“ Ela não sabe que nós sangramos da mesma forma? ”
- SYML
(Hermione Granger)
O som do universo devia ter alterado sua frequência. O espaço-tempo se apresentava estranhamente. O mundo estava ao contrário. Ou talvez só minha mente estivesse.
Eu observava Malfoy fechar rapidamente os botões da camisa, tentando me convencer que o meu desejo por ele era apenas carnal, mas não conseguia explicar o que acabara de acontecer. Eu só queria fugir da realidade por um momento, e levá-lo comigo.
Antes que ele terminasse, entrei em casa. Estava parcialmente escura, a única luz fraca vinha das brasas que morriam lentamente na lareira. Apesar dos feitiços de proteção, eu me sentia insegura. Alcancei a porta da frente e a abri. O ar gelado cortou minha pele e percebi que não enxergava nada muito distante. A chuva densa obstruía a visão de parte do jardim e o céu se escondia atrás de uma cortina negra. Caminhei até a beira da escada do alpendre, deixando a porta aberta. Assim que escutei Malfoy saindo, dei um passo para dentro do turbilhão de água, sentindo a resistência dos feitiços se quebrar.
A medida que eu atravessava o jardim, menos eu conseguia ver. Talvez não tivesse sido uma ideia tão sensata não esperar por Draco. Parei e olhei ao redor. Escutei uma voz ao longe, perdida em meio ao gramado, me chamando, e corri para ela. Percebi que não estava tão longe assim quando previ o impacto antes de senti-lo. Vi a silhueta que se aproximava sem conseguir parar. Ele segurou meus ombros impedindo que eu caísse, mas havia algo errado.
Olhei para cima esperando ver o cabelo loiro e os olhos cinzentos de Malfoy, mas tudo que encontrei foram os olhos e cabelos negros de meu vizinho. Dei um passo para trás, soltando-me.
- O que faz aqui? – gritei sobre o barulho da chuva, me afastando cada vez mais.
- Estava preocupado com você, não respondeu meu memorando - Farrell respondeu dando um passo em minha direção.
- Como sabia onde eu estava?
- Eu não sabia, apenas em palpite. E seu amigo Potter estava te procurando, resolvi ajudar. Vamos voltar para o Ministério.
Franzi o cenho, eu já havia falado com Harry, que havia pedido para não voltarmos ao Ministério, mas não tinha como ele saber. Senti uma mão envolvendo minha cintura antes que eu ouvisse a voz de Draco, alta e muito próxima a mim.
- Ela agradece a preocupação, mas precisamos ir.
Olhei para ele, sua mandíbula estava tensa e seu olhar parecia impaciente. O outro tinha uma expressão neutra quando perguntou:
- Para onde vão?
Malfoy não respondeu e eu dei de ombros, me desculpando. Na verdade eu não sabia aonde íamos, não houve tempo para explicações. Assim que disse a Harry que voltaríamos ao Ministério, ele negou e pediu que eu passasse o celular ao loiro, que ficou um pouco confuso ao falar pelo aparelho trouxa. Não houve uma troca de palavras significativas, apenas confirmações e negações, e ao final da chamada, Draco estava se vestindo e me entregando minha blusa, sem dizer absolutamente nada. Eu só sabia que algo havia acontecido.
Com uma última olhada para o moreno, que tinha uma expressão estranha, quase frustrada, senti o aperto de Draco aumentar e tudo ficar preto. A típica sensação de ter o corpo tão pressionado ao ponto de não conseguir respirar desapareceu assim que pude sentir a água batendo em meu rosto novamente. Antes de abrir os olhos percebi que estávamos em um lugar distante, mas familiar. A chuva ali não era tão forte, mas o frio era mais cortante.
Afastei o cabelo do rosto e a primeira coisa em que foquei foram altas sebes atrás de Draco. Eu as reconhecia, mas implorei para que não fossem as mesmas sebes de teixo que ladearam meu caminho para a tortura anos atrás. Levantei o olhar para seu topo e lentamente me virei para o lado. Minhas preces não foram atendidas quando o grande portão de ferro entrou em meu campo de visão. Tudo voltou.
As cordas cortavam meus pulsos e o aperto dos sequestradores era muito forte. Eu sentia o cheiro agridoce e metálico de Fenrin Greyback próximo a mim, me causando enjoos. Voltei para a realidade quando tentei me afastar, mas Draco, que ainda estava com as mãos em minha cintura, me impediu.
