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História Memórias Rasgadas - Capítulo XVI


Escrita por: Imagination

Notas do Autor


Obrigada pelos comentários, mensagens, favoritos e a todos os que acompanham o enredo!

Capítulo 16 - Capítulo XVI


Capítulo XVI

 

O recém-nascido não guarda memórias. Nunca vai saber o que aconteceu nos dias ou meses subsequentes ao seu nascimento, exceto se posteriormente a família quiser partilhar alguma história nostálgica no futuro. O bebé também não recorda os primeiros passos ou a primeira palavra.

As lembranças são coisas mais simples como saber a quem chamar mãe ou nome de alguns objetos que iam entrando no seu universo. Em tão tenra idade não só não recorda, como não tem discernimento para saber se recebeu todo o carinho ou cuidado que deveria.

Ele nunca se viu sentado no chão sobre uma manta velha, com garrafas vazias de álcool por perto. Não recordava todos os desconhecidos que entravam pela casa, nem quantas vezes o tio já o tinha transportado pela calada da noite para longe da casa onde nasceu.

A inocência aos olhos da criança impede-a de processar a maldade à sua volta e por isso, mesmo que as primeiras memórias que teve ocorressem no mesmo cenário, ele durante muito tempo não foi consciente da realidade em que cresceu. Esquecia com facilidade, perdoava num abrir e piscar de olhos a pessoa que minutos antes tinha golpeado o rosto ou que o tinha fechado no quarto sozinho e no escuro durante horas. Continuava a abraçar a mãe, continuava a sorrir quando via o tio aparecer. Era família. As únicas pessoas que tinha na vida.

Quando entrou na escola, a timidez colocou um entrave complicado para socializar com outras crianças, mas havia sempre aquele colega que chamava todos para brincar. Porém, existia também sempre os que mesmo tão novos notavam aspetos tão superficiais como as roupas velhas.

Estereótipo ou preconceito são palavras com significados tão mesquinhos e cruéis que não nascem naturalmente com as crianças, mas são transmitidos pelas pessoas à nossa volta, principalmente pelos pais que são os grandes responsáveis pela educação dos filhos. Ele foi mais uma vítima disso. Ele nunca viu maldade nos olhares de outros pais que iam deixar os filhos na escola e alguns não escondiam o desagrado pela aparência dele ou pela pessoa que o acompanhava. Ele não discernia a maldade em palavras como:

Provavelmente deve ter alguma doença.

Não quero que o meu filho brinque com ele.

Como é que deixam estas crianças entrar na escola?

Alguém, ele não recorda exatamente quem, iniciou uma brincadeira cruel pouco depois do início do ano escolar. Diziam que quem tocasse nele, ficaria doente ou se tornaria nele. Em consequência disso, os colegas que antes até o chamavam para brincar, começaram a fugir e procurar sempre distância dele. Ainda assim, em vez de tristeza, a criança sentiu durante muito tempo confusão. Procurou também não incomodar ninguém e por isso, habituou-se a ver de longe as brincadeiras e as conversas dos outros.

– Não vais brincar com os teus amigos? – Uma das professoras que viu o pequeno aluno sentado nos degraus perto da sala de aula sozinho, parou para tentar entender a razão daquele estranho isolamento.

A professora era nova e mais uma que eventualmente, deixaria de fazer perguntas. Outros professores também tinham perguntado ou tentado incentivá-lo a brincar com os colegas. Ele não respondia ou às vezes, acenava afirmativamente com a cabeça e mudava de lugar. Procurava outro local onde não lhe fizessem perguntas porque assim que tentasse aproximar-se de alguém, todos iriam fugir.

Seria expectável que algum professor ou qualquer responsável na escola acabasse por reparar no isolamento dele e nos rumores que circulavam na escola. Houve que notasse e tentasse mudar, interferir e educar, mas sem resultados práticos. Pelo contrário, surgiam consequências para os que tentavam fazer alguma coisa. A começar pelos pais de outros alunos que apareciam na escola bastante indignados, dizendo que ninguém tinha o direito de obrigar os seus filhos a conviver com a escória da sociedade. A maioria juntava-se, empurrava professores e funcionários contra a parede com discursos de ódio e ignorância. Existiu inclusive uma manifestação de alguns pais a pedir que fosse retirado da escola e não foi por defesa dele que vozes contrárias se levantaram e sim porque era contra a Lei. Não podiam privá-lo do direito à educação.

Na altura, era tão novo que não entendeu como desde daquela altura, as pessoas podiam ser tão cruéis. Julgavam-no pela aparência e pelos rumores da família dele. Em resposta, a criança fez o que pensava ser o melhor para todos, tentou passar o mais despercebido possível. Não falava com ninguém, não pedia ajuda a ninguém e nunca estava com ninguém.

No entanto, aprendeu que a expressão culpada de alguns professores desaparecia, sempre que algum deles se atrevia a perguntar se estava tudo bem e ele sorria e dizia que sim antes de continuar a escrevinhar no caderno que o acompanhava. No início fazia poucos desenhos, mas depois quando precisou de decorar as tabelas com números que multiplicados entre eles apresentavam diversos resultados, usava o caderno para praticar. O inconsciente dele desde cedo agarrou-se a alguma coisa que era constante e não o enganava, a menos que ele próprio cometesse um erro ao utilizá-los. Desde cedo começou a usar os números como um conforto e distração.

– Só boas notas. Muito bem. – Elogiou a mulher de longos cabelos negros caídos sobre as costas, cigarro entre os lábios e estendeu uma mão acariciando os cabelos da mesma cor do menino que sorriu feliz com o elogio da progenitora.

– Não sei para quê a alegria, não faz mais do que a obrigação dele. – Comentou o homem de barba mal feita e dois pés sobre a mesa, segurando uma garrafa numa das mãos.

– Posso estar de bom humor, Kenny. – Ironizou a mulher, olhando para o casaco do filho que estava sobre a cadeira. – Talvez seja mesmo altura de lhe comprar um melhor. Está mais frio e eu não quero que fique doente. Quero que mantenha as boas notas.

