Capítulo XXI
O cheiro a suor e falta de banho ultrapassava de longe, o aroma das pessoas que consideravam a higiene pessoal um requisito mínimo de ser humano decente. Quando aquele veículo público não ia abarrotar de gente, ele até podia tentar procurar outro lugar onde sentar e dessa forma, escapar da indisposição que lhe causava a falta de higiene alheia. Só que infelizmente não é somente a hora de ponta que enche os transportes públicos, mas também as falhas de cumprimento de horários aumentavam exponencialmente o número de pessoas.
Porém, aparentemente não era possível estar exausto ao ponto de não sentir as pessoas a empurrarem-no, quando queriam passar por um espaço que não existia, pois estavam todos colados uns aos outros. Havia mulheres e homens equipados com sacas e outras coisas que decidiram comprar e enfiar-se num autocarro abarrotado, onde até respirar começava a tornar-se uma dificuldade. Ele perdeu a conta de todas as vezes em que o empurraram, bateram-lhe com sacas e outros objetos ou até mesmo quase saiu na paragem errada porque a onda de pessoas queria levá-lo na corrente.
“Será que não devia ter feito uma parte do caminho a pé?”, questionava, igualmente irritado porque o MP3 estava sem bateria e por isso, não podia escapar do ruído ensurdecedor das pessoas que reclamavam com o motorista devido ao não cumprimento dos horários.
Só esperava que as agressões verbais, não se transformassem em agressões físicas. Das outras vezes em que isso aconteceu, o autocarro teve que parar, a polícia foi chamada e ele chegou a casa só a tempo de cair na cama e dormir.
Quando a paragem de saída chegou, quase quis suspirar de alívio depois de ter ido enlatado o caminho todo. Ainda tinha que caminhar mais quinze minutos, talvez vinte ou mais se continuasse a arrastar-se em vez de andar num passo normal.
“Estou tão cansado que queria não sentir esta dor nas pernas, mas parece que me dói tudo. E se ligar para casa e pedir que contacte uma grua para me vir buscar?”, quase riu sozinho com os pensamentos.
Esticou os braços com a mochila de cor escura, pendurada num dos ombros. O dia tinha sido bem longo, sobretudo tendo em conta que teve que cobrir o turno do colega que fingiu estar doente pela terceira vez naquela semana. Alguém que normalmente, já deveria ter sido despedido, mas parece que ser comido pelo chefe nas horas vagas, dá direito a certas regalias.
“Acho que vou perguntar se também me posso inscrever nessas regalias”, após refletir por poucos segundos sobre isso fez um ar de nojo ”Ugh, provavelmente, apanharia alguma doença. Prefiro morrer de cansaço”.
As noites começavam a ficar mais agradáveis para caminhar. Não estava tanto frio e isso fazia com que observasse um pouco as ruas quase vazias e com a maior parte dos estabelecimentos fechados. Um em concreto sempre o fazia deter o olhar por mais alguns segundos. Era a antiga loja de tatuagens de Ymir, que entretanto também se tinha mudado para Sina para seguir a carreira da namorada que teve uma oferta de trabalho na grande cidade. Pelo que ouviu em casa, apesar de ter fechado a loja ali, Ymir abriu uma nova em Sina e tanto ela como a Historia estavam a viver uma vida confortável e feliz. Algo que parecia bem comum a todos os que saíam dali.
“Se bem que acho que nem lá, conseguiria um trabalho decente. Pelo menos, não com o meu currículo magnífico de trabalhos que me deixam morto”, concluiu com um suspiro no fim desse pensamento, “Só mesmo eles é que podem pensar o contrário”.
Procurou as chaves no bolso das calças ao avistar a pequena casa e assim que entrou, ouviu a televisão da sala e viu num dos sofás, o amigo igualmente exausto no sofá.
– Um de nós não pode morrer. – Avisou o recém-chegado a casa. – Alguém tem que fazer o jantar. – Atirou a mochila e o casaco para o outro sofá.
– Nãao… eu quero morrer de cansaço agora. – Reclamava o outro que também parecia ter chegado há pouco tempo a casa e viu o amigo juntar-se a ele no sofá, deitando a cabeça sobre as pernas dele. – Hoje não vais manipular-me.
– Não é manipulação, não imaginas o dia que tive. Fiz dois turnos outra vez. – Falava, olhando para o outro que passando a mãos nos fios loiros e longos, suspirou.
– A Annie tem razão. Devias procurar outra coisa, Eren. Estão a explorar-te.
– A Annie não vai defender nenhum de nós se chegar e o jantar não estiver feito, ela vai matar-nos aos dois. – Pôs as mãos na cara. – Deus… por que não inventaste uma oração para que comida apareça feita sem que eu tenha que me mexer?
– E se pedirmos pizza? – Sugeriu o loiro.
– Pela terceira vez esta semana? Alguém vai dormir na sala e não com a namorada hoje. – Avisou o moreno. – Armin estas podem ser as minhas últimas palavras se não fizeres o jantar.
O loiro revirou os olhos.
– Sim, sim. Prometo que coloco umas flores bonitas na tua campa.
– É suposto seres meu amigo, Armin.
– Não tenho forças para dedicar à amizade neste momento. – Suspirou. – Fazemos assim. Vamos os dois e dividimos as tarefas. É a única proposta que vais receber da minha parte. – Bateu na testa de Eren que se queixou mais uma vez, antes de um pouco contrariado entrar na cozinha com o amigo.
Como médico recém-formado, Armin julgou que teria um maior controlo dos horários. Contudo, a realidade continuava ainda longe da desejável, dado que por ser dos mais novos, recorriam a ele várias vezes para turnos extras. Em vez das consultas de atendimento geral durante o dia, chamavam-no diversas vezes para cobrir as urgências pela falta de outros profissionais disponíveis.
Tanto Annie como Eren já o tinham aconselhado a arriscar mais nas candidaturas para os hospitais privados, mas mesmo com um currículo acima da média, não era fácil entrar nesses locais sem alguém conhecido lá dentro. Alegavam sempre a falta de experiência e que ele continuava a ter uma aparência demasiado jovial, que causaria várias questões entre os pacientes. Basicamente, ofereciam-lhe qualquer desculpa para não dizer a verdade que era “Podia dar-te a vaga, mas o meu filho, primo ou sobrinho ou quem quer que seja da minha família formou-se em medicina e esta vaga privilegiada é para ele”. Portanto, Armin continuava no setor público. Contente com o que fazia, mas muitas vezes excessivamente cansado porque também abusavam da boa vontade dele.
Quanto a Annie como professora de dança era a única cujos horários eram mais toleráveis, mas ainda assim, as tarefas em casa eram divididas entre todos. Um acordo que havia entre os três depois de deixarem o apartamento pequeno, onde tiveram que viver durante bastante tempo e que obrigou Eren a continuar a dormir no sofá durante esse tempo.
