– Des... – Disse sem fôlego, totalmente surpreso. – O que faz aqui?
– Essa é a minha colônia, esse é o meu clã, eu não deveria estar aqui? – Ele ergueu uma sobrancelha, me olhando altivo e receoso.
– Não é isso. – Forcei um sorriso para não levantar suspeitas. – É que você é sempre tão ocupado, eu não imaginava que estaria aqui, me esperando. – Suspirei. – Quer dizer, eu nem me lembro qual foi a última vez que conversamos.
– Eu sei que não tenho tido muito tempo para você, Harry, mas eu sempre mantenho um olho em você.
Ele cerrou os olhos ao me olhar, ilustrando o que tinha acabado de dizer. Era uma coisa comum entre nós antigamente, ele fazia isso e logo depois caíamos na risada, por isso me assustei quando vi as rugas e as linhas de expressão em torno de seus olhos. Des estava absurdamente cansado. Levei meus dedos a uma cicatriz que havia em sua bochecha e que tinha se alargado com a careta.
– O que foi isso? – Perguntei preocupado. Des era imbatível, o fato de alguém como ele ter uma cicatriz tão profunda e assustadora significava que algo grave estava acontecendo.
– Tive um problema em uma missão. – Ele deu de ombros.
– Você? – Disse surpreso. – Desmond, o líder da colônia do Mediterrâneo, a mais antiga e forte, e líder do clã Styles, é uma lenda, ele não tem problemas em missões. – Ele abriu um sorriso genuíno com os elogios.
– Todos nós temos dias ruins. – Ele deu de ombros.
– O que aconteceu?
– Alguns pescadores estavam capturando tubarões com arpões, tinha sangue para todos os lados, o que dificultava minha visão, eles estavam capturando os tubarões, retirando a barbatana e jogando o resto no mar, como se não fosse nada. Como se um animal tão lindo fosse lixo, como se não significasse nada matar um animal de tamanha magnitude para servir a um capricho humano. – Des soltou um rosnado feroz e eu senti um arrepio percorrer meu corpo. – Eu comecei a tentar virar o barco, estava conseguindo, eles estavam desesperados e jogaram os arpões em todas as direções, eu não consegui vê-lo por causa do sangue, só senti quando me acertou, foi pouco antes de levar todos ao fundo do mar e entregá-los ao restante dos tubarões. – De repente engolir ou respirar se tornou uma tarefa difícil e Des pareceu perceber. – Não foi uma cena bonita, mas é isso que eles merecem. Os humanos são sujos, são cruéis, mereceram o destino que tiveram.
Tentei não pensar em toda a fúria de Des. Tentei não pensar em Louis como um daqueles pescadores. Tentei, mas falhei miseravelmente. Minha mente me traiu e tudo o que eu conseguia ver era Louis e Des em uma luta. Uma luta desleal para Louis. E uma luta totalmente perdida para mim.
– Des, sobre os humanos... – Encontrei forças para falar depois de tudo isso. – Talvez a gente devesse relativizar isso, sabe?
– Relativizar? – Ele me olhou furioso. – Eles relativizaram os tubarões? Relativizaram as toneladas de lixo que são depositadas nos oceanos diariamente? Eles não relativizam nada, Harry, tudo o que fazem é destruir sem qualquer consideração pelo mundo!
– Mas nem todos eles são maus, tem muitos que ajudam... – Des me interrompeu em uma gargalhada.
– Qual deles? O que você sabe sobre os humanos, Harry? – Ele debochou.
– Sei que nem todos eles são maus e deveríamos levar isso em consideração. – Tentei soar firme.
– Para cada cem mil seres humanos ruins, um deles é bom. E essa ainda é uma estimativa baixa.
– Então vamos acreditar nesse um, porque eu sei que ele estará lutando ao nosso lado.
– Sabe o que um humano faria se ele nos encontrasse? Nos colocaria em um tanque minúsculo, cheio de conexões e faria inúmeros testes. – Ou nos amaria, respondi mentalmente. – Eles não olhariam para nós como seres que merecem respeito. Eles nos veriam como um novo brinquedo, exatamente como vêem todo o resto do mundo.
– Não todos eles... – Insisti.
– É por isso que eu não queria aceitar que você fosse o próximo escolhido. – Ele me olhou com olhos cheios de pesar e meus instintos se aguçaram. Des não havia vindo aqui à toa. – Você é inocente demais, Harry. – Havia doçura em sua voz. – Ainda é um pequeno e curioso tritão que adorava arrumar confusão perto da costa. – Um pequeno sorriso brotou em seus lábios.