– E para quê? Não é como se isso fosse servir para alguma coisa.

– Eu nunca fui muito boa na escola. – Começou por dizer enquanto via como o filho acabava de comer uma das poucas refeições que ela sabia preparar. – Mas o pai dele tem um bom emprego, boa cabeça para estudos e sempre quis um rapaz. A puta da mulher dele ficou infértil depois da segunda filha deles e ele disse várias vezes como queria um rapaz. Alguém à imagem dele.

– Isso não tem a imagem de um rico, Kuchel. Por mais sonhadora que sejas, a verdade é que ele sabe que o puto existe e não quer saber.

– Ele está a divorciar-se…

– Mas não vai casar com uma puta. – Apontou Kenny, bebendo mais um pouco. – E se queres dar um casaco novo a esse desperdício de ar e dinheiro, ele que venha comigo amanhã e faça por merecer.

– Não vais voltar àquela feira para roubar. Eu não quero que ele faça essas coisas.

– Kuchel, ele é rápido com as mãos, pequeno e um pote de despesas. Tem que fazer qualquer coisa.

– Ele tem 8 anos, Kenny. – Argumentou, revirando os olhos.

– Mais do que na idade para aprender. Queres contar-lhe o que nós fazíamos com 8 anos?

Levi escutou aquele tipo de conversas tantas vezes sem pensar no significado das palavras que eram ditas. Era tão fácil ignorar quando se era inocente e sobretudo quando a mãe lhe dedicava os raros gestos de carinho. Usualmente, estava sempre fechado no quarto a fingir que não existia.

Isso ou quando ia para a casa do tio, onde também tinha que se esconder várias vezes quando havia visitas e trocavam pequenos pacotes que ele não sabia o que era, mas Kenny deixava bem claro que se dissesse alguma coisa errada a alguém que se iria arrepender. O tio não brincava com as ameaças e se a mãe optava por gritar com ele e não batia muitas vezes, com Kenny era diferente. Violência era quase sempre a primeira resposta e segundo o tio, o método mais efetivo para que ele aprendesse.

– Não quero fazer isto de novo, tio. – Queixou-se com as mãos vermelhas com vários cortes e tentando segurar as lágrimas.

– O que achas que vamos comer este mês? Lágrimas?

– Mas… estas coisas não se fazem… e eu… eu…ah! – Queixou-se ao receber um soco no estômago que o fez curvar-se.

– Se alguém te apanhar, não és preso. Tens três palmos e choras mais do que um bebé de fraldas! Agora vai lá e traz o que te pedi, exatamente da forma como ensinei!

Horas mais tarde, estava na sala em casa, escutando como o tio e a mãe discutiam. Ele estava encolhido num canto com as mãos ensanguentadas a tentar cobrir os ouvidos para não ouvir nada. Cerrava os olhos com força. Doía-lhe o rosto dos golpes que tinha recebido da mãe quando soube o que tinha estado a fazer na companhia do tio. Mesmo que grande parte das coisas que trouxe, não fossem para a casa em geral e sim para a mãe, ela não quis saber. Berrava, dizendo que não queria que fizesse aquelas coisas e pelo contrário, o tio afirmava que teria que aprender a sobreviver. Portanto por mais castigos físicos que lhe fossem aplicados posteriormente, a criança escolheu as palavras da mãe e recusou-se a continuar com aqueles pequenos furtos. Aguentou a violência física e verbal do tio que começou então a dedicar-se a tentar ensinar a que se defendesse. Inicialmente, não entendia a razão mas depois ouviu claramente que o Kenny pretendia que seguisse o outro negócio que ele geria. O que envolvia substâncias ilegais e isso pressupunha que teria que lidar com gente bastante perigosa. Assim sendo, aprender a defender-se e ripostar não era opcional, mas uma necessidade.

Até nisso parecia ser uma desilusão e com o passar do tempo nem na escola, as coisas mostravam sinais de algum dia ir melhorar.

– Mas não fui eu. – Murmurou.

– Pensas que não te vejo todos os dias aqui na biblioteca? Quem mais poderia ter roubado se não um pequeno marginal como tu?! – A funcionária da biblioteca acusava-o de ter retirado um dos livros aparentemente valioso, mas ele não só não tinha retirado o dito livro, como nem sabia de qual estava a falar. Era verdade que passava horas na biblioteca. Às vezes, lia alguns livros mas normalmente perdia-se nos cálculos do caderno que sempre o acompanhava.

– Sra. Clara fui eu que levei o livro, mas como não estava, pensei que podia avisar depois. – Interferiu um professor que acabava de chegar no meio da acusação que estava a atrair as atenções de outros presentes no local.

– Ah, Sr. Professor não faz mal. – Disse com um tom bem mais agradável e ignorou o rapaz de olhos cinza que apertando o caderno contra o peito, manteve-se imóvel.

Tanto a funcionária como o professor ignoraram a presença dele. Não houve, tal como esperava, qualquer pedido de desculpas pelas falsas acusações. Consequentemente, assim que os viu entretidos a conversar, o rapaz saiu de mansinho. Não queria sair da biblioteca, mas também não queria ver a funcionária ou experienciar os olhares de todos que cochichavam entre eles.

Saiu para o exterior e tremeu com a corrente de ar gélida do exterior. O inverno estava particularmente rigoroso naquele ano, mas mais uma vez por causa de uma acusação injusta, teria que fingir que não sentia como o frio cortava a pele dele e procurar algum canto escondido onde pudesse estar. Onde não escutasse os risos, os comentários de todos os que sabiam exatamente naquilo que a mãe dele trabalhava.

Agora também ele era consciente do trabalho sujo e degradante que ela tinha. Era também mais consciente de que sempre estaria sozinho, que ninguém queria saber como ele estava. Todos riam da existência dele e mais do que pena, sentiam nojo a olhar para ele.