Contudo, agora que os três trabalhavam, tornou-se mais fácil encontrar e pagar um local melhor e desta vez com dois quartos. Armin e Annie como namorados dividiam o mesmo quarto e Eren podia finalmente, dar um descanso às suas costas numa cama. Às vezes, olhando para aquele que aprendeu a chamar de amigo com o tempo, o moreno concluía que de facto, teve muita sorte em conhecê-lo apesar de ter demorado a reconhecer isso. Mesmo quando descobriu que Annie e ele se envolveram, Eren quis argumentar contra, mas a verdade é que não podia apontar defeitos credíveis a Armin. O loiro acabou por ter um impacto importante na vida dele e também de Annie. Caso contrário, a relação entre eles teria ficado sempre tremida e talvez fosse mais difícil ultrapassar tudo o que aconteceu e as perdas que tiveram.
– Amanhã eu e a Annie vamos contigo. – Disse Armin enquanto provava o tempero da comida com o moreno a retirar do armário do lado alguns pratos. – Tirámos o dia de folga.
– Eu disse que não preciso. – Falou Eren com uma expressão inconformada. – Aproveitem para ir ao cinema, passear ou qualquer coisa.
– É uma decisão nossa, Eren. Não podes impedir-nos. – Sorriu. – Já está decidido.
– Vocês é que sabem. – Disse por fim. – Ir ao cemitério não parece um grande plano.
– Vamos os três visitar a tua mãe, Eren. Nada do que tu digas vai mudar isso e além disso, depois podemos ir os três ao cinema.
– Não quero interromper o casalinho quando estiverem a absorver-se ao meu lado. – Eren revirou os olhos e sentiu um beliscão do amigo no braço. – Ai!
Carla Jaeger escondeu até aos últimos dias em que recebeu a visita do filho no hospital, que estava doente. Quando ela tomou a decisão de retirá-lo de casa e colocá-lo no mundo para aprender a lidar com a vida sozinho, não o fez somente por capricho de mãe que sabia que tinha falhado na educação do filho. Também fez isso porque na altura, tinha sido diagnosticada com uma doença em que não sabia quais eram as chances reais de sobrevivência. Ela não sabia se iria vencer aquela batalha e parte dela não acreditava que depois de passar anos a afastar o filho, merecesse a preocupação dele. Em consequência disso, manteve-se distante e ausente, passando a ideia de que não queria saber o que acontecia na vida do moreno, quando na verdade estava em sessões de tratamento.
Eren só soube a verdade quando recebeu uma chamada do hospital. A mãe pediu para vê-lo e ele nunca esperou encontrá-la tão frágil, tão diferente do que recordava. Ele quis sentir raiva por ela ter escondido uma coisa daquelas, mas Armin convenceu-o a não alimentar esses sentimentos e a despedir-se da mãe com amor e o carinho que ela precisava. Disse-lhe também que ele estava a ter uma hipótese de se despedir e que muitos não tinham isso. Acrescentou também que Eren podia não ver a importância disso naquele momento, mas iria conseguir ver isso mais tarde.
Ele não quis admitir, mas o loiro tinha razão. Apesar de tudo, ele ficou feliz por ter a oportunidade de se despedir e nem mesmo, o facto de ela ter doado todo o dinheiro a instituições de caridade mudou isso. Afinal de contas, ele prometeu que iria tentar ser e fazer diferente. Encontrar de novo dentro dele, aquela pessoa de quem a avó dele tanto se orgulhava e que se tivesse vivido mais tempo, com certeza teria lutado com unhas e dentes para não o deixar cair em todas as coisas erradas que fez.
– Já pensaste no que falámos há umas semanas? – Veio a pergunta de Armin ao fim de algum tempo.
– Vocês podem ir para onde quiserem.
– Eren haverá mais e melhores oportunidades de emprego em Sina. – Argumentava o loiro com o avental a cobrir a roupa de tons claros e uma mão na cintura.
– Quem recebeu a oferta de trabalho foste tu, Armin. Eu entendo que a Annie também vá e tenho a certeza que os dois vão ser bem-sucedidos, mas Sina… Sina não é para mim.
– Sabes que isso não faz sentido e que tens mais hipóteses lá. Não porque o teu pai está lá e também não podes continuar a fugir para sempre do…
– Eu desenrasco-me, Armin. – Respondeu o moreno, saindo até à sala para acabar de pôr as coisas na mesa e deixando o loiro com mais um suspiro.
Eren sabia perfeitamente quem teria conseguido aquela oferta de trabalho irrecusável para Armin, que incluía alojamento numa parte privilegiada da cidade e que certamente, facilitaria a vida de Annie para encontrar trabalho. Os dois amigos ainda mantinham contacto com Ymir, a professora Historia e claro, Levi. Aparentemente das vezes em que o foram visitar, Annie e Armin conheceram outras pessoas, mas o moreno não fazia perguntas. O moreno dizia simplesmente não querer saber o que estava a acontecer em Sina. A única coisa que alguma vez perguntou na primeira vez que os dois amigos foram a Sina, foi se Levi estava melhor ao que os dois responderam algo nas linhas de “Está diferente”. Não pediu detalhes, embora as empresas administradas pelo empresário Erwin Smith acabassem nas notícias com alguma frequência. Portanto, mesmo que tentasse não saber muita coisa acerca de Levi, acabava sempre por ouvir alguma coisa.
Eren leu ou ouviu falar de várias coisas que não queria saber, mas fugir da informação numa época em que esta parecia espalhar-se por todo o lado como o próprio vento não era fácil. Quando se referia as coisas que não queria saber, não era que lhe desejasse mal mas ao mesmo tempo, culpava-se pelo modo como tudo aconteceu e por não poder ser ele a…
– Cheguei meninos! – Anunciava Annie com os cabelos presos e um pouco molhados, pois deveria ter tomado banho antes de regressar a casa. Deixou o saco desportivo perto do sofá e entrou na cozinha, encontrando os outros ocupantes da casa.
Sorriu para Eren e depois de puxar a manga de Armin, este inclinou-se ligeiramente para receber um breve beijo da loira.
– Argh, não comecem com o romantismo à minha frente de novo. – Reclamou o moreno.
– Não sejas ciumento, Eren. – Apontou Annie. – Confesso que esperava ver os dois a morrer no sofá e a discutir sobre quem iria fazer o jantar.
– Já ultrapassámos essa fase. – Comentou Armin.
– Ele está a mentir. Tivemos esse momento, mas ele concluiu que não queria dormir na sala e assim como eu tem medo de morrer.
– O que significa que estão bem treinados. – Brincou a loira. – Ainda precisam de ajuda?
– Não, é só sentar e comer. – Respondeu Armin sorridente enquanto a namorada colocava uma das mexas do cabelo dele atrás da orelha. – Se calhar, devia cortar.
– Eu gosto dele assim longo. Gosto de puxar…
– Ainda estou a ouvir. – Relembrou Eren, revirando os olhos e ouviu os amigos rir.
