Um brilho prateado invade o quarto. Mesmo com meus olhos fechados, posso perceber a intensidade. Com muito esforço, abro meus olhos lentamente. Na parede, pendurado de uma forma meio desleixada, um relógio cuco anuncia o horário: Três horas da manhã. O tic tac me irrita, e eu me levanto, esfregando os olhos. Atrás de mim, me fazendo arrepiar, um vento gelado me faz estranhar a situação. Assim que me viro, me deparo com a janela de meu quarto escancarada, e lá fora, bem no meio do céu negro, a lua cheia enfeita a noite.
-O quê?
Franzo a testa. Vou até a janela e antes de fechá-la, examino o enorme jardim da mansão; abaixo do batente, algumas rosas cheias de espinhos almejam tomar toda a parede. Olhando para o lado direito, vejo a varanda do quarto de meu irmão, que já tomada pela roseira fica sempre trancada.
Após analisar algumas vezes, sinto a cortina sobre meus ombros. Assim que sinto os fiapos roçarem minha pele, seguro o tecido, antes branco e limpo, agora com manchas de terra nas pontas rasgadas.
-Isto não estava assim.
Me viro para dentro de meu quarto, e começo a pensar que a situação está mais estranha ainda. Fecho a janela rapidamente, e o quarto fica escuro de novo. Tateando os móveis e a parede, chego até minha cama e me sento. Com as pernas cobertas, e com as costas encostadas na cabeceira, estico minha mão até meu criado-mudo e ligo meu abajur. Olho para minha penteadeira, em frente à cama; então, ouço uma respiração ofegante e pesada do meu lado, como se houvesse um animal dentro de meu quarto. De repente, o pior que poderia acontecer, acontece: Fico paralisada, completamente sem reação. No espelho da penteadeira, nada vejo, mas sei que há algo ao meu lado. Finalmente, arranjo um pouco de coragem e ameaço virar o pescoço.
-Não se mova- uma voz rouca, que soa mais como um rugido, me faz travar novamente.
Não consigo virar a cabeça completamente para o lado, mas meu movimento já foi o bastante para revelar a figura que havia invadido meu quarto: Parece ser um lobo, um lobo de pé. Seu pelo é preto, e suas orelhas, pontiagudas. Ele continua com sua respiração pesada, e agora, com sua boca enorme aberta, eu vejo bem seus dentes brancos e afiados. Estou apavorada; uma única lágrima escorre de meu olho, mas eu continuo imóvel, de olhos arregalados e com a boca seca.
-Não parece ser uma Maiko. Não parece nem sequer uma caçadora- o grande lobo me examina, mas ainda permanece a meu lado.
- C-caçadora? -As palavras saem de minha boca com dificuldade, e quase desmaio ao reparar nas garras pontudas e grandes que o lobo exibe.
-Talvez esteja errado... Não- a criatura bufa- Kazumasa nunca se enganaria.
-P-por favor- ainda com dificuldade- quem, ou, O QUE, é você?
Ele ri, ou melhor, solta uma gargalhada quase maléfica, como se fosse óbvio. Enquanto eu apenas me assusto mais ainda, meus olhos se enchem de lágrimas, mas reluto em derramá-las.
-Espere- ele interrompe sua gargalhada e volta a me encarar- você realmente não sabe o que eu sou?
-... E eu... Deveria saber? -falo tão assustada que mais parece um cochicho.
Ele ri novamente, desta vez mais alto, e eu rezo para que alguém na mansão tenho ouvido dessa vez.
-Kazumasa com certeza se enganou.
Então, uma ideia me ocorre. É arriscado tentar isso agora, na situação em que me encontro, mas mesmo assim vale a pena tentar.
-Q-quem é Kazumasa? Ele é como você?
-Não. Ele não é como nós, mas, eu diria que é mais parecido com você...
Então a criatura se destrai, e começa a falar sem parar. Finalmente, tenho minha chance quando ele olha para o teto; por apenas um instante, mas foi o necessário.