– Eu não pedi nada disto… – Sussurrou contra o silêncio e uma lágrima escorreu no rosto dele, enquanto olhava para o céu acinzentado daquele dia. Outra corrente de ar fria arrepiou-o. Tentou envolver-se com os braços, mas a única coisa quente que sentia contra a pele era a lágrima que escorria no rosto.

Ser consciente de como tudo era tão mais terrível do que pensava quando era criança, doía muito mais do que imaginava. Bem mais do que as agressões do tio porque as manchas, os ferimentos, as fraturas podiam sarar mas o que havia dentro dele não havia tratamento ou remédio que aliviasse. Só quando doía fisicamente, a dor interior diminuía. Criava uma distração e aperceber-se disso, trouxe pela primeira vez as lâminas aos seus braços.

– O meu irmão tinha razão. Nunca devias ter nascido. Não serves para nada.

Doía sempre mais quando era a própria mãe a dirigir-lhe esse tipo de palavras e essas foram as que ouviu quando foi encontrado no chão do quarto, onde desmaiou devido à perda de sangue causada pelos cortes. Sem um pingo de consideração. Sem questionar o motivo por detrás daquilo, simplesmente afogando-o mais naquela dor que o corroía por dentro.

Mais lágrimas embaciaram os olhos dele enquanto via os passos dela saírem do quarto e trancarem a porta à chave. Ele desejou que a perda de sangue não tivesse levado só a consciência dele, mas também a vida. Se é que podia chamar aquilo de viver.

– Já me perguntava há algum tempo quem estaria a dar-lhes comida e trazer estas mantinhas.

A voz surpreendeu-o e os três gatos que cores diferentes que o rodeavam, miaram com ausência de carícias pois as mãos dele pararam. Viu uma mulher de cabelos claros, sorriso afável que se aproximava também com comida de gato na mão.

– Eu…

– Obrigada. – Disse, abaixando-se ao lado dele. – É bom que existam pessoas como tu que se importam e que tentam melhorar um pouco a vida deles.

O rapaz baixou o rosto, continuando com os gestos de carinho aos animais que eram os únicos que gostavam de passar tempo com ele. Os únicos de quem recebia algum tipo de carinho e que diminuíam um pouco aquele sentimento de solidão.

– Devo-lhes muito mais do que aquilo que posso dar. – Murmurou e a mulher não pôde deixar de reparar na tristeza que havia na voz, nos olhos que tentava esconder e por onde caíam algumas lágrimas. Foi a primeira vez que se viram e Nanaba viu nesse primeiro encontro entre eles que havia muita coisa que o rapaz chamado Levi não lhe contava. Fugia às perguntas ou dava perguntas vagas à razão para as marcas visíveis no rosto e outras que a mulher imaginava que tivesse noutras partes menos visíveis. Os raros sorrisos genuínos surgiam quando cuidava dos animais, mas fora isso guardava sempre uma expressão que Nanaba quis mudar muitas vezes.

Porém, quanto mais tentasse descobrir o que estava a acontecer, mais Levi se distanciava e por temer que ele desaparecesse de vez da vista dela, foi diminuindo a frequência das perguntas, mas convidando-o algumas vezes para passar algum tempo na casa dela onde várias vezes, o rapaz fez refeições que não teria tido de outra forma.

Além de Nanaba não havia com quem ele conversasse, isto até um encontro totalmente casual com alguém que Levi não sabia que não sairia da sua vida. Ele corria por uma dos corredores da escola, procurando despistar alguns colegas que tiraram aquele dia para se divertir a persegui-lo com brincadeiras que acabava com todos a rirem à sua volta. Se o tio o visse, apontaria novamente a desilusão que era por não se defender e dar exatamente o que aqueles colegas mereciam. Ele só queria que o ignorassem e deixassem em paz. Também não queria ser suspenso e perder aulas porque outros se divertiam a atormentá-lo.

Repentinamente, viu uma porta entreaberta de uma das salas de biologia e entrou, fechando a porta o mais discretamente possível antes de esconder-se perto da secretária. Não sabia se tinha sido rápido o suficiente para não ter sido visto a entrar na sala e por isso, aguardou durante largos minutos até que teve a certeza que podia suspirar de alívio.

Assim que o fez, viu de soslaio algo a mover-se e quase gritou ao ver que havia alguém debaixo da secretária a olhar fixamente para ele. Com o susto ao levantar-se, desequilibrou-se e foi contra uma das mesas da sala.

– Assustei-te? – Perguntou a rapariga de óculos, cabelos castanhos completamente despenteados e um sorriso demasiado divertido para o gosto dele.

– O que… o que estavas a fazer debaixo da secretária? – Perguntou confuso e acalmando os batimentos dentro do peito. Quem raio se colocava debaixo de uma secretária numa das salas de biologia? Bom, pensando bem, talvez ela estivesse com o mesmo problema que ele.

– Estava a relaxar um pouco. – Apontou para o quadro da sala onde estavam diversos cálculos diferentes. – Isto está a dar-me uma dor de cabeça e uma pausa…

– Uma pausa debaixo da secretária?

– Tive preguiça de afastar-me muito para apagar a luz e debaixo da secretária é escuro e dá para dormir.

Ok, não estamos aqui pelos mesmos motivos. Ela tem outro tipo de problemas”, concluiu.

– E tu? Nunca te vi por aqui? Aluno novo?

– Não, já estou de saída. – Respondeu um pouco mais composto e olhando mais uma vez para o quadro, apontou para um dos cantos. – A partir dali está errado. Seria 7 e não 5. É por isso que o resultado final não faz sentido.

A rapariga olhou para o quadro e arregalou os olhos.

– Tens razão! Estou há horas a olhar para isto e não… hei! Espera! – Disse ao ver o rapaz sair da sala. – Nem disseste o teu nome! O meu nome é Hanji!

O rapaz olhou para trás por alguns momentos e suspirando, respondeu:

– Levi. – Andou mais alguns passos e acrescentou em tom mais baixo. – Não é um nome que queiras recordar.

