(Viktor)
Por que Deus escolheu-me para ser mais um portador de câncer? Qual era o seu objetivo em observar-me tossir sangue a noite inteira ao mesmo tempo que não respiro?
Estava sentado na poltrona que fica ao lado de minha cama com as pernas encolhidas assistindo as enfermeiras limparem a sujeira da noite anterior. Na madrugada passada havia tido outro surto e jorrei sangue pela cama toda, além de acordar assustado por não estar conseguindo respirar. Elas trocaram o lençol e puseram um novo que eu já o via sujo outra vez e isso se repetiria até que eu estivesse deitado em um caixão.
— A cama está pronta Sr. Nikiforov, precisa de alguma coisa? — perguntou uma delas sorrindo enquanto a outra saia do quarto.
Neguei com a cabeça pegando o suporte com o soro e dirigindo-me para o banheiro. Entrei e fechei a porta. Caminhei até a pia larga e observei meu reflexo no espelho que ocupava toda a parede. Meu cabelo estava bagunçado, minha pele mais pálida que o normal e as maçãs de meus rosto já eram bastante visíveis devido a doença. Resumindo: estava quase morto. As olheiras profundas confessavam minhas insônias, e isso eu não conseguia esconder de ninguém. Comecei sentir náusea e tontura, sentei na privada apoiando-me no soro para que eu não sofresse uma queda e acabasse por morrer em ter batido a cabeça. Fechei os olhos em protesto para que a insuportável dor parasse.
— Viktor? — sua voz jovem e familiar acariciava a porta do banheiro. "Plisetsky?"
Levantei devagar e abri a porta encontrando Yuri com algumas sacolas acompanhado de Mila.
— Como anda o campeão? — sorriu largamente.
Não éramos tão próximos antes de eu adoecer. Na verdade Plisetsky odiava-me por não cumprir a maioria de minhas promessas a ele. Isso o irritava muito, mas depois de me encontrar no banheiro aquela vez ele visitava-me nas horas vagas.
Sorri notando seu nariz ruborizado pelo frio.
— Mais frutas? — perguntei fazendo sinal para que ele e Mila sentassem em minha cama.
— Sim, frutas, porque você precisa de vitaminas! — disse Mila ajudando-me sentar na cama. Os dois logo sentaram-se a minha frente, um a cada lado da cama.
Yuri retirou seu cachecol preto e o lançou na poltrona bege onde estive sentado mais cedo.
— Chris está nas finais do campeonato, ele disse que quando tiver tempo sobrando quer te ver. Ele não para de falar em você. — Yuri comentou revirando os olhos enquanto levava a boca um bloco de chocolate que tentei pegar, mas o mesmo esquivou-se.
— Falei com ele mais cedo, parece que Chris será a próxima lenda. — disse eu agora mordendo uma maçã. Eu amo a amizade entre Chris e eu, sempre nos damos bem e eu sempre o apoiarei de corpo e alma.
— Pode ser, mas você ainda é a raridade. — Mila pôs a mão em meu joelho dobrado após manifestar-se.
Eu realmente estava rodeado de pessoas boas. Assim que o mundo soube da notícia da minha internação, as redes sociais não pararam. O mundo estava a me proteger. Meus fãs então, como eu os amo. Tentava responder o máximo de pessoas que conseguia, às vezes dava uma pausa para poder chorar ao ler e reler o coração deles na tela de meu notebook. Sinto tanta falta de seus gritos e aplausos.
— Mas e a mamãe? — perguntou Plisestky referindo-se a ausência de minha mãe. Ele a chamava assim por sermos próximos e minha mãe o trata como um irmão meu. Lembrei que ela retornou a minha casa para pegar algumas roupas limpas.
— Está bem, foi buscar algumas coisas em minha casa. Ela não deve demorar já que faz uma hora e meia que saiu daqui. — Yuri fez bico tornando sua face pensativa.
Ouvimos a porta de meu quarto ser aberta revelando o Dr. Hans.
— Olá. — disse sorrindo logo em seguida. — Preciso que emprestem-me Viktor, temos alguns exames marcados para agora.
Respirei fundo e sorri amarelo para Yuri e Mila que despediram-se de mim e logo saíram.
O doutor ajudou-me a levantar e então fomos fazer os exames, tive uma leve recaída nos resultados, mas isso por eu não estar tomando os remédios como antes. Ele me receitou mais e eu sai de seu consultório. Vaguei um pouco sob os corredores e assim que estava no departamento de câncer infantil, notei que não havia criança alguma na sala de atividades em que elas passavam a metade da manhã brincando. Foi aí então que lembrei da aula de música, mas lembrei que na noite anterior havia apertado qualquer botão do elevador e quando a Dra. Nishigori levou-me ao meu quarto também não tinha perguntado o número do andar.
— Com licença, poderia me dizer o andar da aula de música? Disseram-me que começaria as 10:00am, mas não sei o andar. — perguntei para uma enfermeira que estava de passagem.
Ela olhou-me surpresa. Todos naquele hospital sabiam de minha baixa autoestima, não interessava-me por nenhum tipo de terapia muito menos aqueles grupos de auto ajuda. Mantinha-me longe das pessoas por não gostar de falar sobre minha Leucemia.
— Oh, é no décimo terceiro andar. Participe, Sr. Viktor. — disse sorrindo distanciando-se dando uma breve olhada na prancheta em suas mãos.
