Capítulo 3 - Pronto pra lutar
Gelei por um momento. Virar um deles? Mas que merda...
- Na verdade, como você já deve ter percebido, tudo aqui gira em torno da morte. Vou te mostrar uma coisa. Não fique assustado - disse ela.
Ela estendeu o braço direito. Ele começou a se deformar. Ele ficou cinza - escuro, cor de metal. Seus dedos se juntaram e fundiram, tornando o formato de uma ponta e se tornando extremamente afiados. O mesmo aconteceu com o resto de seu braço.
Quando ela acabou, o membro tinha virado uma perfeita e espessa lâmina de aço.
- Algumas semanas depois de chegar aqui, meu grupo de sobreviventes se dividiu com relação a uma mudança de local e de líderes. O conflito ficou muito violento do dia pra noite. Eu, como grande apoiadora de um dos lados, fui apunhalada por um adversário.
- O sangue começou a escorrer. Logo em seguida, a jorrar. O cara largou a faca, mas deixou ela fincada no meu estômago. Senti minha consciência se esvaindo. "Eu vou morrer assim? Aqui? Desse modo?", pensei. Primeiro tive tristesa. Angústia. Mas depois virou medo. E raiva.
- Eu tentava me manter acordada. Tentava desesperadamente. Mas a dor era excrucitante, e tudo começou a escurecer. Eu não conseguia enxergar. Não conseguia me manter acordada.
- Mas eu sabia que se eu desmaiasse, estaria morta. Acabaria ali. Tudo pelo que eu lutei teria sido em vão. Era extremamente mais fácil ficar ali. A dor já estava indo embora, desaparecendo. Eu só precisava fechar os olhos, e acabaria. Nunca mais precisaria lutar. Finalmente paz, entende?
- Mas não era isso que eu queria. Eu não queria paz. Eu queria voltar. Eu queria viver. Eu lembro de gritar mais alto do que nunca, e lembro da dor que já ia desaparecendo voltar, muito pior que antes. Meu corpo implorava por ceder, mas era tarde. Eu não ia deixar. Não ia morrer ali. Não daquele jeito.
- E tão rápido quanto a dor veio... ela foi. De repente eu não sentia mais nada. A dor tinha passado. E mais que isso: a pele, a carne em torno da faca... era de metal. O mesmo metal que ela. Eu fechei meus dedos em torno do cabo da lâmina, e a arranquei. Levantei e olhei pro meu assassino.
- Nunca tinha visto alguém tão perplexo. E eu queimava de raiva. Ele começou a gaguejar, mas eu não fiquei ora ouvir o que ele tinha a dizer. Cortei a garganta dele em uma fração de segundo. E com a mão - disse ela, estendendo novamente o braço, e depois fazendo - o voltar ao normal.
- E eu não fui a única. Os de nós que estiveram a beira da morte, mas escolheram ficar e lutar, voltaram com poderes relacionados à sua "causa mortis". Mas Vlad... não é uma escolha fácil. Aguentar a dor e ficar... pode parecer suportável na teoria, mas quando o assunto é "dor", é sempre muito pior na prática.
- Mas quando são as pragas, é diferente. Quem consegue aguentar a dor e ficar, se está sendo morto por uma delas, vira uma. Existe uma excessão no nosso grupo... mas isso não vem ao caso. É um em cada... eu nem sei quantos dos nossos viraram aquelas coisas. E além disso, ele ficou um pouco... esquece. Eu nem devia estar falando dele. A questão é que se acontecer de você estar à beira da morte, lembre disso: nesse mundo, nunca é tarde pra lutar. Você sempre pode resistir. Só estou te contando isso agora porque nunca se sabe quando algo vai dar errado.
- Por quê estamos em pé!? Senta aí, ainda tenho muita coisa pra explicar. E as pragas não parecem estar chegando - disse ela, e a gente se sentou.
- Existem atalhos pra sobreviver aqui. O primeiro e básico: evitar as pragas. Sempre evitar as pragas. Ninguém ganha nada matando elas. Segundo: escolher muito, MUITO bem seus aliados, e se manter sempre o mais próximo possível deles. Você já sabe o que me aconteceu por não ter feito isso. Mas existem poucos... muito poucos que conseguem sobreviver sozinhos. Há mais ou menos uma hora você conheçou um deles - disse ela.