– O-o que isso significa? – Minha voz falhou e ele suspirou sem poder me encarar. O que ele estava prestes a dizer também não era fácil para ele.
– Você foi escolhido. Vai participar do próximo ritual em três semanas.
Toda a minha animação, todo o meu bom humor, as minhas lembranças da noite anterior e das outras, tudo desapareceu. Fiquei vazio de emoções.
– Eu não vou. – Murmurei de cabeça baixa.
– O quê? – Des perguntou confuso, ele parecia não ter ouvido.
– Eu não vou. – Disse decidido, encarando-o.
– Eu entendo que esteja assustado, é um grande passo para os membros da colônia, mas eu e Anne vamos te explicar tudo e você fará tudo certo, assim...
– Desmond, eu não vou! – Voltei a dizer.
– Você não pode se esquivar. É a sua obrigação.
– Minha obrigação é proteger a vida marinha e eu tenho feito isso muito bem. Mas não vou me enlaçar a um tritão que eu mal sei o nome em frente de toda a colônia para produzir um pequeno tritão que eu nunca mais vou poder segurar na vida ou ter o mínimo de sentimentos.
– Acha que eu não tenho sentimentos por você? Acha que eu não tenho sentimentos por Anne? – Sua voz já soava grossa e rude, com a pose que ele assumia quando tinha que tomar uma grande decisão como líder. – Acha que Bobby não sente nada por Niall? Ele me implorou para que eu adiasse o ritual dele! – Bobby não parecia do tipo que implora, o que só fez meu coração pesar ainda mais. Ele também não queria que Niall tivesse participado daquilo. – Acha que eu e ele não sabemos que Niall vai até as incubadoras todos os dias para segurar seu ovo? Nós fazemos vista grossa para vocês dois desde que nasceram! – A veia de sua testa estava saltada, demonstrando sua irritação. – Anne e Maura eram grandes guerreiras e as duas nos pediram para cuidarem das incubadoras por causa de vocês dois, para ficarem perto de vocês, e nós cedemos desde o início. Acha que eu e Bobby não sabemos que você e Niall nunca fizeram mal a um humano, que vocês têm dó deles, que vão até a costa para observá-los?
Não era fácil escutar tudo aquilo. Ver Des jogando em minha cara todas as regalias que eu e Niall tínhamos não era uma coisa fácil de se ouvir, ainda mais quando meus planos eram dizer não a ele e correr para Louis o mais rápido possível.
E, se não encontrasse outra solução, nunca mais voltar.
– Então, por que... – Eu tentei, mas ele voltou a me interromper.
– Porque eu não posso passar a mão em sua cabeça para sempre, Harry! Porque eu não posso fazer com você o que proibi que Bobby fizesse ao Niall!
– E você vê o quanto ele está infeliz, quer que eu fique infeliz também? – Apelei.
– Quero que entenda que essa é a sua família, essa é a sua casa e não importa o quanto você sonhe com seus humanos preciosos, eles nunca serão como você imagina, nunca serão bons e nunca te olharão da mesma forma que eu ou Anne fazemos.
– Você não sabe, você nunca nem os deu uma chance! – Quase implorei.
– Três semanas, Harry. Três semanas e você estará naquela arena, cumprindo seu papel como um membro dessa colônia. – Des finalizou e saiu em sua melhor pose de líder.
Me deixei afundar, parando sentado na parte mais escura do oceano. Fiquei por ali pelo que pareceram horas. Estava totalmente sem direção.
Quando foi com Niall, eu não estava pensando no quanto difícil era a ideia de deixar tudo isso para trás, mas agora, tudo tinha um peso diferente.
Por mais que eu discordasse dos métodos, eu sabia que grande parte do motivo de ainda existir fauna e flora marinhas, vinha do trabalho das colônias. O trabalho era muito nobre.
Além disso, sair daqui agora, correr para os braços de Louis e me refugiar na Ilha de Afrodite não me parecia uma saída tão fácil.
Fazer isso era deixar Anne, Des e todos os membros da colônia para sempre. Isso significaria ficar para sempre dentro da redoma de magia que cobria a ilha e nunca mais poder cumprir minha função no mundo, nunca mais cuidar do santuário, ver os novos membros aprenderem as funções, participar das noites de cantoria ou até mesmo ver Niall. Afinal, eu não poderia arrastá-lo para isso comigo.