Eu tentava me desvencilhar, só queria me afastar daquela mansão sombria, mas sendo mais forte que eu, mesmo com dificuldade, Malfoy me encostou no portão gelado, que nem ao menos oscilou, prendendo minhas mãos acima de minha cabeça e encostando seu quadril no meu, me impedindo de mexer. Ele não podia fazer isso comigo. Não.
- Vai me ouvir agora? – ele perguntou, sua voz estava calma, mas não fria.
- Eu não posso entrar, Draco. – pedi tentando controlar o desespero – Por favor.
- Nada vai acontecer com você – ele respondeu, reforçando o aperto – eu prometo.
Nada físico poderia acontecer comigo, talvez pudesse, mas eu estava mais preocupada com as dores psicológicas que o passado trazia.
- Hermione, os lugares não mudam como as pessoas, mas assim como elas, permitem que novas lembranças sejam construídas. – dizendo isso ele encostou os lábios em minha testa e continuou murmurando – Os tempos mudaram, está tudo bem.
Eu parei de tentar me soltar e tentava controlar minha respiração. Eu ainda não estava inclinada a entrar, algo me perturbava.
- Seus pais? – perguntei olhando para seu pomo-de-adão.
- Não há ninguém – ele respondeu.
Aquilo tornava as coisas levemente menos complicadas. Eu não poderia encarar o olhar de Lucius Malfoy, não como me lembrava, não como eu havia visto nas memórias de Draco.
- Por favor – o ouvi murmurar.
Minha respiração estava entrecortada quando olhei para cima e nossos olhares se encontraram, segundos antes de nossas bocas. Parecia algo natural, mas era assustador. Nossas línguas dançavam gentilmente, já conhecidas, o beijo se misturando com as gotas de chuva. Assim como em minha varanda, comecei a me acalmar. Percebendo isso, Malfoy soltou seu aperto, descendo lentamente suas mãos pelos meus braços até minha cintura, enquanto eu acariciava seu pescoço.
Ouvi um barulho de ferro rangendo e o afastei. Ele abrira o portão e me olhava com um olhar de dúvida.
- Harry está chegando. Vamos? – perguntou.
Virei-me em direção a imponente casa, que se assomava através da chuva, considerando seu convite. Senti a mão de Draco em meus ombros e o olhei.
- Tudo bem – respondi incerta.
(Draco Malfoy)
Um sorriso se formou no canto de minha boca enquanto abria o portão para que ela passasse. Já estávamos muito molhados, não nos importamos em correr, por isso caminhei ao lado da morena. Minhas mãos estavam nos bolsos, eu tentava passar uma sensação tranquila, mas não estava seguro sobre tudo aquilo.
Eu não conseguia explicar a mim mesmo o motivo de tê-la trazido até minha casa. Sabia o que aquele lugar significava para ela, mas quando Harry pediu para irmos para um lugar seguro, não pensei em deixa-la sozinha. Não que eu quisesse admitir, mas fiquei preocupado. Nada como aquilo havia acontecido até então. Nada de feridas que se fechavam sozinhas, bolas espectrais falantes, invasões ao ministério. Nada de garotas interessantes e bonitas, nada de me sentir tão bem ao contar algo para alguém, nada de insanidade. E acredito que todos esses acontecimentos estavam relacionados à chegada de Hermione Granger.
As sebes se avultavam ao nosso redor a medida que nos aproximávamos da casa. Subimos os degraus de pedra e paramos na soleira. Granger apertava as mãos nervosamente em frente ao corpo, segurei uma delas e abri a porta.
O lustre do hall se acendeu assim que entramos, não havia sinal de Illyn, mas os quadros nos olhavam com desprezo e Hermione observava tudo em silêncio. Tentei evitar a sala de estar, mas quando passamos por sua entrada, a morena pausou e a olhou por alguns segundos. A puxei levemente e ela me acompanhou com a cabeça baixa, não pude ver seus olhos.
Continuamos andando pelo corredor até chegar à cozinha. Eu não frequentava muito aquele espaço da casa, exceto nas noites de insônia. Granger se sentou em um banco da ilha da cozinha enquanto eu procurava algo para comer. Horas atrás ela já estava muito pálida, agora parecia que ia desmaiar em alguns minutos.