Eren sabia que faziam esses comentários de propósito, mas ainda assim não podia dizer que quisesse trocar aqueles momentos. Desde que passou a viver com eles, momentos tão simples como poder sentar-se a uma mesa e ter uma refeição com outras pessoas passou a ser uma coisa normal. Mesmo com o trabalho e horários insanos de algumas semanas, todos se esforçavam por não perder momentos em que pudessem simplesmente estar na companhia uns dos outros.
Era um desejo simples e que preenchia um vazio que Eren esquecia que teve durante tanto tempo, sempre que olhava ao seu redor e via os dois loiros a rirem com ele à mesa.
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Por força do hábito e porque era um presente do namorado, os olhos verdes procuraram mais uma vez o ecrã no pulso. O relógio indicava que faltava pouco tempo e portanto, observou o seu reflexo numa das portas de vidro. O cabelo impecável e preso num rabo-de-cavalo, a blusa branca de meia manga bem passada, a saia preta e curta com os dois pequenos cortes e os sapatos de salto alto. Estes que ecoaram novamente pelo corredor, onde dentro de inúmeras salas diversos trabalhadores proporcionavam vida aquele edifício imponente.
O Tablet encostado ao peito emitiu o som de notificação e a mão tocou no ecrã e em seguida, ajustou o pequeno auricular quase invisível enquanto ela continuava a caminhar rumo aos elevadores.
– Senhorita Magnólia?
– Algum problema, Petra? – Questionou. Aproveitando para consultar mais uma vez a agenda daquele dia e reencaminhar um dos emails recebidos para o departamento correto.
– Não sei se devia, mas deixei passar uma mulher que…
– Ah, eu vi quem era. – Interrompeu subitamente mais descansada, pois julgou que por momentos, estivesse a surgir algum imprevisto grave.
– Mas o Sr. Smith disse que não queria ser incomodado em circunstância alguma e hoje sei que há a reunião. – Dizia com um tom trémulo.
– Calma, Petra. Ela tem autorização para passar e para o Sr. Smith, essa visita nunca seria um incómodo. – Pressionou o botão para chamar o elevador.
– Mas pensava que isso aplicava-se mais à Dra. Zoe.
– Não é a única e espero que tomes nota disso. Era só esse problema?
– Ah sim…
– Ótimo, agora tenho que ir. Não te esqueças dos inquéritos. O departamento de marketing está à espera deles. – Esperou uma resposta positiva e desligou, enquanto abria um pequeno chat no ecrã para digitar o seguinte:
«Quinze minutos até à reunião. Vou levar os tubarões pelo percurso mais longo e acomodá-los».
A resposta não tardou.
«Obrigado, Isabel».
Sorriu com a resposta enquanto via o elevador finalmente chegar e reparava que tinha outra chamada pendente. Deslizou o dedo no ecrã e por hábito, ajustou novamente o auricular.
– Como estão a correr as coisas? – Perguntou ela.
– Fantásticas, princesa. A Universidade de Sina é mesmo uma coisa de outro mundo, mas bastante concorrida. Ainda vou ficar mais algum tempo por aqui. Achas que a Sasha consegue não dar diabetes à pequena enquanto não chego?
– Esperemos que sim. – Disse divertida. – Fico feliz que esteja tudo a correr na Universidade.
– Vão inclusive deixar-me assistir a algumas aulas e falaram-me várias formações que posso fazer enquanto o curso não começa, mas não sei o que fazer. Não queria deixá-lo na mão.
– Ele disse para não te preocupares e além disso, já vai sendo altura de encontrarmos uma baby-sitter nova. Assim que a reunião com os tubarões terminar, vou tentar tocar no assunto de novo e convencê-lo que não podemos reorganizar a agenda dele eternamente, sobretudo com o grande dia a chegar.
– Boa sorte com isso, Isa. Vais precisar.
– Tudo controlado.
– Como sempre. – Ouviu a voz do outro lado.
– Vá, agora tenho que ir. O jantar continua nos planos?
– Não cancelo planos com a minha princesa.
– Vá, deixa-te de lamechices, Farlan. Até logo.
– Até logo e boa sorte!
Desligou a chamada e consultou mais uma vez os emails e outras informações no ecrã. Uma delas fez o dedo dela parar e viu pelas imagens das câmaras de segurança que o grupo acabava de chegar e estava a subir as escadas em direção à porta do edifício.
“Como sempre o meu timing será perfeito”.
Fechou essa página com a visualização das câmaras de vigilância do exterior e saiu do elevador, que ficava praticamente de frente à porta por onde acabavam de entrar o grupo de homens. Todos trajavam roupas formais e todos numa faixa etária que com certeza, colocaria alguns entraves para entender todos os avanços que a empresa tinha alcançado.
“Todos na faixa dos quarenta para cima… hum, espero que saibam o que é um Tablet pelo menos”, fechou a ficha de informação geral dos empresários que tinha no ecrã, colocando um sorriso bem profissional, “Está na hora das apresentações”.
– Sejam bem-vindos à Survey Corporation. O meu nome é Isabel Magnólia e como assistente administrativa do Sr. Smith vim recebê-los e garantir que todos são acomodados da melhor forma antes, durante e após a reunião. Queiram seguir-me, por favor.
No interior do elevador que era espaçoso o suficiente para que acompanhada dos 6 homens, que na grande maioria não tinham cuidado com o excesso de peso, Isabel pudesse ainda assim estar bem à vontade à medida que cumprimentava pessoalmente cada um deles.
– Parece bastante jovem.
– É gentil da sua parte. – Sorriu, desviando o olhar para o ecrã e depois novamente para os empresários. – Queiram indicar-me o que desejam beber ou comer. Tudo será disponibilizado assim que chegarmos.
À medida que iam dizendo o que queriam beber, maioritariamente café, a jovem mulher notou que um dos homens estava mais próximo do que deveria. Pelo espelho que havia no interior do elevador também era claro uma mão indiscreta tentava aproximar-se.
Contendo a vontade de revirar os olhos, baixou o tom de voz e voltando-se repentinamente para o homem, disse:
– Eu não faria isso. Há câmaras de segurança aqui e o meu chefe provavelmente, estará a ver. O meu namorado é do tipo que lhe daria um murro, mas o meu chefe é do tipo que lhe arrancaria os olhos. – Vendo o ar pálido na cara do homem, sorriu e acrescentou. – E vai desejar açúcar no seu café, Sr. Mendes?
– Si…sim.
“Velhos pervertidos”, pensava enquanto verificava que todos os pedidos já estavam a ser preparados. Aproveitou para enviar outra mensagem a avisar que estavam a chegar à sala da reunião e respondeu a mais dois emails dos departamentos que supervisionava.
Quando se encontravam cada menos distantes da sala de reunião, lançou um olhar a Petra que assentiu e depressa entrou numa das portas laterais. Era uma das funcionárias mais recentes da empresa, mas estava a fazer todos os possíveis para aprender o mais depressa possível interpretar os olhares da sua chefe. Sim, Isabel Magnólia na ausência do Sr. Smith assegurava-se que tudo continuava a correr sobre rodas e mesmo com ele presente, muitos já diziam que desempenhava um papel fundamental no bom funcionamento da empresa.