Ele nunca imaginaria que a rapariga passaria a procurá-lo e quase persegui-lo com a ideia de que ele se juntasse as atividades extras dela na sala de biologia. Ela costumava desenvolver pequenos projetos e por vezes, um professor passava lá mas usualmente estava sozinha na sala. Ela era fascinada por várias áreas diferentes de ciência e tinha uma impressionante capacidade de memorizar informação.

Hanji era considerada uma aluna prodígio entre os professores, mas assim como Levi passava bastante tempo sozinha. Ainda que fosse verdade que a capacidade dela de se relacionar com os outros fosse bem melhor do que a dele. As pessoas à volta podiam não compreender tudo o que dizia ou podiam invejá-la pelas boas notas, mas ela conseguia pequenas amizades porque não havia nada de errado com ela. Nada além da insanidade que às vezes chegava a assustar Levi que cansado de tanta insistência, deixou-se levar algumas vezes para a sala de biologia para ajudá-la em alguns projetos.

Contudo, o rapaz sabia que seria uma questão de tempo até que viessem as perguntas na direção dele. Hanji contava-lhe tudo, aliás demasiadas coisas que às vezes não acreditava que a… amiga devesse partilhar, mas era bom ter alguém a quem pudesse aplicar o conceito de amizade. Mesmo que ele tentasse manter as conversas exclusivas aos projetos ou à vida dela.

– Sei que tentas sempre fugir destas conversas, mas eu vejo as marcas, Levi. – Insistia. – Também já ouvi as coisas horríveis que dizem sobre ti. Não podes deixar estas coisas continuarem!

– É um assunto meu e não quero que faças nada, Hanji.

– Vou continuar a ameaçá-los da mesma forma que fazem contigo! Garanto-te que se alguma vez os apanhar em flagrante, eu…

– É um problema meu! – Falou mais alto. – Denunciar não resolve nada, tu meteres-te em problemas também não… quantas vezes tenho que dizer que isto não é assunto teu?!

– Mas Levi… eu acho que precisas de ajuda, de alguém que se preocupe porque não parece que a tua família…

– Deixa-me em paz, Hanji. Esquece que existo. – Bateu a porta da sala.

Mais cedo ou mais tarde o convívio entre eles teria que acabar e Levi sabia disso. Imaginou que Hanji se distanciasse pelos rumores ou pelas pessoas que o perseguiam, mas ela não tinha medo e pior começou a receber repreensões por causa dele. A aluna brilhante e um pouco estranha começava a ter comportamentos e companhias questionáveis e ele sabia que a culpa era dele, mas não pensava que ela estivesse a ir tão longe ao ponto de apresentar queixa aos professores e demais funcionários. Ela estava a envolver-se demasiado e a prejudicar-se.

Então, o adolescente fez o que considerou o melhor e distanciou-se de tal forma que passou a evitá-la totalmente.

Quando Levi estava a habituar-se novamente à solidão de antes, apareceu alguém que também pensou que fosse desaparecer rapidamente da realidade dele, mas nunca da forma como ocorreu. Inicialmente, apenas ficou ao lado do moreno de olhos verdes na primeira vez que se encontraram na enfermaria porque não esperava que alguém tão distante dele, pudesse estar a passar por uma situação que o arrastava ao ponto de pedir a um desconhecido para lhe fazer companhia. Porém, o jovem de olhos cinza considerou que fosse uma situação pontual e que assim que Eren descobrisse quem ele era para todos os outros, nada de semelhante voltasse a ocorrer outra vez.

Era um acontecimento único e irrepetível. Se Eren voltasse a sentir-se como naquele dia, com certeza encontraria outras pessoas que ficassem com ele. Ainda assim pensou algumas vezes no que tinha acontecido, na forma como também lhe trouxe conforto ver que não estava sozinho quando se tratava de sentir uma tristeza imensa e quase incontrolável.

Nunca esperou que Eren procurasse por ele e nem admitisse que o tinha procurado nos dias em que não se cruzaram. Até mesmo Levi que se isolava bastante de todos já tinha escutado alguns colegas falarem acerca do moreno. Ele era filho de um médico bastante conhecido e a mãe também aparecia quase todas as semanas em meios da comunicação social. Todos queriam estar perto dele, falar com ele… então por que razão alguém assim se lembraria de procurá-lo?

– Porquê? Tens tanta gente com quem falar. – Quis saber após o segundo encontro na enfermaria, onde o moreno se tinha sentado na cama do lado e teimava em conversar com ele.

– Não, não tenho. Não desta forma. Ninguém me vê desta forma ou aceita que eu possa realmente sentir isto que vês cá dentro.

– Mas eu não posso melhorar nada disso.

– Reconheces que existe e isso para mim é uma pequena vitória. – Sorriu um pouco. – Será que podes não desaparecer e… – Coçou um pouco a cabeça. –… falar assim comigo… às vezes?

– Ouvir-te desabafar porque mais ninguém quer ouvir?

– Patético, não é? – Forçou um sorriso.

– Não tenho planos muito emocionantes na minha vida, Eren. Posso ouvir algumas coisas até te cansares de mim. – Afirmou, fechando o caderno.

Eren sorriu desta vez menos forçado e como em vários dias que se seguiram, começou a falar. Contou acerca de várias das coisas que vivia em casa, do constante sentimento de solidão, das milhares de discussões entre os pais, as ameaças de divórcio, as razões para isso, as razões em que o moreno chegava incluir-se por considerar que era um desapontamento. Das poucas pessoas de quem falava com mais alegria era a falecida avó que pelo que ouviu, foi uma influência bastante positiva na vida dele. Ela tentou mantê-lo inocente para as coisas cruéis que se faziam ou se diziam à sua volta e durante anos conseguiu, mas conforme se vai crescendo e sobretudo após a morte da avó, Eren começou a notar outras coisas e a aperceber-se que aquela casa, aquela vida nunca foi o paraíso dourado em que acreditou viver.

