Que o desafio comece.
Adele e eu não nos encontramos frequentemente, na verdade, após nossa conversa só consegui a encontrar novamente na biblioteca, ela lia o livro da primeira vez que nos vimos sua atenção era completamente tomada por ele, me aproximei lentamente, pretendia assusta-la durante seu momento de vulnerabilidade, mas ao chegar perto ela se virou, fazendo uma expressão de surpresa.
“Olá”. Eu disse, com meu sorriso fraco de sempre.
“Quanto tempo, como vai”? Adele me perguntou, fechando o livro.
“Bem, só um pouco irritado por causa do calor, mas não é nada de mais. E você”?
“Estou bem também. Você não parece irritado”.
“Eu não sou de demonstrar como eu me sinto, eu até falo, mas meu rosto nunca vai seguir meus sentimentos”. Eu ri um pouco, vendo que ela fez uma cara de riso também.
“Isso se aplica a qualquer coisa que você sente”?
“É, menos raiva, a raiva é mais chata de se controlar”.
“Você é interessante, e engraçado também”.
“Engraçado, eu”?
“Eu acho que é pelo menos”.
“Hm, por que”?
“Não sei”. Ela riu mais um pouquinho. “Você tem um jeito descontraído de se falar, mas mantém a cara séria”.
Adele olhava para mim enquanto eu puxava uma cadeira para me sentar a sua frente, ela tinha um olhar curioso, penso se ela imaginava se eu era realmente confiável. Sua analise era diferente, mesmo sorrindo seus olhos percorriam todo o meu ser, ela sempre parava olhando para o meu rosto, imagino eu se nesses momentos faço alguma expressão peculiar ou se realmente sou tão inexpressivo.
“Você costuma ser muito vaidoso Leonard”? Adele perguntou, apoiando a cabeça nas mãos.
“Um pouco. O que a fez pensar nisso”?
“Você é tão arrumadinho, da uma impressão que está sempre indo para casamentos ou trabalha com algo importante, como advocacia ou medicina”.
“Se pelo menos eu tivesse algum lugar para ir, além de cafeterias, a minha própria casa e o trabalho”.
“Acho que isso é uma mania, desde quando é assim”?
“Desde sempre, eu acho”. Eu fixei meus olhos nos dela, e sua expressão se tornou um pouco tensa. “Você está parecendo uma psicóloga me perguntando tantas coisas, não que esteja me incomodando, é claro”.
Na realidade, isso me incomodava um pouco, há coisas sobre mim que ainda não contei e que provavelmente vocês só saberão mais tarde, os relatos ficam mais interessantes assim, não?
“Tem certeza que não está se incomodando com isso”?
“Tenho, não estou mentindo para te agradar, sou sincero no que digo”.
“Hum, gosto disso”. Vi que ela se acalmou e até tomou um jeito descontraído de se sentar, apoiando o braço na cadeira. “É bom que seja assim, odeio gente mentirosa”.
“Até sei por que”.
“Porque não posso ser uma, então nem você nem os outros podem ser”.
“Egoísta, mas sensata”. Ela era realmente interessante, uma mulher forte que não deixa ser levada totalmente por todas as minhas ações, mas que acabava sucumbindo a algumas outras. “Gostaria de te conhecer melhor, o que fazia na adolescência”?
“Olha, eu tinha umas amigas e saíamos para passear em parques, íamos para restaurantes juntas, às vezes fazíamos festas do pijama, falávamos dos garotos bonitos”. Ela ria do ultimo relato, colocando as mãos no rosto. “E no shopping brincávamos naqueles parques que crianças fazem aniversário, era legal. E você”?
“Eu ficava trancado em casa com a minha irmã, só”.
“Você tem uma irmã”?
“Sim”.
“Como ela é”?
“Bonita, inteligente, mas solitária”.
“Mas você não visita ela? Se é que ainda não moram juntos”.
“Visito, só que nem sempre posso ir, mesmo que eu não seja muito ocupado”.
“Por que”?
“Resumidamente, ela é minha conhecida que tem depressão, e ela está morando atualmente em um hospital psiquiátrico, devido à recaída que ela teve, e não posso ir para lá toda vez porque dizem que posso atrapalhar no seu tratamento”.
“Me desculpe por ter tocado no assunto”.
“Você não sabia, não precisa se desculpar”.