Contudo, para Petra, habituar-se ao ritmo e às pessoas com quem trabalhava não era tão fácil, visto que mesmo que existissem pessoas assustadoras que exigiam o cumprimento impecável das ordens, por alguma razão, também existiam pessoas como…
– Por Deus Connie, o que é isso? – Perguntou Petra ao entrar no departamento de marketing e ver que no ecrã do colega em vez de trabalho, estava num site a pesquisar por bares em Sina. – Não disseste que eras casado?
– E sou, mas não estou à procura de bares por essas razões.
– Não devias estar a trabalhar? E se a senhorita Magnólia…
– Podes chamá-la por Isabel. Ninguém te vai crucificar nem mesmo ela. – Corrigiu Connie, chamando a colega para se acercar do computador dele. – Andamos todos muito stressados com a apresentação que está para breve, mas também temos que comemorar, não achas? Tudo tem saído perfeito.
– Não devíamos deixar isso para depois da apresentação? – Perguntou a mulher, verificando pela centésima vez que a roupa continuava elegante e sem qualquer defeito.
– Podemos e devemos festejar antes também. Anda tudo tão tenso que acho que merecemos.
– O Connie tem toda a razão!
Petra levou a mão ao peito, mal contendo o grito de susto ao ouvir a voz demasiado alta invadir a sala.
– Dra. Zoe, por favor, fale um pouco mais baixo. A reunião vai começar em breve.
– A sala de reuniões é insonorizada. Podemos fazer uma festa neste preciso momento e o chefe nunca vai saber. – Sorriu com uma das mãos nos bolsos de uma bata de cor cinza claro e um Tablet na outra que estava a desaparecer, pois tinha papéis sobre o ecrã.
Petra nunca entenderia por que razão alguém que era considerado um génio não abraçava por inteiro a tecnologia, insistindo em acompanhar-se de papéis para as suas anotações. Acerca disso, Petra e outros funcionários tinham indicações claras para que caso encontrassem alguma folha perdida da Dra. Zoe deviam levá-las imediatamente até ao departamento da mesma.
Com uma série de cursos, onde se incluíam o Doutoramento em Biologia Computacional que consiste em métodos computacionais, matemáticos e estatísticos, e de conceitos biológicos, bioquímicos e fármaco-clínicos, a Dra. Hanji Zoe era conhecida como uma cientista de renome e que até onde Petra sabia, participou ativamente no novo projeto que seria apresentado em breve.
Todos os génios têm fama de ter alguma excentricidade e a Dra. Zoe não era exceção à regra.
Petra estava habituada a ver a cientista sempre de cabelo preso, mas hoje trazia um imenso conjunto de tranças. A funcionária não conseguia imaginar, onde a mulher com um pequeno risco de caneta na bochecha esquerda teria tempo para ir ao cabeleireiro. O facto é que várias pessoas já a tinham aconselhado Petra a não chocar-se com cada insanidade, caso contrário a adaptação seria mais complicada.
– Escolhe este, Connie! Tem karaoke!
“A Isabel disse que contava comigo para ajudar a controlá-los, mas eu não sei até que ponto sou capaz de fazer uma coisa dessas”.
– E achas que ele também alinha?
– Tu não te preocupes com nada. – Garantiu a Dra. Zoe. – Eu trato dessa parte. O Lee não sabe dizer-me que não.
– Mas ainda não há muito trabalho a ser feito? – Perguntou Petra preocupada.
– Ele está sempre com muito trabalho. – Descartou, revirando os olhos. – Por isso mesmo, cabe-nos a nós, os amigos, fazê-lo visitar a realidade de vez em quando. Também estás convidada, Petra e se queres impressionar, traz saias mais curtas.
A funcionária corou quase até à ponta dos cabelos e tanto Connie como Hanji riram com a reação.
– Quanta diversão, estão a divertir-se nas minhas costas? – Uma voz feminina veio da porta.
“Ó meu Deus, é a mulher de antes. Como é que vou controlar o barulho agora?”, questionava Petra cada vez mais preocupada e com a certeza, que acabaria por ter alguma síncope a trabalhar naquele local.
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As temperaturas mais primaveris e o sol no céu ajudaram a colocar alguma boa disposição no rosto do moreno. Isso não era só porque não tinha que trabalhar naquela manhã, mas também porque não queria ter tirado os amigos da cama num dia de chuva, como aconteceu em vezes anteriores. Ainda que tirar da cama não era correto, eles simplesmente fizeram questão acompanhá-lo em ocasiões anteriores.
Como também era habitual, o local estava quase vazio à exceção de duas senhoras de idade já de saída. Na primeira vez que entrou ali, Eren recordava-se de quase sufocar. Os seus pulmões recusaram-se a puxar o ar para dentro e as pernas não queriam mexer-se. Como se respirar e avançar em frente representasse mais uma realidade que não queria enfrentar.
Felizmente Armin e Annie estavam com ele e cada um do seu lado fizeram-no entrar, acompanhar a cerimónia fúnebre bem mais simples do que seria de se esperar. Carla não reservou uma quantia muito elevada para isso, mas como sempre, precaveu-se para aquela eventualidade quando viu que o seu estado de saúde tinha piorado. Outra surpresa era a mãe não ter ficado em Sina para receber tratamento nos últimos meses de vida e nem ter escolhido esse local para a sua última morada. Quem sabe isso também tenha contribuído para uma cerimónia mais simples e com menos pessoas presentes.
– Olá mãe. – Murmurou, abaixando-se diante da sepultura, deixando algumas flores.
Atualmente já entrava naquele cemitério sem sentir como se o chão fugisse debaixo dos pés. Admitia também que isso se tornava mais fácil, quando não estava sozinho. Agradeceu mais uma vez a companhia dos amigos que respeitaram como era habitual, o silêncio do moreno por um longo tempo. Ele sempre visitava na mesma data ou quando sentia que precisava daquela espécie de conforto. Era estranho encontrar conforto numa coisa assim, mas teve vários momentos em que hesitou, em que questionou e quis cair de novo mas parar ali por algum tempo ajudou. Quando isso não funcionava, sabia que podia contar com os melhores amigos e isso manteve-o forte para enfrentar as tentações do caminho fácil e as dificuldades depois de escolher o rumo mais complexo, mas sem dúvida mais recompensador.
Contudo, isso não significava que as coisas não estivessem prestes a mudar de novo. Quando Eren pensava que estava finalmente moldado a uma rotina, veio a notícia da oferta de trabalho a Armin, que por consequência direta também faria com que Annie se mudasse com ele para Sina. Porém, o casal opunha-se por completo à ideia de deixar o moreno para trás.
