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História Noite infernal - Quem sou eu? (Parte 2)


Escrita por: Bellalm

Capítulo 3 - Quem sou eu? (Parte 2)


- Estou bonita, irmã? – a mulher de cabelos compridos e loiros perguntou.

Ela se olhava na frente de um espelho antigo e sujo, com uma grande rachadura no meio. O quarto também estava em condições semelhantes: completamente empoeirado, com a madeira dos móveis apodrecida e as plantas que o invadiam pela janela e pelas frestas na parede. À medida que se moviam, o piso rangia como se estivesse prestes a se romper. A casinha tinha apenas três cômodos, e todos muito pequenos. No quarto em que dividiam, apenas uma cama.

- Você é a mais bela criatura desse mundo, irmã. – a outra respondeu, rindo de orelha a orelha.

A que estava em frente ao espelho revirou os olhos. Aquela resposta era irônica porque as duas eram idênticas: os cabelos lisos e loiros, até os pés, os olhos verdes e claros, os traços delicados e joviais, os lábios carnudos, o corpo esguio e elegante. Não havia absolutamente nada que pudesse diferenciá-las fisicamente.

Mas suas roupas ajudavam. A garota vaidosa, que encarava fixamente o próprio reflexo no espelho, usava um vestido longo, vermelho, com um pano nobre, que parecia ser seda. A parte de cima, muito apertada na cintura, tinha bordados elegantes e abstratos. As mangas do vestido eram longas e cobriam seus braços, mas ele deixava os ombros e o colo completamente nus, e ela amarrou um colar ao pescoço com uma pedra da mesma cor que as roupas, em formato de gota. Estava elegante e bela mas, principalmente, exótica. Passou uma tintura vermelha nos lábios, ainda combinando com o vestido e a pedra, deixando-os ainda mais desenhados e fazendo-os parecer ainda mais carnudos. No restante do rosto, nada de maquiagem. Não era como se precisasse, afinal.

- Quero ser mais bela que você, irmã. – ela admitiu, olhando para a outra da cabeça aos pés.

Estava empolgada, embora não deixasse transparecer. Não era sempre que podia se vestir daquela forma; aqueles trajes eram para ocasiões especiais. No entanto, ela era uma mulher extremamente contida, assim como sua expressão vaga e enigmática, ou sua voz sem nenhuma emoção, mas muito sedutora. A irmã, por outro lado, era um poço de emoções que transbordavam. Embora fossem fisicamente idênticas, pareciam pessoas completamente diferentes. A outra andava de um lado para o outro no quarto pequeno, quase se esbarrando na irmã e nos móveis, mas se desviava com uma agilidade surpreendente.

Usava aquele mesmo vestido velho, bege e encolhido de camponesa e não se incomodava com isso. Sua voz era animada e até mesmo infantil e seus olhos verdes estavam sempre brilhando de empolgação. Cada um de seus gestos esbanjava energia e animação, e um sorriso grande estampava seu rosto, deixando à mostra seus dentes pequeninos e muito brancos. Aproximou-se da irmã no espelho, erguendo os cabelos como se fosse prendê-los.

- Eu quero cortar meu cabelo, irmã. Quero um corte jovem e refrescante, como de algumas meninas que um dia vi. Aqui. – ela apontou para a nuca, indicando o tamanho. – Assim, você será a única.

A outra pensou um pouco, como se estivesse considerando a ideia. Olhou para as mãos da irmã, notando que ela já segurava com firmeza uma navalha. Ela aguardava ansiosamente por um sinal de aprovação, com a expressão de uma criança inocente fazendo charme. Por fim, a outra balançou a cabeça, negando, e desviando o olhar da irmã.

- Não pode. Não podemos. O que ela vai dizer? – ela agora sussurrou, olhando para o lado de fora. – Precisamos ser idênticas. Se fizer, ela vai ficar zangada. Nós não queremos que ela fique zangada, queremos?