Levi podia identificar-se com fragmentos, ainda que na verdade nunca pensou que tivesse vivido num paraíso, mas durante muito tempo pensou que muitas coisas fossem normais ou que um dia fossem melhorar. Acreditou em tantas mentiras que disse a si mesmo, enquanto Eren acreditou naquelas que lhe foram contando. Pontos das histórias dos dois tocavam-se, mas Levi não dizia nada. Não se revelava para o moreno, descartando com uma certa facilidade qualquer pergunta na sua direção.

Além de estranhar alguns sorrisos na direção dele, Levi não pensava em Eren de modo diferente. Esperava sempre que o moreno algum dia deixasse de aparecer ou de procurá-lo. Não tinha expectativas de nada, nem pensava em coisa alguma dos encontros entre os dois até ao dia em que após mais alguma troca de palavras e num corredor onde passavam tantos alunos, Eren após um agradecimento beijou-o na testa.

Desse ponto em diante, teve que começar a admitir que o jovem de olhos verdes não era simplesmente um conhecido com quem conversava algumas vezes. Não quando depois daquele gesto impensado, vieram outros que Levi não esperava. Ninguém o tratava daquela forma.

– O que estás a fazer? – Perguntou incapaz de conter o rubor no rosto, onde Eren tocava com uma das mãos.

– Achei que precisavas. – Sorriu. – Hoje pareces bastante mais triste do que o habitual.

– Não estamos aqui para falar de mim. – Murmurou, tentando colocar distância entre eles porque escutava os próprios batimentos. Sentia o tremor na mão que segurava o caderno.

– Nunca estamos e eu às vezes sinto-me culpado. Posso?

– Huh? – Balbuciou sem entender.

Repentinamente, os braços de Eren envolveram-no e um choque atravessou o corpo dele.

Hanji tentou abraçá-lo em algumas ocasiões antes da grande discussão entre eles, mas nunca o permitiu. Fugia do toque de carinho como se o fosse queimar, por ter medo de querer mais vezes e saber que não o teria por não merecer, porque ninguém era capaz de gestos de carinho para alguém tão estragado como ele.

No entanto, aquele abraço inesperado e forte quebrou qualquer coisa dentro dele. Sem querer deixou escapar o primeiro de vários soluços. Não sabia que precisava tanto de um abraço até receber aquele e Eren mesmo um pouco surpreso, optou por não quebrar o contacto e acariciar os cabelos negros.

– Talvez eu possa ajudar e fazer qualquer coisa. – Murmurou Eren.

Ninguém pode, mas obrigado”, respondeu silenciosamente.

Aparentemente, Hanji chegou a ver o abraço de longe e no dia seguinte fez questão de dizer a Levi que não fazia ideia no que se estava a meter. Repetiu várias vezes que ele não era consciente do que Eren era capaz quando queria manipular e pisar nos outros. Ela afirmou que tinha visto com os próprios olhos como ele podia cruel e que Levi estava a ser enganado.

– Finalmente saímos mais da enfermaria. – Disse na primeira vez que Eren combinou que deveriam encontrar-se fora da escola.

O tempo estava um pouco confuso com nuvens, alguma chuva irregular e um sol que surgia por entre as nuvens cinzentas. Um arco-íris era previsível e quando este pintou o céu, Levi parou por alguns instantes para observar as cores, quando de soslaio viu que Eren também tinha parado mas não olhava para o céu.

– O que foi? – Perguntou o jovem de cabelos escuros confuso.

– O arco-íris fica bem nos teus olhos.

Levi desviou o olhar.

– Cinzento não combina com cores alegres.

– O teu cinzento é especial.

– Não, não é. – Argumentou, olhando para Eren que sorriu.

– É sim porque eu digo que é.

O jovem de cabelos negros abanou a cabeça e empurrou o moreno de leve.

– Deixa de dizer asneiras. – Caminhou na frente do moreno, tentando não pensar nos batimentos acelerados e nas reações que tinha com ele e não com outras pessoas. Ele sabia perfeitamente que sentia atração por pessoas do mesmo sexo e que Eren… bom, ele tinha uma aparência apelativa. Então, seria normal algum tipo de atração até tendo em conta o tempo que estavam a passar juntos, mas sempre se continha, sempre mostrava reservas para confiar em alguém.

Em condições normais, teria dado mais importância às palavras de Hanji. Estava na sua natureza desconfiar das boas intenções dos outros e no entanto, estava a deixar de conseguir fazer isso com Eren. Quando este lhe disse que jamais esqueceria aquele dia enquanto estavam sentados nos baloiços, Levi teve a certeza que não era somente uma atração como outras. Ele tinha desenvolvido um tipo de sentimento diferente e mais importante pelo moreno.

Aos quinze veio aquilo que os romances, novelas e músicas chamavam de primeiro amor.

– Tens que parar com isto. – Reclamava enquanto enfaixava a mão de Eren num parque depois de o moreno ter-se envolvido em mais uma confusão a caminho do encontro que tinham marcado.

– Foram os outros que começaram.

– É sempre essa a tua versão. – Levi revirou os olhos. – Já reparaste que não nos vemos sem que tenha que trazer material médico comigo?

– Isso é porque não podes evitar preocupar-te comigo. – Sorriu confiante.

– Não sei se é preocupação ou se espero que sempre faças alguma coisa idiota.

– Sim, sim futuro Dr. Levi. – Brincou.

– Eu não vou ser médico, Eren. – Disse um pouco ruborizado como Eren se aproximava mais do rosto dele.

– Podes ser o meu médico ou enfermeiro particular. – Provocou e corou também ao ver que Levi não criava distância entre eles como em outras ocasiões e os olhos verdes abriram-se bem surpresos, quando o outro encostou por breves momentos os lábios nos dele.

– Não precisas de olhar para mim com essa cara. Tu é que estavas muito perto. – Tentou justificar-se o jovem de cabelos negros envergonhado e largando a mão perfeitamente enfaixada de Eren.

– Ah… nunca pensei que fosses alguém que tomasse este tipo de iniciativa.

Levi arqueou uma sobrancelha, mantendo o rubor que também havia no rosto do outro.