Também Eren queria convencer-se que não havia problema algum em ficar sozinho e desenrascar-se, mas a verdade é que sabia as dificuldades que teria quando tivesse que sustentar sozinho um apartamento ou casa, pois teria que mudar-se, mas acima de tudo, lidar novamente com a solidão. Apegou-se tanto aos amigos que acabou até por impedir que outros entrassem muito na vida dele e por isso, sabia que mesmo os colegas de trabalho não iriam compensar aquele vazio. Não iriam estar à espera dele para alguma refeição ou conversar até altas horas da noite enquanto viam vários filmes ou séries. O companheirismo, a amizade, a união que lhe deu força nos últimos anos iria desmoronar como um castelo de cartas e isso, assustava-o. Muito mais do que queria admitir.
Podia até esconder isso atrás das mudanças de assunto ou sorrisos habituais, mas não podia esconder-se da ansiedade que o preenchia cada vez que se deitava na cama e pensava como tudo iria mudar de novo.
– Não vamos aceitar um “não” como resposta, Eren. – Insistia Annie.
Assim que os três deixaram o cemitério, veio novamente a conversa da qual o moreno não podia fugir nos últimos tempos. Era como se fosse uma assombração e mesmo estando tão próximos da mudança, não paravam de tentar convencê-lo a mudar-se também para Sina.
Eren sabia que teria outras oportunidades. Não havia argumento possível contra isso. Encontraria mais trabalho e melhor remunerado, mas voltaria a vê-lo de novo. Seria impossível continuar a ignorar a existência de Levi, dado que este último manteve uma relação próxima com os amigos.
– Não podes fugir para sempre e nem é saudável. – Argumentava Armin. – Além disso, como tu próprio vais poder ver com os teus olhos, as coisas estão diferentes.
“Ele está diferente, eu sei. Já ouvi várias vezes isso, mas eu também estou diferente e mesmo assim, sei que não tenho o direito de aparecer de novo na vida dele. Antes talvez até pudesse aparecer como se nada tivesse acontecido ou até como se nem o conhecesse, mas agora…”.
– Tomei a decisão de fazer a minha vida aqui.
– Não, Eren. – Negou Annie. – Ao longo deste tempo em que estivemos os três juntos, tomaste várias decisões erradas e outras certas, mas ficar aqui? Fugir de Sina a ponto de nem quereres ir visitar a campa da Mikasa? Essa foi uma decisão que fizeram por ti e tu aceitaste.
– Ela tinha razão, eu não…
– A Annie tem razão. – Concordou Armin. – Se tu não quisesses vir para Sina porque tens boas perspetivas de emprego e vida por aqui, se fosse uma decisão tua, nós aceitaríamos. Com dificuldade, mas até acabaríamos por aceitar, mas tu estás com medo. Estás a pôr o teu medo acima de todo o resto. Queres prejudicar-te por causa desse medo, por causa de uma decisão que fizeram por ti. – Antes que o moreno pudesse responder, ergueu a mão indicando que ainda não tinha acabado de falar. – Escuta, eu sei perfeitamente o que a Hanji fez e disse naquele dia. Nós os três sabemos. Estávamos lá, mas não podes guiar o resto da tua vida baseado naquele momento ou em tudo o que de errado fizeste no passado. Tens que dar um passo em frente e nada te obriga a conviver com ele, com a Hanji ou com outras pessoas. Sina é enorme. Vais ser livre de fazer as tuas escolhas e se concluíres que lá não é o teu lugar, então podes voltar. Nós não te vamos impedir… a única coisa que te vamos impedir de fazer é isto: nem sequer tentar. Isso não vamos permitir.
– Exatamente. – Concordou a loira. – Portanto, vai avisando no teu trabalho que vais de viagem connosco e se tudo correr bem, não voltas. Entendido?
– Vou pensar nisso. – Respondeu, descartando os protestos dos amigos e dizendo que já tinha uma mensagem no telemóvel a chamá-lo para trabalhar. Teve inclusive que mostrar-lhes a mensagem para não pensarem que era simplesmente um pretexto para fugir da conversa.
“É das poucas vezes que fico contente que me tenham chamado para trabalhar antes da minha hora de entrada. Não consigo argumentar com eles quando estão em modo casal perfeito…”, suspirou, apressando os passos até à paragem de autocarro, “Eles não entendem. A Hanji pode ter feito aquela decisão por mim, mas foi a melhor coisa que podia ter feito. Ele precisava de ficar longe de pessoas tóxicas como eu”.
Ao entrar no autocarro que acabava de chegar, Eren viu mais um dos cartazes de publicidade a anunciar mais um projeto da Survey Corporation que prometia revolucionar o mundo a vários níveis. Ele não duvidava que isso fosse possível. Aliás, tinha a certeza de que o projeto misterioso iria mesmo ter um impacto na vida das pessoas e seria algo positivo, assim como Levi tinha sido na vida de outras pessoas… mesmo antes de toda aquela mudança para Sina.
– Porquê? Porquê? – Perguntava Eren irritado ao lavar o mais depressa possível a montanha de pratos acumulados na cozinha de um restaurante que enchia rapidamente. – Não sabiam ter despedido aquela inútil depois de ela lavar esta merda?!
– O Shadis perdeu a cabeça quando encontrou a larva na salada preparada pela miúda nova e nem pensou nas consequências. – Dizia a colega de trabalho de cabelos ruivos presos e colocados debaixo de uma touca branca.
– O Shadis precisa é de…
– Eren, por favor, filho vamos guardar os insultos para…
– Mais um prato especial! – Ouviram Shadis, o dono do restaurante dizer na porta da cozinha.
– Puta que os pariu a todos. – Murmurou Dona Clara, a cozinheira de tentava manter a ordem, mas também não concordava com aquele caos em que havia demasiado trabalho para poucos trabalhadores.
Eren e a colega de cabelos ruivos e pequenas sardas no rosto trocaram um olhar divertido.
– Eren viste quem estava no restaurante quando entraste? – Perguntou a colega.
– Não. Achas que vi alguma coisa enquanto o Shadis gritava para eu correr para a cozinha? – Ironizou, despachando mais alguns pratos e copos.
– O teu admirador, o Thomas, está lá sentado de novo.
– Ahh… porquê? – Questionou irritado. – Eu já disse que não estou interessado! O que quer que faça? Use um cartaz a dizer que não?
– Coitado do rapaz. – Disse a Dona Clara à medida que retirava algumas batatas fritas da fritadeira e distribuía por vários pratos. – Ele parece boa pessoa. Talvez devesses dar uma oportunidade.
– O amor podia ajudar a acalmar o teu temperamento. – Sugeriu a colega e o moreno revirou os olhos.
– Hannah nem toda a gente quer estar a comer-se pelos cantos como tu e o Franz ou pensas que me esqueci do dia em que vos encontrei na casa de banho dos fundos? Sei perfeitamente que não estavas a ajeitar o fecho das calças dele.
– Eren! – Repreendeu a jovem bem ruborizada.