- Então, torta de carne ou sanduíche de arminho? – perguntei sem olhá-la – talvez peixe defumado.
- E você vai fazer isso? – ela disse com um toque de humor.
- Claro que não – vire-me rindo – não temos varinhas o suficiente para apagar o fogo. Meu elfo pode fazer isso.
- Por que você tem varinha mesmo? – Granger perguntou revirando os olhos e descendo do banco.
Eu observei quando ela ficava na ponta dos pés e abria os armários analisando seu conteúdo.
- Já comeu Wellington Beef? – ela perguntou se virando para mim, ao passo que neguei com a cabeça – é uma receita trouxa, mas como um cidadão inglês, me surpreendo que não tenha experimentado.
- Bruxo antes de Britânico – respondi, indo em direção à adega enquanto Hermione balançava sua varinha e alguns ingredientes se uniam.
Murmurei “Lumos”, e andei até encontrar um vinho tinto com um pouco mais de idade. Não era forte, achei que depois de ontem, o álcool não seria uma boa opção. Voltei e encontrei Hermione colocando algo parecido com uma massa no forno e as louças se lavando sozinhas.
- É, não parece difícil – falei alto, pegando três taças e entregando uma a ela.
- É mesmo? Faça da próxima vez. – a morena respondeu.
- Isso é um convite para um jantar? – perguntei sorrindo – Se for, faço com prazer.
- Adoraria ver isso – ela disse sorrindo sarcasticamente.
Eu terminava de encher a segunda taça quando um estalo cortou a cozinha. Eu nem pisquei, já esperava por isso, mas Hermione se assustou e quase derrubou vinho em si. Ri me virando para o elfo doméstico, que olhava surpreso de mim para Hermione.
- Senhor Malfoy, o Senhor Potter está aqui, Senhor. – ele anunciou com a vozinha estridente.
- Peça a ele que venha até a cozinha, por favor, Illyn. – Respondi já colocando o vinho na terceira taça.
Houve um estalo pela segunda vez e o elfo se foi. Levantei a cabeça e encontrei Hermione me olhando com as sobrancelhas levantadas. O quê? Minutos depois, Harry entrava na sala.
- Por Merlin, eu amo Wellington Beef – disse Potter indo em direção à Hermione e a abraçando.
- Britânico antes de Bruxo – a morena respondeu me olhando e eu segurei um sorriso, mas concordei que o cheiro estava bom.
- Fique com a gente, Cicatriz. – disse lhe entregando a taça.
Ele passou a mão pelos cabelos e considerou.
- Tudo bem, mas não posso demorar. Eu e Gina estamos na Toca, é muito longe para aparatar daqui.
Trocamos um olhar. Se ele já tinha convencido a Sra. Potter a sair de Godric’s Hollow, nem consegui imaginar o que faria quando soubesse o que aconteceu na casa de Hermione.
Decidimos comer na cozinha, o clima já estava tenso demais para comermos na extensa mesa da sala de jantar. O prato estava delicioso, mas Granger mal havia tocado em sua comida ou em seu vinho. A morena batia os dedos nervosamente em sua perna, olhando para Harry. Ela queria saber o que havia acontecido, e eu queria detalhes, embora estivesse mais preocupado com outras coisas, mas decidi falar. No entanto, antes, esperei Potter terminar e contei a ele o que havia acontecido, tirando a parte da varanda.
Ele reagiu melhor do que eu esperava, não houve de ataques histéricos nem nada do tipo, mas seu silêncio me deixava ainda mais nervoso.
- Harry, o que aconteceu? – Hermione verbalizou o que estávamos pensando.
- Começou quando vocês saíram do prédio – ele explicou depois de alguns minutos – os elevadores que estavam abaixo do átrio pararam de funcionar. Não tínhamos acesso às lareiras, memorandos, cartas, ou qualquer tipo de comunicação, o celular também não funcionava. Havia muitas pessoas por toda parte, era difícil distinguir quem estava ali, e não podíamos fazer nada, apenas esperar. Assim que tudo voltou a funcionar, consideramos que havia sido apenas uma falha nos feitiços, mas já era tarde.
Poucos aurores estavam no escritório quando o Ministro e um inominável entraram. Eles nos guiaram até o Departamento de Mistérios. Algo estava muito errado, nossa entrada não era permitida em nenhuma hipótese. Na sala dos Arquivos, havia inomináveis desacordados no chão, mas não mortos.