– Acredita no que quiseres, Jaeger mas eu não sou passivo.

– Não acredito nisso. – Desafiou, voltando a aproximar-se. – Só me apanhaste de surpresa, caso contrário terias recebido um beijo de cinema.

– Só os passivos é que sonham com beijos de cinema, Jaeger. – Contra-argumentou e embora, o moreno tenha tomado a iniciativa do novo beijo entre eles, este só se aprofundou porque Levi passou a língua nos lábios do moreno.

– Ah… eu…. – Dizia ofegante alguns minutos mais tarde com Levi sobre ele.

Eren estava deitado sobre a erva do parque. Os dois felizmente tinham escolhido uma zona discreta antes de começarem a troca de vários beijos.

– Sim?

– Pensava que era hétero. – Admitiu.

– Claramente estás um pouco confuso. – Ironizou Levi, batendo na mão de Eren que subia pela coxa dele. – És pelo menos bissexual. – Encolheu os ombros, saindo de cima do moreno. – Já é tarde. Tenho que ir andando.

– Quando nos vemos de novo?

– Sabes onde costumo estar. – Respondeu o jovem de olhos cinzentos.

Foram dias bem curtos, mas que colocaram a ideia errada na cabeça de Levi. Era mais fácil aguentar as agressões físicas e verbais tanto em casa como na escola, se tivesse a oportunidade de passar algum tempo com Eren, esquecendo que havia tantos motivos para desistir. Os motivos não desapareceram, mas naqueles dias ele pensou que valia a pena tentar mais um pouco, aproveitar um pouco mais dos dias que nunca pensou que viessem. Num mundo pautado por tanta escuridão à sua volta, aqueles pequenos raios de sol alimentaram um sonho que nunca existiu de verdade. Era tudo demasiado bonito para ser verdade.

Das vezes em que combinaram encontrar-se, houve uma primeira e única vez em que não cumpriu com o horário. O tio embriagado impediu que saísse quando era suposto. Se fosse um dia como outros no passado, passaria o resto do tempo no chão do quarto à espera que a inconsciência o levasse, mas ele tinha prometido ir ao encontro de Eren e por isso, mesmo com as dores no corpo, a cara bastante marcada, saltou pela janela do quarto, segurando as inúmeras queixas que o movimento lhe causou. Tinha prometido. Nunca tinha quebrado uma promessa com Eren e mesmo que fosse bem mais tarde do que a hora em que tinham combinado, ele acreditou que o moreno também fosse fiel à promessa.

Com o sabor de sangue na boca encontrou o parque, o local onde costumavam encontrar-se completamente vazio. Nem sinal de que tivesse esperado. Nem um sinal de que tivesse estado ali.

Ainda procurou perto dos baloiços, mas pela hora deduziu que talvez estivesse a pedir demais.

Não fazia sentido que Eren tivesse esperado tanto tempo. Mesmo que aparentemente os pais não se preocupassem com as ausências dele de casa, alguém notaria as saídas dele e as horas a que chegava. Mesmo que fossem pagos para isso, alguém devia preocupar-se com o moreno e por isso, era normal que ele não estivesse ali.

Acho que era pedir demais que tivesse esperado até tão tarde”, olhou para o céu já bastante escuro e suspirou, colocando a mão na altura do peito onde ainda sentia uma dor bastante intensa, “É melhor ir para casa e tentar encontrar qualquer coisa para as dores. Hoje o meu tio passou-se um pouco, mas amanhã não quero faltar às aulas. Quero falar com o Eren… quero pedir-lhe desculpa por não ter aparecido como combinado”.

No dia seguinte, Levi recordou exatamente todos os motivos pelos quais pensou que não valia a pena acordar para ver um novo dia. Saiu um pouco mais tarde de casa, pois devido à medicação que tomou de noite para aliviar as dores, acabou por dormir mais do que devia. Porém, assim que passou o portão da escola a passo apressado notou os olhares concentrados nele. Podia ser só paranoia, mas por cada pessoa que passava havia risos, comentários como se todos tivessem tirado aquele dia para dedicar-lhe uma atenção que não desejava. Encolhendo-se a cada passo que dava na direção da sala de aula reparou também na quantidade estranha de papéis que estavam espalhados não só pelo chão, mas também afixados em alguns lugares. Como não queria manter contacto visual com ninguém, o adolescente baixava o rosto e passava rapidamente até chegar à sala de aula.

– E não é que apareceu mesmo?

– Não tem mesmo vergonha nenhuma.

– E eu que pensava que as putas ganhavam bem.

De rosto baixo dirigiu-se à mesa onde se sentava sozinho e viu que estava repleta de palavras ou frases ofensivas com alguns desenhos obscenos.

“Se fosse como tu já me teria matado há muito tempo”

“Não tens vergonha de ser assim?”

“Ninguém gosta de ti”

“Engoles como a tua mãe?”

“Quanto é que cobras por hora? Não pode ser muito porque metes nojo só de olhar”

O professor entrou na sala de aula e apesar dos risinhos, não perguntou o porquê de Levi ter demorado mais um pouco antes de sentar-se e tapar as palavras e desenhos com a mochila e cadernos. Em vez disso, o professor com um ar cansado quis saber quem eram os responsáveis pelos papéis que andavam a circular na escola. Só então um dos colegas colocou o papel sobre o caderno já aberto e pela primeira vez, Levi parou para ver do que se tratavam todos aqueles papéis que mostravam fotografias a preto e branco da mãe juntamente com alguns pedaços de notícias, onde a acusavam de atividades ilegais, tais como a prostituição ou tráfico de droga.

Já tinham feito algo semelhante há uns anos atrás quando alguém descobriu qual era a ocupação da mãe dele, mas nunca naquela dimensão. Foram somente uns pequenos papéis e rumores dentro de poucas salas de aula, mas o professor queixava-se que aquilo estava pela escola toda e que mostrava uma tremenda falta de civismo porque pelos vistos, havia também computadores que tinham como fundo do ecrã imagens indecentes.