- O garoto de cabelo prateado... - eu falei, refletindo.
- Sim. Eu tô seguindo esse cara a algum tempo. Eu quero ele no meu grupo. - Muita gente é forte sozinha, mas quem consegue trabalhar em grupo fica mais. Não vou dizer que é fácil, escolher os aliados certos e conviver com eles... mas é melhor que morrer ao primeiro descuido - disse ela.
Fiquei refletindo por um momento. Tentando assimilar tudo. Quando não me senti mais tonto, falei.
- Bom... acho que dei muita sorte de te encontrar então. Imagino que vá me querer no seu grupo, já que está me explicando tudo isso... - disse. Ela suspirou de um jeito cansado antes de responder.
- É política do meu grupo de sobreviventes tentar salvar todos que nós pudermos... mesmo que isso atrapalhe mais que ajude. Nós temos trinda e duas pessoas, sem contar você, e quatro delas tem poderes, contando comigo. Tentamos treinar todos em combate, pelo menos minimamente, mas temos crianças... e idosos... sem falar daqueles que não querem lutar - respondeu ela.
- E... suprimentos? Banheiros? Lugar pra ficar? Vocês têm um esconderijo seguro, não têm? - perguntei, apreensivo.
- Sim, temos, e não foi fácil construí - lo. Na verdade, não "construímos" exatamente, mas cavamos e juntamos muitas placas de aço e grades pra criá - lo. E importante: nesse mundo, não sentimos fome. Portanto, não precisamos de banheiro. Sentimos sede, na verdade, mas não urinamos, embora bebamos água. Não pense muito sobre isso ou vai ter dor de cabeça - explicou ela, tarde demais. Eu já estava com dor de cabeça. Ficamos um tempo sem falar nada, depois disso. Fiquei procurando mais alguma dúvida pra não ter que perguntar depois. Não queria tirar uma curiosidade técnica com um monstro de cem quilos correndo na minha direção a cinquanta quilômetros por hora.
- Ah, sim, sobre a cidade... nós estamos em uma ilha, Vlad. Nenhum de nós sabe quem colocou estes prédios aqui. Parecem intocados, tirando a nossa presença e a dos monstros. Não tem mobília. Mas têm encanamento e fiação elétrica, que alguns de nós aprendemos a manipular e aproveitar. Claro que ajuda ter na equipe um cara que controla correntes elétricas, mas enfim... voltando ao assunto, a cidade acaba quase no litoral. Nós já usamos barcos pra tentar descobrir o que há além - mar, mas não fomos muito longe, até porquê já temos preocupações o suficiente só com o que têm por aqui... - concluiu ela, quebrando o silêncio. Mas não ficou muito tempo sem falar.
- Olha, eu sei. Não faz sentido. Esse lugar não faz sentido. Nem o que nós fazemos aqui, faz sentido. Mas não podemos ficar parados nos queixando. Assim que chegamos aqui, muitos dos nossos conceitos entram em conflito, mas não temos tempo pra perder. Temos que nos adaptar. Uma vez que você aceita que esta é sua nova realidade, a dor e a confusão diminuem. Quando você conseguir focar no seu objetivo e não hesitar, vai estar pronto pra lutar. Vai estar pronto pra sobreviver - concluiu ela. Aquilo me motivou. Repeti as partes importantes pra mim mesmo. "Não temos tempo pra perder, temos que nos adaptar." "Quando conseguir focar no seu objetivo, vai estar pronto pra sobreviver."
Movido pela animação, levantei.
- Então vamos. Quero chegar logo no esconderijo, e começar logo a treinar. Quando o próximo daquelas coisas aparecer, quero estar pronto - disse, determinado.
Ela mudou de expressão algumas vezes. Primeiro surpresa, depois curiosidade, e então deu uma curta risada. Em seguida, levantou.
- Então ok, empolgadinho. Vamos andando. Temos alguns quarteirões pra cobrir - respondeu ela. Nós viramos na direção que ela indicava, e começamos a caminhar.