As mãos de Jimin se retorceram num movimento impossível. Ele arqueou as costas e um lamento estertorante repercutiu pela noite, e esse foi de tal forma agoniado e violento que fez raios surgirem no céu plúmbeo, trovões agitarem a sinfonia de gritos e gemidos. Jungkook correu até a virgem imaculada, desviando dos demônios que também agonizavam, e a segurou em seu regaço, mas já era tarde demais. O rebento havia se salvado – nem mesmo principados e potestades podiam fazer algo contra ele, não enquanto ele estivesse resguardado na placenta da Nossa Senhora –, mas era preciso tirá-lo de lá antes que se extinguisse o fôlego de vida que o fazia resistir.
Seokjin, guiado pelo motim infernal dos anjos caídos, voou até Jungkook. Seus três pares de asas estendidos cobriram a visão dos diabos em danação, mas não faziam nada a respeito do alvoroço que suas vozes causavam. Era horrível e perturbador, mas o arcanjo mantinha o mesmo semblante imperturbável e sereno de sempre. Namjoon também pousou ao lado de Jungkook, seus pés graciosamente tocando o chão. Ele trocou um olhar com Seokjin e, sem nada dizer, os dois tomaram a mesma decisão. Seokjin afastou os braços de Jungkook da virgem abatida e a fez flutuar à altura de seus narizes. O anjo com feições de menino apenas chorava, as lágrimas criando rachaduras em seu rosto macilento e ebóreo. Ele tinha testemunhado o sacrifício de um santo. Da mãe de Deus. Talvez suas lágrimas nunca mais cessassem.
Enquanto Seokjin e Namjoon extraíam o feto bendito, forçando um parto cuja hora estava longe de chegar, Jungkook se arrastava trôpego até Jimin. O Criador os tinha amaldiçoado a todos. Para seguir existindo, eles agora precisavam de sangue, sangue sujo e torpe como o que corria nas veias dos assassinos e das criaturas mais execráveis. A fome os devoraria antes que eles pudessem pensar em saciá-la; os poria loucos e desesperados. Tal condição era mais que um castigo crudelíssimo – era justo, era uma condenação. A morte dentro da própria vida. A sede por sangue os faria urrar e rasgar com suas longas unhas a própria pele. Nunca satisfeitos, sempre sedentos. Jungkook sentiria compaixão deles, de Jimin sobretudo, se sua dor já não tivesse entorpecido seus sentidos, mente e espírito. Ele estava em pedaços. Jimin fizera aquilo por nenhum outro motivo além do prazer de vê-lo fracassar. Jungkook deveria proteger a criança e guardar a mãe. Perante os seres celestiais, o Criador e as criaturas, ele agora não passava de um fraco. E era tudo culpa de Jimin.
“Adeus, Jungkook”, Jimin sibilou. Sua voz débil quase não se fazia ouvir; para pronunciar aquelas palavras, ele tivera que fazer um esforço visível. Era como uma maldição; qualquer coisa que dissesse teria o tom de um suspiro de dor. Pior, poderia soar como um urro revoltado. E isso nem era o mais terrível de sua nova condição. “Eu vou voltar”
Jungkook balançou a cabeça. Quando estendeu as mãos para tocar o rosto tão amado, as faces do traidor que tinha massacrado o coração que com seu falso amor fizera despertar, seus dedos queimaram. A pele dele estava em brasas.
“Por que você fez isso?”, Jungkook perguntou, embora já soubesse que não deveria esperar uma resposta, que qualquer uma que viesse não seria sincera, nem iria satisfazê-lo. Jimin sorriu, seus caninos crescidos machucando o canto de seus lábios encarnados de sangue. “Você condenou a si mesmo e a todos os seus iguais... E a mim!”
“Perdão”, ele disse, e Jungkook sabia que ele não ia parar por aí, mas seu corpo era um saco de ossos quebrados, em chamas e rebentando em chagas. Jimin tinha sentido tantos ciúmes. Estivera a ponto de não suportar.
“Você matou a virgem. Atentou contra a vida do Messias –”
As coisas que Jungkook não conseguiu dizer: você está condenado. Nunca mais haverá perdão pra você. Ou vida para nós. Eu e você – você nos destruiu.
“Eu me rebelei”, Jimin fechou os olhos, as lágrimas abrindo feridas em suas bochechas ensanguentadas. “É o que eu faço; eu me rebelo”
Jungkook pôs as duas mãos no pescoço dele. Queria matá-lo. Queria sufocá-lo, até que não restasse ar em seus pulmões. Até que ele fosse um corpo sem vida. O demônio nada fez para impedi-lo, pois sabia que não carecia. Jungkook não faria nada que o ferisse. Ele podia ter a intenção, podia até mesmo tentar. Mas, quando chegasse a hora, ele se acovardaria.
“Perdão”
O choro do Messias ecoou na penumbra, mais alto e forte do que tudo a sua volta.
“Eu vou voltar”, curvando o pescoço, ele alcançou com os lábios o dorso da mão de Jungkook e o beijou. “Eu te amo, Jungkookie. E eu vou voltar, eu prometo”
Jungkook o soltou e Jimin enfim caiu, estatelado no chão, os membros moles como se fossem feitos apenas de carne. O arcanjo gritou para os céus. Ele também fora amaldiçoado. Era vontade de Deus? Permissão de Deus? Séculos se passariam, milênios e eras, e ele não iria entender o que era aquilo que sentia. Um desejo humano, carnal e impetuoso. Se alguma força lhe tivesse sobrado, possuiria Jimin naquele instante, e nem se importaria com o fato de que ele estava desmaiado e inconsciente. Seria a última vez em muito tempo. E, afinal, Jungkook o amava. Aquele corpo lacerado, ainda mais que a alma corrompida. Ele o amava, sim. Tanto.
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