A outra engoliu em seco e não discutiu. Mas não largou a navalha; guardou-a em uma parte secreta do vestido. Voltou a andar animadamente pelo quarto, como se não tivesse sido contrariada e nada a incomodasse. As duas, por fim, olharam novamente de forma hesitante e cautelosa para o lado de fora do quarto e, uma por uma, pularam a janela. No outro cômodo, entre todas as bugigangas espalhadas pelo chão e pelas paredes, havia uma terceira mulher de costas, com os cabelos loiros se arrastando no chão, e completamente estática.

Não viu as outras duas escaparem, nem tirou os olhos do que quer que estivesse à sua frente. Não pude ver seu rosto, mas tive certeza: os olhos verdes, a boca carnuda, os traços jovens. E uma energia inexplicável.

 

As duas chegaram juntas. As festividades já haviam começado e em todos os lugares se ouvia música e risadas, e era possível ver os enfeites extravagantes e vermelhos, além de sentir o cheiro das maravilhosas comidas. Pararam no ponto de encontros mais próximo de casa, na entrada da floresta. Observaram atentamente as pessoas andando de um lado para o outro animadamente e cada uma delas aproveitando da maneira que lhe apetecia.

Não era sempre que podiam sair de casa. Aliás, não saíam há muitos anos. Ver gente, movimentação e vida era excelente e deslumbrante. Estavam proibidas de sair até a noite, mas uma escapulida não poderia fazer mal. Voltariam e ela não notaria sequer que estiveram fora, e ninguém ficaria zangado.

Ninguém seria punido.

Muitos olhares se voltaram na direção das duas, não só por sua beleza estonteante e única, mas pela incomum semelhança entre elas. Não as conheciam nem nunca as tinham visto antes; no entanto, ninguém teve coragem de se aproximar e conversar enquanto elas caminhavam, olhando tudo com uma atenção desconcertante.

Uma delas logo começou a correr. Estava descalça. Embora fosse uma mulher, se comportava como uma criança. Andava dando pulinhos e risadinhas, como se aquele dia fosse o mais feliz de sua vida. Na verdade, ela era adorável.

Pelo menos para a maior parte das pessoas.

Vince tremeu dos pés à cabeça. Já tinha a visto antes; jamais se esqueceria daquela aparência e aquelas roupas. Ainda assim, ela parecia completamente diferente. No meio da floresta, algumas horas antes, era uma mulher elegante e sedutora, completamente enigmática. Agora agia como uma menina contente e animada, infantil e até mesmo um pouco lunática. Talvez estivesse fingindo, mas ele tinha certeza de que era ela. De que ela tinha levado seus amigos para o meio da floresta, e agora estava de volta. E eles não.

Quis confrontá-la, mas estava apavorado. Também não sabia o que dizer; seria mesmo adequado acusá-la, quando não tinha provas? Ou devia agir naturalmente, como quem não quer nada, esperando arrancar algo dela? Ele nunca foi bom em conversar com mulheres; já podia ver a si mesmo gaguejando e falando coisas idiotas.

Decidiu espreitá-la como fazia com os animais. Atacaria no momento certo e a pegaria de surpresa. A observou enquanto ela se aproximava de algumas crianças que brincavam. Ela mastigava com a boca muito cheia, ainda segurando uma coxa de frango numa das mãos.

- Me deixem brincar. – ela disse às crianças, com um sorriso que arrancou calafrios a Vince. – Eu quero brincar também.

As crianças pareceram hesitantes, mas logo concordaram. Embora ela se comportasse de forma estranha e tivesse essa áurea sombria ao seu redor, era linda como uma princesa. As crianças pareciam se dar conta disso, pois a olhavam com encantamento e admiração. Ela logo se sentou com elas no chão e começaram a brincar, cantarolando canções infantis e batendo as palmas das mãos num jogo que nem eu nem Vince compreendíamos.

A outra, por outro lado, parecia uma espécie de divindade enquanto andava lentamente, quase flutuando pelo chão cheio de folhas secas e terra. Não havia uma única pessoa que não a olhasse com uma mistura de espanto e atração. Se fosse durante a noite, poderiam confundi-la com uma das criaturas místicas de que ouviam falar nas lendas. Ela parecia gostar da cor vermelha, já que a vestia da cabeça aos pés. Olhava minuciosamente tudo ao seu redor, exceto as pessoas. Parou em frente a uma barraca de bebidas e o vendedor quase derrubou uma garrafa no chão.