Num pulo, saio da cama e jogo meu edredom em cima dele. Corro até a janela e a abro, desesperada; gritos agudos e aflitos pulam de minha garganta.
-Mãe! Pai! Socorro! Tem um lobo aqui!
A criatura finalmente reage, e rasga o edredom, já rugindo. Percebo que é o fim da linha, meu plano não deu certo, e eu estou encurralada.
-MAAAAAE!
Ainda mais desperada, grito por socorro, e dessa vez, tenho resposta.
-Filha!
Minha mãe invade o quarto, empurrando a porta, que bate na parede e ricocheteia.
O lobo, antes com seus olhos flamejantes fixos em mim, agora se volta para meus pais, com um certo medo.
-Maiko.
Sua voz soa firme, e posso ver que ele se dirige direta e especificamente à meu pai.
-Afaste-se dela, AGORA.
Meu pai, ao contrário de mim, não está nem um pouco assustado. Pelo contrário, age de forma estranhamente calma.
-Afaste-se, agora. E diga a Kazumasa que a Midori está bem, e é NOSSA filha. Se ele quiser nos desafiar, que venha ele mesmo- minha mãe não vacila.
A criatura de pelo negro e olhos flamejantes dá de ombros e ri para minha mãe. Assim que crava seus olhos novamente em mim, o lobo se prepara, como se fosse correr. E eu, encurralada no meio da janela, já imagino que serei levada por ele. Saindo em disparada, vindo em minha direção, a criatura baba e arranha todo o carpete.
-MIDORI!
Meu pai corta o momento com um grito desesperado, e estica seu braço em minha direção, deixando cair o rifle que segurava. No entanto, ao passar por mim, o lobo me empurra para o chão, e salta pela janela. Estou em choque, com as mãos nas orelhas e de olhos fechados. Demoro até perceber que ainda estou em meu quarto, e viva. Mas sim, eu estou viva.
Meus pais correm em minha direção, e se ajoelham ao meu lado. Minha mãe levanta delicadamente minha cabeça e me faz abrir os olhos. Ela então retira minhas mãos trêmulas de minhas orelhas e olha dentro de meus olhos, me acalmando.
-O que era aquilo?
Me ponho a chorar finalmente. Afinal, depois disso, o que uma criança de onze anos poderia fazer?
-... Era um- ela interrompe sua fala quando olha para meu pai, como se pedisse autorização para contar, e ele assente- era um lobo.
-Na verdade- meu pai coloca as mãos sobre os ombros de minha mãe, e a encara, antes de se voltar para mim- ele era um lobisomem.
- Lobisomem!?
-Sim. E não é só isso, temos muito mais para te explicar.
Ao longo da explicação de meu pai, sobre as "criaturas das trevas", como resolvi chamá-las, eu vou me preocupando cada vez mais com todas as pessoas, que vivem sem saber da existência desses monstros. E eu mesma chego a duvidar da existência de tais criaturas, mesmo tendo quase sido morta por uma há poucos minutos.
-Então, todos os humanos vivem em perigo?
-Na verdade, não.
-Como não? E como vocês sabem disso?
Mais um olhar entre meus pais, e dessa vez me irrito.
-Já chega disso- me levanto do chão e sento em minha cama. Cruzando os braços, eu olho para os dois, que estão sentados no chão- não me escondam mais nada. Já me esconderam isso por muito tempo, eu acho. Então agora me falem tudo.
Minha mãe ainda parece exitar, então meu pai é quem começa a me contar tudo.
-Filha, nós somos de uma das linhagens mais antigas de caçadores do submundo. A família Maiko tem caçado vampiros, demônios, lobisomens e bruxas há séculos.
-Mas, por que nunca me contaram?
-Bom- agora é minha mãe quem toma a palavra- nós temos a obrigação de caçar esses seres, e é um trabalho perigoso.
-Além disso, como tradição e lei, devemos passar nosso ofício para pelo menos um filho, que herdará nossa posição e, em breve, passará a diante- meu pai aponta para a parede de meu quarto, ou melhor, para o quarto de meu irmão.