– Amor é amor desde que o Shadis não veja. Estás safa, pequena. – Comentou a Dona Clara. – Franz, os pratos especiais estão aqui! – Avisou, acenando ao colega que servia as mesas. – E se não for amor, Eren, meu querido, tu precisas de libertar toda essa tensão antes que…
Um dos pratos caiu ao chão e Eren praguejou e Shadis como uma assombração que ouvia tudo e todos entrou de rompante na cozinha apertada.
– Jaeger outra vez com as mãos de manteiga?
– Peço desculpa. – Disse entre os dentes. – Como vê, estou um pouco stressado com tanto trabalho.
– Menos conversa e mais trabalho! E só vieste tu? Onde está a Carolina?
– A apresentar queixa no tribunal de trabalho por exploração. – Murmurou o moreno.
– O que foi que disseste?
– Nada, chefe. – Respondeu Eren num tom mais alto. – A Carolina hoje tem folga e acho que tinha uma consulta no médico.
– Todos uns inúteis! – Reclamou Shadis antes de sair e tanto a Dona Clara como Hannah riram baixinho.
– Um dia destes ele vai ouvir os teus comentários. – Avisou Hannah.
– E despedir-me? Aquele homem não vive sem mim. Quem mais aceita ser explorado desta forma? – Perguntou Eren e de certa forma, sentiu-se um idiota por estar quase a elogiar-se a si, baseado no masoquismo dele para ser explorado.
“O Armin tem razão. Os meus auto-elogios às vezes, mais parecem auto-insultos”.
– Eu já sou burra-velha e não tenho muito mais sítios que me aceitem, mas vocês ainda são jovens. Deviam procurar coisa melhor. – Dizia a Dona Clara que com os seus cinquenta e poucos anos, cabelos que se dividiam entre o castanho e alguns grisalhos, acabava de aprovar as saladas preparadas por Hannah.
– Acredite, Dona Clara, eu não tenho assim tantas opções com esta vontade que sinto todos os dias de saltar para cima de uma das mesas e esganar os clientes.
Tanto ela como Hannah riram, ainda que às vezes até mesmo elas esperassem que um dia desses isso acontecesse. Até mesmo Franz comentou que o moreno devia receber um prémio pelo seu autocontrolo porque havia dias que tinha a certeza que Eren acabaria por bater em algum dos clientes.
Contudo, Eren sabia que não podia dar-se ao luxo de perder aquele trabalho, principalmente com a mudança eminente de Armin e Annie que lhe retiraria a possibilidade de dividir as contas. Ele podia reclamar das horas extras e de todas as funções que era obrigado a desempenhar, apesar do seu contrato dizer que só ali estava como copeiro, ou seja, ocupar-se da loiça. Só que além de ajudar a confecionar alimentos, também limpava e em dias agitados como aquele, acabaria também a atender as mesas com Franz. O salário não era muito alto e além das funções, os horários eram sempre incertos, mas o dia de pagamento era sempre certo e não falhava. Algo que Eren descobriu que não era assim tão fácil de encontrar depois de várias experiências falhadas no passado.
Depois de Levi partir para Sina com Erwin e Hanji, o apartamento dele ficou para trás assim como as contas e todas as coisas com as quais Eren não estava preparado para lidar. Então, Annie provando mais uma vez ser das poucas pessoas que estava disposta a ficar do lado dele, mudou-se para o apartamento com ele depois de convencer o senhorio. Porém, ela deixou bem claro que não iria sustentá-lo nem dar-lhe a vida de rei a que ele estava habituado e que se quisesse continuar a receber a ajuda dela, teria que trabalhar. Não lhe deu opção e apesar das discussões, ele entendeu que precisava ter vergonha na cara e procurar alguma coisa.
Os primeiros tempos foram terríveis porque nem sequer o chamavam e depois de ter faltado tanto à Universidade, perdeu o acesso à mesma e foi também nessa altura que ouviu de Pixis que a história da transferência nunca iria acontecer. Eren ainda pensou que podia dar a volta por cima, mas estudar ou sequer formar-se naquilo que queria, nunca aconteceu. Em vez disso, teve que dividir-se entre as dezenas de trabalhos que em várias ocasiões o mandaram embora sem pagar após algumas horas ou ao fim de umas semanas disseram que o “período experimental” tinha terminado e que como era experimental não seria remunerado. Também foi despedido várias vezes pelos problemas ao lidar com clientes. Todos os trabalhos passaram por cafés, alguns de obras, outros só de limpeza (e mesmo aí conseguiu ser despedido por discutir com alguém) e ao fim de tantas tentativas falhadas, encontrou o restaurante de Shadis. O homem não queria saber da experiência ou do passado profissional repleto de falhas, apenas queria alguém que estivesse disposto a trabalhar.
Posteriormente já com Armin a viver com eles, desta vez noutro apartamento um pouco maior, mas ainda não ideal para três pessoas, Eren era o único que na altura ainda continuava com demasiadas incertezas quanto ao manter um trabalho. Annie conseguiu formar-se no que queria entre um trabalho e outro e Armin mesmo a estudar algo tão exigente como medicina também mantinha um part-time num café. Portanto, o moreno decidiu que não podia falhar e graças a isso, estava há quase três anos naquele restaurante a ser explorado diariamente, mas com um salário fixo e que nunca falhava.
– Eren.
– O que vai ser? – Perguntou o moreno com o bloco de notas na mão e contendo a vontade de atirar a caneta que tinha na mão na direção do cliente que tinha à sua frente.
– Será que hoje podemos sair quando acabares de trabalhar?
– Thomas, eu não tenho tempo para isto. Podes não ter reparado, mas o restaurante está cheio. – Disse Eren num tom que demonstrava que estava a tentar controlar a raiva.
– Quero o de sempre, mas prometes que pensas na minha proposta?
– Não, Thomas.
– Vá lá, Eren aquilo do outro dia foi…
– Trago o pedido em seguida. – Cortou, distanciando-se da mesa e regressando à cozinha. – O de sempre para o pinga-amor, dois de frango com batatas fritas, um de filetes de pescada e uma saladinha para a gorda ao fundo do restaurante.
Novamente alguns risos.
– Eren, um dia a mulher vai ouvir. – Avisou a Dona Clara.
– O que foi? É alguma mentira? Vem aqui o ano todo e come toda a porcaria de fritos e cheios de molho, começa a chegar a primavera e o verão e lembra-se que tem que emagrecer para tentar conter as banhas no biquíni. – Abriu o congelador, retirando as batatas congeladas. – Vou ajudar a preparar antes que o Shadis venha aqui dizer que estamos a demorar muito.
– És um anjo, Eren. – Disse Hannah.
– Nada disso, logo estou à espera que me ajudes a esfregar a gordura da cozinha. – Disse o moreno e a colega revirou os olhos.
– E o Thomas? Aceitaste sair com ele? – Perguntou Hannah curiosa.
– Não, não vai acontecer. – Respondeu e logo se arrependeu de não ter mentido, pois viu novamente a expressão dela bem pensativa e a alimentar a paranoia.