Eu não entendo por que sinto tanta raiva de falar sobre ela, eu realmente não compreendo. É como se queimasse por dentro, ela é a única coisa que faz com que eu me descontrole, que eu tenha certo tormento em meus pensamentos.
Acho que isso são ciúmes, já imaginou ciúmes num psicopata sem coração? É devastador até pela minha própria percepção de mundo.
“Leonard”?
“Diga”.
“Você não está muito bem, está passando mal”?
“Talvez, vou tomar um ar e já volto, ou você quer ir comigo”? Eu levantei um pouco rápido demais e acabei ficando tonto, mas fui até a saída da biblioteca, Adele foi comigo, provavelmente se preocupava de verdade.
“Acho que você tem que parar de se vestir assim em um calor de 30°C, isso obviamente não está fazendo bem a você”.
“Então não saio mais de casa, não gosto de vestir outra coisa sem ser isso”. Dei uma risada fraca e ela um sorriso preocupado, sabia que não estava bem mesmo com as piadinhas idiotas que faço.
“Você tem alguma fraqueza no organismo”?
“A falta de sol pode estar me matando, se bem que ás vezes procuro tomar sol por um tempo, mas não devo ter nada com o calor”.
“Mesmo assim, se não parar com essa mania de se vestir só assim você sempre terá problemas com o calor”.
Sentamos-nos nas escadarias da biblioteca em um lugar onde o sol não batia ambos olhando para o movimento da rua, de vez em quando contemplava a sua expressão despreocupada e seus olhos que seguiam as pessoas e carros que passavam na rua, o nervosismo passara, e percebendo que eu olhava para ela, Adele se virou e perguntou:
“O que foi”?
“Nada, só gosto como sua maquiagem contrasta com seus olhos”.
“Ah... Sério”?
“Sim, mas não sei o que mais chama atenção em seu rosto, se é essa sua expressão tão simples ou como a própria simplicidade se faz tão bela”.
“Não diga isso, não sou tão bonita assim”.
“Já disse pra parar de ser humilde, é claro que é bonita”.
Adele desviou o olhar e depois terminou de virar o rosto por inteiro, podia a ouvir repetir a si mesma, “não deve ser verdade, ele só quer me agradar, ele provavelmente é igual a qualquer outro homem”.
“Adele”. Eu chamei-a, e ela virou rapidamente na minha direção.
“O-oi”? Ela gaguejava.
“Se está achando que eu realmente me rebaixaria a ‘qualquer outro homem’ você está muito enganada”.
“Ah, desculpa... Você ouviu né”?
“Bem, infelizmente sim. Você tem algum trauma com isso? Não que eu queira ser chato ou tocar em um assunto delicado”.
“Pra ser bem sincera... Sim”.
“Pode me contar”?
“Posso mesmo confiar em você”?
“É claro, nunca que eu faria algo prejudicial a alguém, ainda mais se tratando de traumas, isso é antiético”. E mais uma mentira foi tirada de minha boca.
“Quando eu estava no último ano do Ensino Médio eu conheci um garoto, ele era popular, divertido, querido por todos os professores por ser inteligente e bem comportado, tinha um bom senso de humor e era muito atencioso. Por algum motivo esse garoto começou a gostar de mim, ele sempre ficava comigo nos intervalos, ficava horas conversando comigo por redes sociais, e então um dia começamos a namorar”...
Ela parou um pouco, não haviam lagrimas em seu rosto, nem sua expressão estava triste, apenas a seriedade tomava conta de sua expressão, e depois de um suspiro ela voltou a falar.
“... Mas depois de alguns poucos meses de namoro, ele pediu para mim... Bem, tentar algo novo, e foi nesse dia que perdi minha virgindade. Porém, no dia seguinte, algumas pessoas começaram a me olhar estranho e outras até faziam alguns comentários aos que estavam próximos, e então, uma das minhas amigas veio falar comigo. Ela me perguntava se eu realmente era uma ‘puta’ como todos estavam me chamando na escola, e descobri que enquanto aquele garoto me usava, ele filmava tudo, e acabou mostrando para os amigos, que espalharam a fofoca”.
“Eu compreendo sua angustia. Eu... Pouco tenho a dizer, mas você tem que esquecer isso. Perto de mim, você não ter que ter esse medo, a traição não faz parte de minha vida, de forma alguma, e nunca mais fará parte da sua”.