-Mas, não queremos mais isso para nossos filhos, e queremos que pelo menos uma parte da família Maiko tenha a oportunidade de ter uma vida normal, e segura.
-Mas, e meu irmão? Isso não parece justo.
-Foi uma escolha difícil, mas mesmo assim, ele sempre se mostrou mais habilidoso e de certa forma, corajoso, do que você.
Engulo a seco as palavras de meu pai. Então, entre um suspiro e uma breve análise, resolvo tomar minha própria decisão.
-Eu quero ser uma caçadora do submundo, como vocês.
Os olhos de minha mãe se arregalam e ela novamente lança outro olhar para meu pai, mas dessa vez sei que ela não está perguntando o que deve responder, mas sim negando meu pedido, e implorando para que ele faça o mesmo.
-Não, eu serei uma caçadora. Quer vocês queiram ou não.
-Não- minha mãe se levanta, aparentemente brava, mas sei que é mais preocupação do que fúria em si.
-Tem minha permissão- meu pai dá de ombros e se levanta, se pondo ao lado de minha mãe.
-O quê!? Não! Isso é suicídio!
-Suicídio? Por que suicídio?
-Sua filha tem onze anos, e ainda não começou seu treinamento. O que acha que acontecerá se ela enfrentar algum demônio?
-Mas ela pode começar a treinar agora.
-Nenhum caçador pode começar tão tarde. É inaceitável que comecemos com mais de sete anos! Ela está despreparada, ainda. Isso é um NÃO!
-Querida, eu sinto muito, mas devo discordar de você. Disse que queria que ela tivesse uma opção, e ela teve. Mas escolheu seguir nosso ofício, nossa tradição. Deveríamos nos orgulhar dela. Quanto ao treinamento, podemos começar de manhã cedo, hoje mesmo.
- M-mas...
Minha mãe então o puxa para o canto do quarto, mesmo assim, posso ouvir seu cochicho.
-Querido, ela é fraca.
Novamente, sinto um tapa na cara, dado pelos meus próprios pais. E, novamente, engulo à seco.
-Eu sei, mas ela pode ficar forte. Por favor, permita-me treiná-la; sabe o tanto de potencial há por trás de toda essa fraqueza.
O silêncio de minha mãe me conforta por um instante, afinal, ela está pensando.
-Se ela morrer- ela diz isso com tanta naturalidade e frieza, que chego a me arrepiar- carregará este fardo para toda a vida.
-...E não dividirei esse peso com ninguém.
Antes de se voltarem para mim, vejo minha mãe fechar a cara, brava. E meu pai então, com o peito cheio, cabeça erguida e sorriso no rosto, me dá a resposta que eu esperava:
-Você será uma caçadora- mesmo sabendo dos riscos, uma estranha felicidade me toma. Acho que é um "orgulho"- e começaremos já.
-Já?
-Sim. Uma caçadora deve ser forte, e dura. Deve saber que não tem amigos, e que deve matar caso seja necessário.
Logo percebo qual é minha "fraqueza" não sou fria, e, ainda pior para um caçador: Tenho amigos.
-Então, eu não terei mais amigos?
-Não. Corte todos os laços, com todos de sua escola. Irá para lá exclusiva e estritamente para estudar- me dói ter que me afastar de minhas amigas, mas é para um bem maior.
-Farei isso- não vacilo.
-Durma mais um pouco, então. Pois às seis começaremos nosso treinamento.
Eu apenas concordo, e eles saem de meu quarto. Minha mãe bate a porta.
Sei que ele disse para eu dormir, mas não conseguirei, depois da noite que tive. Então apenas tranco a janela.
Debaixo das cobertas, com muito frio, apenas deixo meu rosto para fora. Analiso toda a situação: Até agora minha vida foi uma mentira, mas, se eles já mentiram tanto até aqui, quem me garante que não estão me escondendo mais alguma coisa?
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