Quando Eren chegou ao restaurante já lá estava a Dona Clara, Franz e Hannah. Eles eram o trio que jamais abandonava o barco independentemente do trabalho que houvesse. Outros funcionários foram e vieram com o tempo e há quase três anos, Eren passou a fazer parte desse núcleo forte. Desde do primeiro dia, Hannah apresentou Franz como marido. Os dois eram jovens, até um pouco mais do que ele, mas assim que terminaram o secundário, casaram e saíram de casa.
Eren não imaginava que ainda houvesse pessoas que quisessem compromisso tão cedo na vida, mas não fez comentários sobre isso ou mesmo acerca da forma como simplesmente não pensavam sair daquele restaurante porque dessa forma, podiam trabalhar juntos. Ele recordava-se de ter trocado um olhar com a Dona Clara que suspirou, abanando a cabeça em sinal de desaprovação, mas conformismo porque pelos vistos, nada do que dissesse mudava a opinião de Hannah. Sim, Hannah. Ela praticamente decidia tudo na relação e não é que Eren não reparasse que Franz gostava dela, mas em algum ponto da relação, as inseguranças e possessividade de Hannah fizeram com que se encontrassem presos àquele trabalho porque dessa forma, podiam passar todo o tempo juntos e assim, proteger-se caso alguém quisesse interferir na relação deles.
O moreno ainda recordava quando numa brincadeira qualquer com Franz, acabou por fazer algum comentário que qualquer outra pessoa veria como uma piada, mas Hannah desde então questionou se Eren tinha interesse por pessoas do mesmo sexo. Até àquela altura, ela via sobretudo as clientes do sexo oposto interessadas nele e por isso, só naquele momento ele admitiu que as preferências não se limitavam a mulheres.
“Tenho a certeza que até hoje continua com medo que lhe roube o Franz”, concluiu enquanto lavava mais alguns pratos e ouvia Shadis berrar de fundo, dizendo que ele precisava de lavar a loiça ao mesmo tempo que atendia as mesas.
– Sim, estou quase a dominar a técnica da multiplicação. – Ironizou.
Fossem homens ou mulheres, Eren não queria nada sério com ninguém. Isso não era muito diferente do seu passado, pois chegou a sair com algumas pessoas ao longo do tempo. Inicialmente, recusou sequer pensar em estar com outra pessoa e depois quando achou que talvez devesse arriscar, descobriu que tudo tinha um prazo de validade. O que ditava isso? Falta de interesse? Tempo? Não. Falta de dar mais um passo que a certa altura, todos esperavam: a intimidade.
Para ele que sempre gostou da parte sexual das relações, nunca mais nada foi o mesmo depois daquela espécie de relação que teve com Levi. Aliás, ele foi o único com quem teve alguma coisa depois do que aconteceu com Jean. A intimidade com alguém em que não pudesse confiar totalmente ou que não conseguisse tirar da cabeça dele os toques forçados e a dor insuportável, não funcionava. Nada funcionava e acabava por terminar tudo, assim que começavam a exigir-lhe que investisse mais na relação. Ele não era capaz, mesmo que pudesse controlar a situação, a ideia de tocar e deixar-se tocar tão intimamente por outra pessoa não encaixava na cabeça dele.
E quem é que queria aceitar isso? Quem é que acreditava nisso? Havia quem o conhecesse de antes e achavam que estava somente a fazer-se de difícil. Tanto homens como mulheres não estavam dispostos a ficar com ele por muito tempo sem que houvesse um envolvimento físico que fosse além dos toques e beijos. E ele? Ele também desistia com demasiada facilidade de tentar e Armin já lhe tinha dito que isso acontecia com a falta de outro tipo de sentimentos e incentivava-o a abrir-se para alguém que considerasse especial.
Eren chegou a pensar que Thomas pudesse ser essa pessoa. Afinal de contas, começaram por sair apenas para tomar café, um cinema ou mesmo ver filmes na casa dele apenas como amigos. Thomas contava-lhe várias coisas acerca do trabalho dele, amigos, da vida dele e Eren mostrava-se sempre um pouco mais receoso, mas contava pequenas coisas. Thomas parecia um novo amigo, aparentemente respeitador e sempre disponível para tirá-lo da rotina até ao dia em que não aceitou um “não” como resposta.
Ele ainda pediu desculpa várias vezes por ter tentado insistir, mas argumentou que estava tão apaixonado que nem sempre era fácil controlar-se. Eren não queria escutar justificações, ele sabia que a partir do momento em que disse que não e Thomas tentou insistir, que nada voltaria a ser o mesmo e que mais uma vez, teve razão em não confiar.
Terminaram tudo. Aliás, Eren colocou um ponto final aos meses de namoro, mas Thomas continuava a tentar reconquistá-lo e convencê-lo de que iria fazer diferente, não iria atraiçoar a confiança dele novamente. O moreno não acreditava e para dizer a verdade, o fim do relacionamento também não o deprimiu tanto como esperava.
“Talvez eu esteja mesmo seco por dentro ou como ele disse não tenha sido feito para ter sentimentos verdadeiros, daqueles que realmente importam ou quem sabe… só tenhamos a oportunidade de sentir isso uma vez na vida e se desperdiçarmos, não temos outra oportunidade”.
Eren acreditava mais nisso. Demorou a aceitar, mas era verdade. Ele teve sim sentimentos por alguém. Sentimentos verdadeiros e que doíam de verdade, mas pisou neles e deitou fora.
O tempo é imperdoável e não volta atrás.
Ele perdeu a oportunidade dele por culpa própria e agora restava-lhe viver o resto da vida com as consequências das más escolhas que fez.
– Obrigada, Eren. – Agradeceu a Dona Clara enquanto o moreno acabava de limpar o forno e ouviam ao fundo as cadeiras e mesas a serem arrastadas por Hannah e Franz. – As minhas costas já não são o que eram.
– Não faz mal. Sempre que precisar, é só pedir. – Respondeu, levantando-se do chão e esticando um pouco os braços.
– Gosto de pessoas assim como tu, Eren mas do fundo do meu coração desejo que encontres algo melhor, que não fiques aqui a ver os anos passarem e a deixar tantas oportunidades escapar. És jovem. Ainda podias estudar, procurar formação noutra área e…
– Não posso dar-me ao luxo de sair daqui. Não agora que os meus amigos vão para Sina.
– Então é mesmo coisa certa? – Perguntou a senhora, observando o moreno espremer o pano depois de o passar por água.
– Sim, vão embora daqui a uns dias. A oferta de trabalho é irrecusável com direito a alojamento e tudo. Os dois merecem.
– Eu já vi os três juntos e sei como gostam de ti, por que razão não vais com eles?
– O meu lugar não é em Sina, Dona Clara. – Respondeu com um sorriso triste. – Eu não era esta pessoa lá em Sina.
– Tens medo que voltar lá signifique ser a pessoa que eras antes? – Interrompeu a cozinheira com um olhar compreensivo. – Ó Eren todos nós temos uma parte de nós de que não nos orgulhamos muito e não devemos negar que isso existe, mas aceitar.