Niall merecia mais e agora não estava mais sozinho.
Havia sido fácil incentivar Niall a fazer isso, mas agora parecia uma ideia terrível, talvez porque eu soubesse que, no fundo, Niall não aceitaria, ou que deixar que ele tomasse a iniciativa era uma saída muito mais fácil, eu apenas o seguiria e não carregaria esse peso nas costas.
Agora a situação era outra. Eu tinha que decidir.
– Harry? – Niall soou preocupado enquanto se aproximava. – O que faz aqui? Você está pálido, não parece bem, você comeu alguma coisa ontem à noite? Talvez devêssemos começar a testar as coisas e...
– Eu fui escolhido. – O interrompi e ele me olhou na mesma hora, totalmente sério, eu não precisava explicar muito, ele havia entendido perfeitamente.
– Quando vai ser?
– Em três semanas.
– Ótimo, temos três semanas para encontrarmos uma saída, é tempo o suficiente. – Ele soou confiante.
– Que saída, Niall? Não tem saída! – Disse desesperado, sentindo aquela vontade de gritar para os quatro cantos e fazer todos sentirem a minha dor. – Ou melhor tem uma. – Disse sombrio.
– Nós podemos pegar uma grande missão e viajarmos, sumirmos por uns tempos...
– Como você fez? – O interrompi. – E funcionou? – Ele se calou.
– Você pode ficar doente, nós podemos arrumar um jeito e então nós podemos dizer que você não vai conseguir participar. – Ele tentou novamente.
– E então nós vamos conseguir adiar por uma semana.
– Tem que ter um jeito! – Niall parecia impaciente, desesperado eu diria.
– Tem um jeito, mas não é tão fácil quanto parece. – Ele me olhou e seus olhos azuis cintilaram.
– Você vai fugir? – Ele não parecia mais confiante ou decidido. Não consegui responder, me limitei a assentir. – Eu... – Ele fungou. – Eu vou com você.
– Não. – Eu senti que já estava chorando, mesmo que não pudesse comprovar de fato por estar debaixo d’água. – Eu não posso fazer isso com você, Niall. Eu não posso condená-lo assim. – Mal terminei de dizer e ele me agarrou, apertando forte minha cintura em um abraço muito apertado.
– Você não pode me deixar aqui sozinho. – Ele choramingou no meu ombro.
– Não estou te deixando sozinho. – Eu tentei contornar. – Estou te deixando com um lindo bebezinho tritão, que você vai cuidar, amar e ensinar a ele como pular com os golfinhos. – Segurei o rosto dele em minhas mãos e vi a dor estampada em seu rosto. – Eu gosto de chamá-los de bebês, como os humanos fazem. – Nós dois sorrimos juntos. – Bebê parece um ótimo nome para aquela coisinha fofa, pequena e delicada, não acha? – Ele assentiu.
– Por que está se despedindo? – Ele disse choroso. – Eu vou poder te ver.
– Eu não estou me despedindo, mas, Niall, ir até a ilha ficará perigoso, inclusive e principalmente para você. No momento em que eu sair, eles ficarão de olho em você. E você vai ter que ser firme e dizer que não sabe de nada. Vamos ter que ficar um tempo longe até tudo se ajeitar. – Ele chorou ainda mais e voltou a me abraçar. – Mas vamos dar um jeito, você não vai se livrar de mim assim tão fácil e eu vou ter que conhecer o seu bebê. O que me lembra que tenho que perguntar a Louis o que o seu filho será para mim, porque você será o pai dele e eu tenho que ser algo também. – Niall riu.
– Louis vai ter que nos dar uma aula sobre isso. – Ele se afastou e fungou novamente.
– Sim, uma aula sobre família. – Conseguimos sorrir em meio ao caos.
– Promete que não vai me deixar? – Ele parecia quebrado. – Eu não quero ficar sozinho aqui e não quero ter que enfrentar sozinho o fato de não poder ficar com meu bebê. – Ele usou a palavra e pareceu soar muito bem em sua voz.
– Prometo! Eu nunca vou deixar você. – Eu segurei sua mão. – Posso não saber direito o que é uma família, mas sei que você é a minha família. – Sorrimos um para o outro. – Temos três semanas juntos e eu prometo que não vou desgrudar de você.
– Três semanas... – Ele repetiu triste.
– Só até eu descobrir um jeito seguro de te ver, depois voltaremos a ter a vida toda. Eu prometo.
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