Tremenda falta de civismo…

Era isso que a humilhação dele representava. Nem uma só palavra no sentido de exigir um pedido de desculpas ou falar sobre punição pelos atos. Apenas falta de civismo. Como se ele não estivesse na sala, como se ele realmente não representasse coisa alguma.

Empurrou os livros e cadernos desgastados para dentro de mochila e saiu da sala debaixo dos insultos e risos dos colegas que o professor era incapaz de controlar. Ao passar por algumas pessoas, alguns desconhecidos atiraram-lhe objetos dos quais não se conseguiu desviar e ele continuou a correr, ignorando a dor nos músculos, nas articulações e lutando por segurar as lágrimas.

Quando chegou ao espaço exterior de soslaio viu uma figura conhecida. Eren estava a olhar para um dos papéis afixados na parede e embora a urgência de sair dali fosse grande, também queria falar com o moreno. Queria tentar explicar. Queria quem sabe, receber alguma palavra ou olhar de conforto que lhe dissesse que o mundo não estava mesmo a pedir que desaparecesse de vez.

– Eren… – Disse quase sem fôlego e os olhos verdes voltaram-se para ele.

Não era a expressão a que se habituou. Era um olhar seco.

– Estiveste todo este tempo a mentir-me.

– Huh? Não, eu não… eu nem sequer te falava de mim e… – Dizia com um medo a crescer dentro dele juntamente com a confusão.

– És como todos os outros, querias algo de mim.

– Não, eu não…

– És um mentiroso, Levi! Eu não quis acreditar quando ouvi todas estas coisas e fui estúpido para esperar ontem por ti como um idiota! Queria ouvir a verdade de ti, mas eles tinham razão, assim que fizeram a tua máscara cair, tu não apareceste!

– Não! – Disse com a voz trémula. – Eu não… eu fui lá mas quando cheguei, já não…

– Não sejas mentiroso! Não mintas na minha cara, eu não admito que faças isso aqui na minha cara! – Falou mais alto. – Eu acreditei, confiei em ti, seu filho da puta! Estavas a tentar manipular-me como todos os outros porque querias alguma coisa de mim! Querias o quê? Dinheiro? Um namorado que te sustentasse? Mais um pouco e terias aberto as pernas para mim, não é? Como uma boa puta, assim como a tua mãe é! Aposto que te riste muito nas minhas costas, pensando que estava a sair a sorte grande mas vais-te arrepender… – Ficou mesmo em frente a Levi e os olhos verdes deixaram escapar algumas lágrimas, enquanto as palavras continuavam. – Quem me dera nunca ter-te conhecido, quem me dera que nunca tivesses nascido… espero que desapareças, apodreças num buraco igual àquele do qual nunca devias ter saído.

Levi não respondeu após o choque inicial e ter baixado o rosto enquanto ouvia aquelas últimas palavras, caiu a ficha. A quem é que se ia desculpar? Por que razão é que tinha que se desculpar?

Já ouvi tantas mentiras antes por que razão ele seria diferente? Talvez não tenha dito uma única palavra verdadeira desde do início e eu enganei-me a mim próprio, acreditando que estava a ver algo nele que na verdade nunca existiu. Quis agarrar-me a uma última esperança para não acreditar que o mundo é só isto. Crueldade, humilhação, desespero… mentiras.

A Hanji tinha razão. Ele esteve a manipular-me desde do início. Tantos já me insultaram ou bateram, mas este foi o primeiro que tentou magoar-me desta forma e eu deixei, confiei nele. Ele nunca quis estar comigo. Para ele fui um peão num jogo em que todos brincam comigo e riem de mim. Todas as palavras, os gestos de carinho, tudo mentira. Uma grande mentira que deixou este sentimento cá dentro que agora quer matar-me por dentro… ele não disse mais do que mentiras. Ele nunca gostou de mim. Provavelmente, sempre teve nojo cada vez que me tocou e eu… eu apaixonei-me por esta mentira. Por este monstro em pele de cordeiro…”, ergueu o rosto para encarar Eren e viu o outro recuar ligeiramente.

– Aposto que se vinha declarar. – Ironizou outra voz.

– Pensavas mesmo que ele queria alguma coisa contigo, coisa nojenta? – Questionava uma voz feminina.

Alguém empurrou o adolescente, fazendo com que caísse no chão enquanto escutava mais insultos e atiravam algumas coisas na direção dele. Ainda assim ergueu a cabeça mais uma vez para encarar o moreno de olhos verdes. Não escondeu a mágoa e o ódio que sentia naquele momento, enquanto outras coisas se quebravam dentro dele. Uma pequena parte dele realmente acreditou que Eren nutriu sentimentos verdadeiros por ele, mas tudo não passava de mais um grande erro na vida dele.

Quando baixou o rosto, sentindo os olhos embaciarem-se, ouviu a única voz que entre toda aquela multidão se erguia a favor dele. Foi graças a ela que conseguiu escapar dali, mas ignorou todas as vezes que Hanji o chamou e correu. Não queria voltar. Não queria que ela o tentasse ajudar de novo. Tudo já estava arruinado o suficiente e correu sem rumo, cambaleando um pouco até que ao fim de várias horas regressou a casa e surpreendeu-se com o tio à sua espera, juntamente com a mãe. Pelos vistos, alguém a mando do tio andou a segui-lo e por isso, os dois ficaram a saber daquilo que julgavam ser essencial e que não era nem por sombras o facto de ser maltratado constantemente na escola.

– Já não bastava ser um desapontamento, ainda és uma aberração!

– Tenho nojo só de olhar para ti! Nem acredito que te chamei de meu sobrinho!

– Vais desaparecer, entendeste? Nunca mais pisas esta casa!

– O quê? – Perguntou com um tom trémulo. – Mas… mas eu não tenho para onde, mãe. Eu…

– Fora daqui! Eu não tenho filho nenhum!

– Queres que te coloque lá fora, pervertido de merda?!

