meu rosto. — O arcano não tem agido há mais de dois anos.  Nós vamos achá-lo. 

Afastei sua mão e desviei o olhar. 

— Não faça isso. 

— O quê? — Franklin franziu o cenho. 

— Você tem namorada — olhei em seus olhos. — A última coisa que eu quero é ser o seu consolo.

Ele suspirou e me olhou de volta. 

— Precisamos resolver isso. 

Concordei. Precisávamos. 

— É o seguinte: Karen está — fez uma pausa, parecendo procurar como dizer. — esperando um… digo, ela… 

Fiz um gesto de "prossiga" com a mão, tentando encorajá-lo. 

— Stella, Karen está esperando um bebê — meu sangue gelou e fiz uma expressão de indignação. — do Patrick, não meu. Terminamos por causa disso e de outras coisas.

Meu cérebro processava tudo aquilo. E o beijo? E aquele dia em que ele disse que a relação era contemplativa?

 — E o beijo? — Perguntei.

         — Foi no dia do término. "De despedida, por favor" — imitou uma voz feminina e irritante. — Eu não tinha motivos para continuar com ela. Se tem alguém que realmente traiu nisso tudo... 

— Então mentiu para mim? 

— Ainda estava tirando conclusões sobre uma coisa e, bem, tentando me fazer de difícil. 

Um sorriso bobo se formou em seu rosto. Então não tinha nada em nosso caminho, esse tempo todo.... 

— idiota — sorri de volta. Dei um tapinha fraco em seu ombro. — O que me entregou? 

 Ele se aproximou. 

 — O olhar nos entregou. 

Finalmente saberia a sensação de beijar seus lábios sem peso na consciência. Sua mão voltou ao meu rosto e estávamos nos aproximando cada vez mais. 

Mas alguém pigarreou, nos impedindo. 

Nos afastamos bruscamente para ver quem era, completamente desconcertados.


Notas Finais


"Eu estou 1-17?"


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