Adele se apoiou em meu ombro, ela havia se desanimado um pouco por causa da história que teve que me contar, mas não existia algo nela que era tão melancólico, apenas fiz com que se sentisse menos “pesada” com todo esse trauma, confiança era necessária para o meu objetivo, podia não haver outra coisa além da vontade de conquistar seu coração, mas se o barco tomar outro rumo no lago terei que guia-lo por entre as pedras e assim poder atracar de modo seguro.
Tempo se passou e saímos da escadaria da biblioteca, começando a andar pela calçada sem rumo algum, de vez em quando olhava brevemente para Adele, um sorriso já se formava timidamente em seu rosto, aproveitei a nossa rota sem destino e adentramos o parque da cidade, onde deitamos na grama para observar a luz que passava pelas folhas das árvores. Ela havia se deitado de uma maneira completamente largada e sem preocupações, seus olhos fechados davam a entender que a única sensação importante para ela naquele momento era a da brisa calma passando pelo seu rosto.
“Leonard”.
“Sim”?
“Por que não se solta um pouco? Tem algo contra relaxar”? Ela riu ainda de olhos fechados.
“Há várias coisas que não me sinto confortável em fazer, relaxar completamente em lugares públicos é uma delas”.
“Imagino se você dorme com a consciência tão pesada assim”.
“Não tanto”.
“Não tanto”?
“É. Mas são apenas preocupações básicas”.
Ela dizia coisas que acabavam me dando sono, eu não sou muito de dormir, minha consciência complicada já é motivo suficiente para descrever o motivo, porém, as horas que passo acordado mais a voz suave de alguém na calmaria de um parque fazia minhas pálpebras pesarem, e sabia que se continuasse assim acabaria dormindo.
“Leonard, você está quase dormindo né”? Eu virei na sua direção e a vi me encarando, apoiada em um dos braços.
“Não, só estou um pouco cansado, o calor estava me matando”...
“Você é assim no frio também”?
“Sou completamente o contrário, eu até gosto de passar frio”.
“Que masoquismo hein”.
“Não exagere, há mulheres que ficam torrando no sol para se bronzearem, e não há nada de prejudicial em passar um pouco de frio”.
“Um pouco né. Não vá pegar pneumonia”.
“Eu tomo cuidado, não sou uma criança”.
“Nunca conheci ninguém que gosta de passar frio, gostar do frio tudo bem, mas passar frio”... “Essa é nova”.
“Agora me conhece, não”?
“Pois é, diferentão”.
“Você costuma ser brincalhona assim? Ou é só comigo”?
“Sou assim com todos, mas você me faz ser assim mais do que com os outros”.
“O que há de especial em mim para querer me tratar assim”?
“Não sei dizer”...
Ah, a duvida, eu pensava a observar cada expressão que fazia, a duvida é cruel, sei como ela funciona, porém, sei que as pessoas podem usá-la para evitar as verdades sobre si mesmo, e enquanto ela terminava sua fala, eu podia ver os diversos nuances entre medo e duvida. Eu praticamente já tinha algo escrito em minha mente sobre o que ela estaria pensando. Me sentei na grama, virando totalmente para ela, que fazia o mesmo, e disse:
“Podíamos nos encontrar mais vezes, não acha”?
“É, não é uma má ideia, você podia tentar correr comigo”.
“Não, isso não”.
“Por que”? Ela ria da minha reação.
“Não gosto de correr, eu me canso muito rápido”.
“Tinha que ser sedentário”.
“Algo contra”?
“Não, só esperava que você tentasse”.
“É mais fácil você me pedir para andar em uma montanha russa nove vezes seguidas do que correr”.
“Então vamos naquele parque do píer andar na montanha russa dez vezes seguidas”.
“Desafio aceito”.
Gostava de como ela me desafiava assim, gosto de quando duvidam de mim. Fomos ao parque no sábado e andamos literalmente dez vezes seguidas na montanha russa, nas decidas eu sempre olhava para Adele, notava muito no jeito em que seus cabelos voavam ao vento, porém, eu sempre era interrompido por um enjoo que dava quando os trilhos decidiam subir novamente, e ela reparava na minha tontura, sempre me caçoando ao descer do brinquedo.
E alguns dias depois, ela me convidara a ir a sua casa almoçar, após terminarmos eu a ajudei a arrumar a cozinha, nos sentamos no seu sofá e fizemos a mesma coisa de quando nos conhecemos.
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