- Sala dos Arquivos? Eles buscavam algo? – perguntei.
- Sim, e sabiam muito bem onde estava. Não havia sinal de procura ou qualquer coisa fora do lugar, exceto um antigo registro.
- Qual registro? O que eles levaram?
- Eram estudos datados em 1672, anteriores até mesmo a criação do Ministério, demonstrando que bruxos e bruxas nascem, não são criados. E, quando os inomináveis despertaram, eles relataram que em seu lugar havia exatamente a mesma mensagem espectral que vocês ouviram.
- Mais alguém recebeu essa mensagem? – Hermione perguntou.
- Acreditamos que não, apenas vocês não estavam lá nesse momento.
- Aaron Farrell também não estava – lembrei-me – encontramos com ele na casa de Hermione.
- Devo ter mencionado a ele que estava preocupado com ela, mas fazia tempo que vocês haviam saído. – ele respondeu franzindo o cenho.
- Harry – Hermione de repente, mas muito baixo – não houve mortes. Por que a pessoa que não se importa em matar crianças não matou ninguém hoje?
- Porque sangue é importante. – respondi depois de alguns minutos de silêncio – Sangue mágico é importante.
Ficamos apenas sentados por um tempo, ouvindo a chuva bater na janela e pensando sobre tudo. Mas quando a noite estava caindo, Harry se levantou.
- Eu preciso ir. Obrigado, estava tudo ótimo. – ele ofereceu a mão à Hermione – Você vem?
- Você pode ficar, se quiser – disse a olhando, não sabia bem o porque, mas imporei silenciosamente para que ela ficasse.
- Eu estou bem Harry, obrigada. – ele abaixou a mão sorrindo de canto.
- Eu te acompanho. – respondi com certo alívio.
Eu e Harry caminhamos até a porta enquanto Hermione nos seguia. Ele a abraçou e disse que qualquer coisa era só ligar. Ela se afastou quando fui me despedir.
- Obrigado, Malfoy. – ele disse apertando minha mão - Espero que fique tudo bem.
- Ficará. – disse com um sorriso de canto.
- Você pode ter mudado muito, mas me preocupo com sua posição de pegador alfa. Não queremos que essa imagem se perca quando você se apaixonar pela minha doce e frágil amiga – ele sorriu com sarcasmo quando olhei para trás e não vi Hermione ali. – Tenha uma boa noite Sr. Doninha.
- Igualmente, Santo Potter.
Fechei a porta rindo. A ideia parecia ridícula demais, mas agradeci por Potter não ter sido tão sem noção ao ponto de falar aquilo na frente dela. No entanto, o fato dela não estar ali me preocupou, ela estava na Mansão Malfoy e eu sabia onde ela havia ido.
Andei lentamente pelo corredor até chegar a entrada da grande sala de estar. O lustre de cristal estava apagado, a única luz vinha da lareira ornada de mármore, próxima a onde Hermione estava apoiada com um joelho no chão, onde ela havia passado por coisas horríveis anos atrás.
Percebendo minha presença, ela levantou a cabeça e pude ver seu rosto refletido no grande espelho dourado acima da lareira. Não a vi com nitidez, mas me aproximei e ajoelhei em sua frente. Havia apenas uma lágrima em sua face, a única que ela guardou o tempo inteiro desde que chegou aqui. Coloquei minhas mãos ao lado de seu rosto e limpei a solitária lágrima com o polegar, acariciando sua pele. Hermione sentou de vez no chão e eu a puxei para o meu peito, me sentando também, mas ela se afastou um pouco.
- Lei de Talião – repeti o que havia dito mais cedo com uma voz baixa – hoje você me ajudou a controlar minha dor.
Não precisei dizer mais nada, ela deixou que eu a abraçasse e acariciasse seus cabelos. Eu observava a grandeza do salão, os caros móveis, as molduras de ouro que abrigavam representações de pessoas que foram tão nobres quanto desprezíveis. O sangue era o sustentáculo de tudo aquilo, uma construção abstrata de pureza era responsável pelo sucesso de algumas pessoas e sofrimento de outras. O sangue era importante. O sangue mágico era importante, e enquanto eu sentia Hermione Granger respirar contra o meu corpo, percebi que não me importava com isso de forma alguma.
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