O despertador toca. Em uma sequência inconscientemente coreografada pela rotina, ele levanta -não exatamente acordado, tampouco sonâmbulo; talvez algo no meio- e se dirige para o banheiro. No espelho, vê os reflexos da noite em claro: estava péssimo. Seu cabelo, agora ruivo claro, estava amassado, revelando a ausência do pente, perdido em meio aos livros abertos espalhados pela casa. Seus olhos, que costumavam iluminar seu rosto, estavam mais escuros que o normal, cercados por uma aura melancólica, vazia. Sua imagem não fazia jus a sua idade. Como pudera envelhecer tanto em apenas poucos dias? Tinha apenas 19 anos, afinal.
Escovar os dentes não tirou o gosto amargo que sentia na boca. Gosto o qual o fazia lembrar de tudo que acontecera. Gosto o qual não passaria tão cedo. Gosto o qual o acompanharia aonde quer que fosse. Por fim, vestiu sua velha calça jeans, seu moletom cinza no qual certamente caberia mais uma pessoa, pegou sua mochila e saiu pela porta dos fundos. Morava sozinho, por isso não teve à quem recorrer quando perdera a chave da porta da frente. Chamar um chaveiro estava fora de cogitação, considerando a escassez de recursos financeiros na qual se encontrava.
A rua estava quase deserta. A não ser por um homem com uma capa que sempre passava estressado por ali naquele horário e uma senhora que passeava com seus cães, a rua era dele. Pode colocar seus fones e caminhar preguiçosamente. Os sinais do outono eram visíveis. Folhas secas faziam barulho quando as chutava. O rio que corria ao lado da rua estava cheio delas.
Chegou na cafeteria BigLand no momento exato que sua música preferida terminou. Ele foi ao balcão e sentou. Uma mulher de meia idade -a garçonete- se dirigiu a ele.
-Coockie! Que bom te ver! -disse ela- Fiquei preocupada por não ter aparecido ontem! Está tudo bem? Você está com uma cara horrível.
Ele desviou o olhar, constrangido pelo ar maternal que Betty exalava – nunca iria se acostumar com isso- e respondeu, num tom calmo:
-Está tudo bem, obrigado. Você sabe, tive problemas com meu gato, ele sumiu com as chaves de novo, e acabei me atrasando…
-Nós dois sabemos que isso é mentira, você não tem um gato! Mal consegue cuidar de si mesmo! -ela riu, e deu um suspiro- o que eu faço com você?
-Você poderia me trazer um café, sabe, eu tenho compromissos.
Betty, magoada pelas palavras daquele que ela considerava o filho que não teve, disse:
-Café?! É só como uma garçonete que você me vê? -e soltou em um tom sarcástico- você pode não se importar com a sua vida e desprezar meus cuidados, mas eu lembro de você, meu menino. Todos os dias desde que sua mãe foi embora.
Ele de repente ficou sério e olhou fixamente para o chão. Antes que percebesse seu dia havia sido definitivamente arruinado.
-ah, me desculpe…
Ele deu um sorriso torto, não queria prolongar isso.
-vou buscar seu café.
Assim que ela desapareceu pela porta que dava acesso as máquinas, ele pode reparar que havia alguém o encarando. Parecia se tratar de um ajudante, estava distribuindo os cafés, mas não usava uniforme. Nunca o vira antes. Quando percebeu, estava encarando o estranho abertamente. Se virou para a parede num ato tanto quanto infantil. Estava ruborizado. O estranho tinha cabelos castanhos, um rosto delicado e olhos que o prenderam por mais tempo do que gostaria.
-… no caixa!
-o que?
- em que planeta você está garoto?- Betty riu e repetiu- Pegue seu café no caixa, fiz do jeito que você gosta.
Ele agradeceu, pegou o café e saiu. Tomou no caminho, já estava super atrasado para a primeira aula. Na porta do colégio, prestes a jogar o copo no lixo, reparou em algo escrito nele. Uma letra: V.
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