– A Dona Clara não imagina as coisas que…
– Eren, quem tu és agora, também faz parte de ti. Temos sempre um diabinho e um anjinho sobre cada um dos ombros, não é? – Sorriu divertida e o moreno retribuiu o sorriso.
– O meu diabinho é terrível. Fala todos os dias.
– Claro que é. – Apressou-se a dizer. – Por norma é o que nos mostra as coisas mais divertidas e mesmo que os resultados não sejam os melhores, precisamos dele lá. Precisamos dos dois e encontrar o equilíbrio entre eles. É uma luta constante que temos todos os dias, mas sabes uma coisa? Posso ser honesta contigo?
– Claro. – Disse, olhando para a cozinheira.
– Uma vez disseste-me que fizeste uma mudança grande na tua vida e que estar aqui neste momento, era algo que nunca imaginaste antes. – Falou, mantendo sempre uma expressão tranquila e compreensiva. – Não disseste isso como se fosse uma coisa má. Parecias orgulhoso das coisas que tinhas conseguido na vida e eu fiquei feliz por ti, mas e agora? Quanto tempo já passou desde que disseste isso e o tempo em que estás aqui preso a esta rotina que não te vai levar a lugar nenhum? É como se tivesses atravessado uma porta nova na tua vida e depois ao encontrar esta sala de conforto, desististe de procurar outras portas e ver o que há adiante. E se este for o momento de abrires uma nova porta e ver onde isso te leva?
– Eu não sei…
– É um conselho de alguém que já viveu muita coisa nesta vida. – Tocou no braço do moreno. – E lembra-te o medo não é um bom conselheiro, sobretudo quando há momentos na nossa vida em que sabemos que temos que arriscar, temos que mudar qualquer coisa.
– Já arrumaram e limparam tudo ou estão à espera que se faça tudo sozinho? – A voz de Shadis tirou fez os dois revirarem os olhos.
– Não, Shadis. Estou à espera que Deus, nosso Senhor, desça e venha limpar por mim. – Respondeu Eren, carregando bem no tom sarcástico e fazendo sinal à Dona Clara ir para dentro mudar de roupa, pois ele iria encarregar-se de terminar o resto.
“O Armin teve uma conversa parecida comigo quando recebeu a oferta de trabalho. Será que lhe devo dizer que ele só está na casa dos 20, mas fala como uma senhora de cinquenta e tal anos?”, sorriu divertido com as possibilidades de resposta que o amigo lhe podia dar depois desse comentário, “Sei que todos eles estão a tentar ajudar-me e podem até ter alguma razão, mas sei também que parte de mim, vai querer vê-lo.. A nossa vida mudou para melhor depois que cada um seguiu o seu caminho, sendo assim por que razão deveria estragar tudo?”.
Obviamente também existia outra razão além das que já tinha referido anteriormente. E se ao vê-lo de novo, desta vez fosse a vez de Levi fingir que não o conhecia? E se tivesse que provar o mesmo desprezo que lhe proporcionou antes? Isso não parecia ser muito provável, dado que não conseguia ver Levi como alguém vingativo, mas disseram que apesar de ele ter melhorado, que ele também estava diferente. Às vezes, arrependia-se de não ter perguntado o que “diferente” significava. Será que também o tinham plastificado em Sina? Será que se tinha transformado em alguém snobe ao viver numa cidade onde o dinheiro e prestígio falavam mais alto?
Eren tinha tantos medos diferentes que não se sentia preparado para receber respostas. O melhor seria ficar longe.
“Fugir… continuar a fugir não parece ser o mais corajoso, mas deve ser o certo para ele. Será melhor que não mexer com os fantasmas dele de novo. Não importa o quão mudado possa estar, eu fui uma mancha terrível na vida dele”.
– Puta que pariu… – Praguejou ao chegar na paragem e ver o último autocarro da noite fazer a curva mais adiante e desaparecer.
“Um dia vou matar o Shadis. Eu já disse que não posso sair tão tarde por causa do autocarro, mas parece que ele não quer saber se sou raptado a caminho de casa”, suspirou e iniciou o caminho a pé que ainda seria longo.
Pelo menos foi isso que pensou até ouvir uma buzina e de soslaio viu que era alguém conhecido.
– Nanaba?
– A sair tarde de novo, Eren? – Perguntou. – Vem, dou-te boleia até casa.
– Obrigado. – Disse, entrando na pequena carrinha onde ao entrar, viu que além de algumas caixas na parte de trás, havia uma pequena caixa no assento do carro que teve que pôr sobre as pernas e onde estava um pequeno cão. – Olá pequeno. – Acariciou o pelo sujo do animal.
– Recebi uma chamada a falar sobre ele e cá estou eu. – Respondeu Nanaba, arrancando o carro. – É bonito, não é? Parece ter poucos meses e vai precisar de ser bem alimentado e tratado nos próximos tempos antes que alguém possa adotar.
– Se quiser, posso ajudar a dar-lhe banho e assim. – Disse Eren sem deixar de acariciar o animal. – De qualquer das formas, já vou chegar tarde a casa.
– Estás cansado, Eren. Não te preocupes que trato dele e amanhã podes ir visitá-lo. – Sorriu.
Com o dinheiro deixado para trás por Levi e acima de tudo pelas doações que ele foi fazendo ao longo do tempo, o velho armazém foi alvo de diversas obras e agora era um conhecido abrigo de animais, graças também à proliferação de imagens e vídeos nas redes sociais. Desde então, havia mais gente a fazer voluntariado e a ajudar o abrigo e Nanaba teve até dinheiro para comprar aquela carrinha em segunda mão para ajudar no transporte de animais.
– Amanhã passo por lá. – Prometeu Eren com um sorriso na direção do pequeno cão que lambia a mão dele.
– Fica combinado, mas agora que te encontrei, queria falar contigo sobre outra coisa. – Disse a mulher.
– O Armin e a Annie estão a tentar falar com toda a gente que eu conheço, não é? Até quando é que vão continuar com isto?
– Até enfiares na tua cabeça que está na hora de dar outro passo em frente.
Quando no fim da viagem e da conversa com Nanaba chegou a casa em vez de encontrar os amigos a dormir, os dois estavam no quarto dele com uma mala a pôr as coisas dele dentro da mesma.
– Posso saber o que estão a fazer?
– Escuta Eren, se nem a Nanaba te convenceu, o próximo passo será eu injetar-te com uma seringa cheia de morfina e a próxima vez que acordares, estarás em Sina. – Disse Armin, fazendo o moreno arquear uma sobrancelha.
– Isso é legal? – Perguntou Eren.
– Será a tua palavra contra a nossa. – Falou Annie. – E como sabes, vou ficar do lado do meu namorado, portanto, amanhã vais dizer ao Shadis para ir explorar outro porque dentro de dias estaremos em Sina, entendido?
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