Estava sentindo algo totalmente diferente do que estava acostumado a sentir. Sentia uma leve brisa em meu pulmão, quase como uma caricia indicando que eu estava ansioso. Sentia meu estômago formigar e minhas mãos suavam. De repente uma leve falta de ar escapava de meu peito.
"Droga, o que é isso agora?"
Caminhei até o elevador no lado esquerdo do corredor, entrei e assim que apertei o botão do andar notei que estava tremendo. Observei minha mão e logo o oxigênio escapava um pouco mais. As portas abriram e uma onda de notas melodiosas invadiram meus ouvidos. A música havia tomado o corredor inteiro, qualquer um que pairasse por ele seria enfeitiçado. Caminhei a passos lentos com os olhos fechados em direção a porta da sala de música. Quando cheguei a sua frente encontrei todas as dez crianças do câncer sentadas com alguns instrumentos em suas mãos como os pratos, uma delas segurava o violão e o restante assistia. As duas crianças descansavam os instrumentos em seus colos olhando para o músico a sua frente. Olhei para o homem sentado atrás das teclas e era como se sua música curasse meu câncer. Aquela melodia expulsava todos os glóbulos negativos de meu corpo tornando-me leve, sentia a juventude bater na porta de minha alma acordando-me. Qual era seu nome? Qual era o nome dessa música? Passado os primeiros minutos e as crianças todas juntas cantavam no idioma inglês arrancando um sorriso do professor. Ele observava seus alunos empenhados sentados naquelas almofadas coloridas.
"Estou alucinando."
Ouvi o refrão e seus olhos focaram nos meus por trás do vidro da porta. Sorriu por talvez reconhecer-me. Meu coração seguia o mesmo ritmo das teclas, ele tocava como se soubesse tudo sobre mim, sobre minhas dores e a ausência vontade de estar vivo. Sua música estava me salvando de um lugar escuro e vazio, estava afogado no calor do abraço daquela melodia. Fechei meus olhos e a vontade de patinar ao seu som invadiu-me. Imaginava-me saltando sobre o gelo, ouvindo o faiscar do metal e o ar gélido do chão. Fazia tanto tempo que não sentia as lágrimas de meu coração transbordar pelos meus olhos. Seus traços levemente asiáticos estavam direcionados para as crianças dando-me sua visão de perfil e isso levou-me para longe de meu corpo.
"Por favor, não pare, você está me salvando."
Encontrava-me em outra dimensão e eu não queria que aquilo tivesse um fim. Ouvi o cessar do piano e as crianças bater palmas. Abri meus olhos e encontrei com os do professor, ele olhava-me perfurando minhas retinas procurando o último vestígio de machucado. Eu queria correr e dizer que ele era o anjo de minha cura e...
— Oi... é... Viktor, sim? — disse ele agora a minha frente coçando a nuca nervosamente. Suas bochechas levemente coradas e os olhos castanhos tão brilhantes quanto a luz de Sírius na noite.
Quando? Quando saiu de trás do piano para perto de mim? Eu... eu acho que estive em estado de hipnose, eu acho que, por um longo momento, eu fazia parte daquela música.
Foquei em seus olhos, abri meus lábios mas nada saiu. Estava olhando seus olhos e ele para os meus. Perdia o oxigênio mais uma vez, mas não pelo câncer e sim, por ele.
Eu estava assustado. Sai a passos acelerados em direção ao elevador sem olhar para trás. Eu queria, queria ficar e saber mais sobre sua música e lhe contar a galáxia de sentimentos embaralhados que nasceu dentro de mim enquanto estive conectado a música. Minha vontade era de abrir meu peito para que ele pudesse enxergar o câncer que por alguns segundos deixou de existir. Entrei no elevador e escorreguei pela sua parede lisa até o chão.
"O que aconteceu comigo?"
As portas do elevador se abriram encontrei a Dra. Nishigori.
— Viktor! O que está fazendo no chão!? Acho que agora precisamos que você use cadeira de rodas. Sente-se bem? — perguntava dentro do elevador puxando-me para o alto.
Sua voz estava distante de mim, sentia que um fio invisível conectava eu àquele pianista.
— Eu estou bem e não preciso de cadeira de rodas. Caminhei bastante pelos corredores hoje e senti um pouco de tontura, por isso estava sentado. — disse apoiando-me no suporte de soro para levantar-me.
A Dra. Nishigori encarou-me por alguns minutos aflita e direcionou aquela irritante lanterna em meus olhos.
— Tudo bem, já que você diz... estou indo para a sala de música, não quer me acompanhar?
"Eu ainda consigo sentir a música correr em minhas veias."
— Não, obrigado. — encarei seus olhos brilhantes ao pronunciar "música" e então sai do elevador. Ouvi as portas serem fechadas atrás de mim e caminhei até meu quarto.
Deitei na cama olhando fixamente para o teto. Estava fora de orbita. As notas que levaram-me para longe desse hospital, os olhos castanhos acariciando minha face e sua voz melodiosa tanto quanto o piano.
"... Viktor, sim?"
Meu peito subia e descia ferozmente, pus a mão em cima para que talvez acalmasse mas então deixei um sorriso fraco desenhar meus lábios.
"Preciso ouvi-lo outra vez."
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