- Me deixe beber. – ela pediu, tocando uma garrafa de vinho com a ponta dos dedos. Seu rosto era completamente vazio e sem expressão, como de uma escultura. A voz era sussurrada e sedutora. – Eu quero beber também.

O vendedor, hipnotizado, encheu um copo e a ofereceu. A mulher o aceitou, mas logo se explicou, ao ver que alimentos e bebidas de graça estavam nas mesas, e que as coisas nas barracas tinham um preço.

- Eu não tenho nada para trocar.

O vendedor insistiu para que ela ficasse com o vinho e que não precisaria pagar nada. Uma garota bonita como ela não deveria ser contrariada, ele respondeu. Ela sequer sorriu em agradecimento e passou a ignorá-lo completamente. Bebeu um gole do vinho e continuou olhando para o nada, como se um milhão de coisas se passassem em sua cabeça.

- Esse vinho é uma merda. – uma voz masculina comentou. Ela virou-se e viu o rapaz de cabelos encaracolados e loiros.

Esperou que ele continuasse. Charles, como todos os outros, vinha a observando desde que chegou. Sua beleza era tamanha que ele estava dividido entre o fascínio e a raiva. Sentia-se impotente, incapaz de um dia ser belo assim. Qual era o segredo dela? Ele não aceitava que ela fosse mais bela. Que chamasse mais atenção. Mas ao mesmo tempo queria se aproximar dela. Queria observá-la. Queria ser envolvido por aquela beleza pura e completamente perturbadora, e falar com ela o ajudava a testar qual dos dois sentimentos o consumiria a partir de então.

- Você deveria provar um de qualidade. A julgar pelas suas roupas, não deve estar acostumada a coisa barata e vagabunda. – ele continuou.

Charles não pôde deixar de notar as vestes dela. Não eram das melhores, as que ele estava acostumado a ver nas damas mais ricas e elegantes, mas era definitivamente de alto nível. E aquela joia também parecia verdadeira e muito valiosa.

- Não é ruim. – ela respondeu apenas.

Devia gostar mesmo de bebidas alcoólicas para não criticar aquela mistura aguada que costumavam chamar de vinho.

- O que uma dama elegante como você faz num lugar tão baixo como esse? – perguntou, incapaz de contar sua curiosidade.

- Apenas vendo. – ela respondeu vagamente, virando a cabeça de forma charmosa.

Seus movimentos pareciam ensaiados. Às vezes ela se assemelhava a uma boneca de cordas. Ficar perto dela se tornava cada vez mais desconcertante, principalmente porque, agora, ele era o único foco da atenção dela, que o olhava fixamente, com aquela expressão enigmática no rosto.

- Se gostou disso, vai amar os vinhos de alta qualidade na parte nobre da cidade. Agora mesmo devem estar festejando como nós, mas de forma muito melhor.

- Como sabe? – ela deu um passo em sua direção, diminuindo a distância entre os dois. Comovido pelo súbito interesse dela, Charles se pôs a falar sem se preocupar que estivesse falando demais.

- Porque eu já vivi lá.

Enquanto isso, Vince continuava observando a outra em suas brincadeiras de criança. Depois eles se levantaram e começaram a correr um atrás do outro, gritando e gargalhando. As pessoas pareciam encantadas com a alma pura e infantil daquela mulher. Eles logo começaram a dançar juntos, com movimentos exagerados e muitos saltos e giros. Vince ficou completamente hipnotizado com a maneira com que ela girava sem parar, na ponta dos pés, a barra do vestido e os cabelos imensos girando junto com ela. E aquele sorriso no rosto não desaparecia em momento algum. Havia algo de perturbador naquele sorriso. E enquanto ela girava, rodeada de crianças, ele se perguntou se ela era Deus ou o Diabo.