Saiu somente com a roupa que tinha no corpo e a mochila nas costas sem saber para onde se dirigir, apenas sabia que não ia poder voltar. A família dele não o considerava simplesmente um desapontamento e um inútil, também o consideravam uma anormalidade por preferir pessoas do mesmo sexo. Sim, essa tinha sido a razão principal para o colocarem na rua sem pensarem duas vezes. Ainda lhe bateram uma última vez antes de o empurrarem para o abismo, que era a única coisa que conseguia ver à sua frente. Depois de caminhar novamente sem rumo, parou num canto de onde retirou o que felizmente sempre levava com ele dentro da mochila. As lâminas eram a eterna lembrança daquilo que há muito queria fazer e por isso, na noite gélida que se fazia sentir e sentado num canto mal iluminado rasgou a pele várias vezes, deixando cair várias lágrimas.

Nunca se tinha odiado tanto.

Nunca tinha amaldiçoado tanto a própria existência.

Nunca tinha desejado tanto nunca ter nascido e movido por uma urgência de colocar um ponto final em tudo, correu e repentinamente a meio de uma rua estava ela…

– Hanji? – A voz saiu fraca e embebida pelas lágrimas.

A rapariga fez uma expressão aliviada e desta vez não foi capaz de parar o abraço dela. Hanji chorava com ele, pedindo perdão por não ter sido capaz de parar tudo aquilo. Implorava por mais uma oportunidade para lhe mostrar que faria diferente e soluçou mais ao ver o sangue que escorria nos braços dele.

Só que as palavras soavam tão longínquas e ele estava cansado. Demasiado exausto para ouvir tudo aquilo e acreditar. Não queria ouvir mais nada e por isso, acabou por rasteirar a rapariga e sair a correr sem parar. Ele sabia que não estava longe e ia acabar com tudo de vez. Não ia acreditar de novo, não ia hesitar de novo, não ia cometer o mesmo erro.

Quem diria que diante da ponte, fez exatamente isso. Hesitou porque não era capaz de retirar as promessas, as palavras de Hanji na cabeça e quando pensava que estava decidido, encontrou outra pessoa... outra pessoa que lhe mostrou uma outra forma de escapar.

Marco e Hanji foram os que o viram mais perto do abismo e não o deixaram avançar, mas ainda assim, Levi acreditava que estava destinado a cair. Só estava a adiar o inevitável.

 

*_*_*_*_*_*_*_*_*_*_*_*_*

 

– Olá Armin tudo bem? – Annie atendeu a chamada enquanto regressava do ginásio à noite, estranhando que em vez de optar pela troca de mensagens, o loiro optasse por ligar.

– Acho que sim… não sei. – Admitiu.

– Aconteceu alguma coisa? Posso ajudar?

– Talvez. – Respondeu. – Viste o Levi hoje?

– Ele não costuma aparecer no ginásio ao domingo. Porquê? – Perguntou a jovem de olhos azuis, ajeitando as luvas nas mãos, visto que a noite estava bastante fria.

– Fui esperá-lo na frente do trabalho, mas disseram-me que ele não foi trabalhar… estiveste com o Eren hoje?

– Não, mas Armin…  não achas que devias perguntar diretamente ao Levi e não a mim?

– Eu sei… desculpa, é só… desculpa, não tinha com quem falar. Desculpa, vou desli…

– Hei, Armin podes contar comigo, ok? Desculpa se parecia que estava a dispensar a conversa, não é isso, ok? É só que acho que deviam conversar os dois se pensas que alguma coisa não está bem, mas isso não significa que não possas desabafar, certo? Sei que só nos vimos no evento e retomamos o contacto ontem, mas eu quero que saibas que se precisares, tens aqui uma amiga.

– Obrigado Annie.

 

*_*_*_*_*_*_*_*_*_*_*_*_*

 

Quando acordou de manhã, Eren esteve bastante tempo apenas sentado na cama enquanto via o outro ocupante movimentar-se não só pelo quarto mas também pelo apartamento. Depois do que tinha acontecido, Levi limitou-se a deixá-lo no quarto e dormiu o resto da noite na sala.

Eren não sabia no que pensar. Após aquela troca de palavras, sentiu medo como se uma coisa muito importante estivesse a escapar-lhe por entre os dedos. Guiado por esses sentimentos confusos, não deixou que Levi saísse da cama e beijou-o. Chegou inclusive a sentar-se sobre as pernas dele enquanto beijos alimentados por tantos sentimentos conflituosos seguiam-se um atrás do outro.

Existiu uma espécie de necessidade incontrolável entre eles para que os toques desesperados colocassem várias peças de roupa no chão. Não houve espaço para palavras ou hesitação, apenas dois corpos desesperados um pelo outro e os gemidos carnais que ecoaram no quarto. O prazer acima de todas as outras coisas e intocável enquanto durou. No fim, veio somente o vazio.

– Vou fechar o quarto. Já passaste aqui a noite e chega. – Disse parado na entrada.

– Levi, nós temos que falar…

– Sobre o quê? Não há absolutamente nada para falar. Já disse o que tinha a dizer ontem. – Respondeu e começou a bater o pé no chão, demonstrando impaciência. – Anda, sai do quarto. Não quero atrasar-me por tua causa.

Eren levantou-se da cama.

– Nós... – Surpreendeu-se ao ser puxado sem muito cuidado para fora do quarto.

– Estavas a demorar muito e como disse não quero chegar atrasado. – Fechou a porta do quarto à chave e voltou-se para o moreno. – Se não é pelo que disse e sim pelo resto que aconteceu, não sei do que queres falar. Estávamos com tesão e aconteceu. – Aproximou-se da porta de saída com o telemóvel na mão. – Já fizemos várias coisas antes e não significou nada por que razão agora seria diferente? Não tentes olhar para mim com pena ou fingir preocupação, Eren… ambos sabemos que não és capaz de sentir essas coisas. – E com essas palavras saiu, fechando a porta.

 


Notas Finais


Até ao próximo capítulo!


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