- Eu nasci em uma família pobre, de criados. Desde criança trabalhei para uma das famílias mais ricas da cidade. – Charles continuou contando. – Talvez por ter sido uma criança tão bonita, o casal acabou me apadrinhando e me tornei o criado particular de seu filho único, que tinha a minha idade. Crescemos juntos, como amigos, mas bem cientes de nossa distância social. Eu tinha direito a algumas regalias e presentes, então estava muito satisfeito. Meus pais acabaram falecendo e estou sozinho no mundo. Meus patrões me liberaram hoje para que eu pudesse me divertir aqui, com os pobres. Se eu tivesse ficado lá, teria que servi-los, quando eu deveria pertencer àquele lugar.

Vince estava cada vez mais assustado e temeroso. Sentia que algo ruim estava prestes a acontecer. A mulher estava de mãos dadas com as crianças e eles giravam juntos. Havia pelo menos cinco delas, meninos e meninas. Ele queria intervir e impedir o que quer que estivesse prestes a acontecer, mas era covarde demais para isso. Só conseguia ficar observando.

- Esse rapaz, com a minha idade... Chama-se Vincent. Ele gostava de dizer que éramos como irmãos, quando criança, mas começamos a nos afastar depois de crescidos. Começamos a ver que jamais poderíamos ser irmãos, sendo de mundos tão diferentes. E sendo tão diferentes um do outro também. Vincent é simplesmente um porco. Um troglodita. Sempre gostou das coisas mais chulas, como andar a cavalo e praticar lutas. Tem os ombros largos e braços fortes, mais parece um lenhador. Gosta de fugir de casa à noite para ir beber nas tabernas mais imundas e sempre se mete em brigas. Além de ser completamente grosseiro e ignorante. Ele joga fora todas as oportunidades que tem. Enquanto eu, tão bonito e inteligente, estou aqui, cercado de podridão. Sempre sonhei em ser rico e reconhecido pelo que sou, enquanto ele... Não dá valor algum.

A musiquinha que a mulher e as crianças cantarolavam era inocente e infantil, mas subitamente parecia macabra. Falava sobre um lobo que se vestia de ovelha, para que pudesse se camuflar entre elas. Era completamente sugestivo.

- Esse lugar onde sonha viver... Fale mais sobre esse lugar. – a mulher pediu.

Charles vinha falando todas aquelas coisas sem nem se dar conta, perdido em seus pensamentos e lembranças, quase como se falasse sozinho. Ficou constrangido por ter se empolgado tanto, mas sorriu triunfante ao notar que ela estava curiosa.

- É lindo. Todas as pessoas são bem vestidas e elegantes. As mulheres com seus vestidos rodados e rostos maquiados. Os homens com perfumes caros e ternos elaborados. As crianças nem parecem crianças... Ficam sentadas comportadamente, como bonecas. A comida é deliciosa, a música de alta classe... E as bebidas são verdadeiros presentes dos deuses.

- Eu gostaria de conhecer esse lugar. – ela disse, fazendo com que Charles se calasse imediatamente e ficasse boquiaberto. – Me leve para conhecer esse lugar. Eu e minha irmã. Nós queremos ver tudo.

Charles, ou qualquer outra pessoa, seria incapaz de dizer não.

E Vince, já preparado para o pior, via a mulher caminhar com as crianças de mãos dadas floresta adentro, afastando-se de todos, que fingiam não ver o que acontecia. Mas ele sabia. Podia vê-los em câmera lenta, caminhando com pulinhos, gargalhando e cantarolando a música sobre o lobo disfarçado de ovelha. Viu novamente os caçadores caminhando de mãos dadas com ela, desaparecendo por entre as árvores. Não voltaram mais, e algo o dizia que não voltariam. Doía imaginar o que seria feito com eles. O que seria feito com aquelas crianças.

Antes que ele pudesse se arrepender para sempre por não tê-la impedido, ela soltou a mão das crianças e comentou algo com um sorriso acolhedor no rosto. Parecia se desculpar. Afastou-se da criança, caminhando até a outra mulher, idêntica, que estava logo à frente com um rapaz de cabelos loiros tão bonito quanto as duas.

As crianças voltaram a brincar.

Nada aconteceu. Mas a tensão ainda não havia desaparecido.



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