Era tarde, a noite estava quente e úmida. A chuva havia parado minutos antes e as janelas permaneciam embaçadas. Algumas gotículas ainda escorriam.
Eu acordei assustada. Um som vinha de fora, algo parecia ter se chocado contra a janela. Deve ser o vento, pensei, mas apesar da chuva de antes não estava ventando muito. Será algum galho que caiu? Mas a única árvore perto de casa ficava do outro lado da rua, na casa dos Porter. Só podia ser algum bicho. Provavelmente uma ave desgovernada ou um filhote aprendendo a voar.
Resolvi sair do conforto da minha cama e verificar se o pobre animal havia se ferido. Calcei meus chinelos enquanto puchava o hobbie do cabideiro. Ao colocá - lo pude sentir o aroma de lavanda, empregnado na seda macia. O tecido parecia abraçar meu corpo.
Me aproximando devagar da janela, percebi que havia uma pequena fresta, que permitia que uma leve brisa encanasse. O vento fazia um jogo de balanço e movimento com a organza das cortinas. Não me lembrava de ter deixado aquela fresta aberta. Provavelmente minha mãe entrou no quarto para pegar algo, já aproveitou pra abrir as janelas e acabou esquecendo de fechar as vidraças.
Abri o resto com cuidado e me debrucei sobre a pequena sacada. Procurava por algum sinal, não achei nada, só havia eu e o silêncio da noite. Algumas luzes estavam acesas na rua, mas fora isso, uma paz perturbadora.
O silêncio era estranho. Geralmente a casa era agitada com as algazarras provocadas pelos meus irmãos, mas depois que Vanessa foi embora, o barulho já não era o mesmo de antes. Fazia aproximadamente um mês que minha irmã tinha se mudado pra casa do noivo. Ela era a única da casa que parecia me entender. Eu sentia a sua falta e meus dias estavam tão escuros quanto o céu naquela noite de verão.
Não havia me acostumado em dormir sem meus irmãos, mas minha mãe dizia que era importante criar independência e ter privacidade. Aquela era minha segunda noite no quarto e tudo que tinha nele me lembrava Vanessa. Eu pretendia fazer algumas adaptações que o deixassem com a minha personalidade, mas ainda era recente para mexer em alguma coisa. Não sabíamos se o noivado ia durar.
Perdida em meus pensamentos e admirando as estrelas, tomei consciência e voltei pra realidade. Ouvi novamente um barulho. Aquele quarto era muito estranho. Sempre que eu dormia lá ouvia barulhos! Assustada, me virei bruscamente. Prensando as costas contra a sacada, olhei fixamente para porta. Eu estava sozinha e não via nada, mas meus ouvidos pareciam ouvir muito bem. "Calma Kate. Respira, pensamentos felizes, tenha pensamentos felizes!" Com a voz trêmula tentei falar com firmeza:
- Tem alguém aí?
Como já era esperado, não tive resposta. Mas era óbvio! Eu estava sozinha, lógico que não havia ninguém. Então, quando entrei novamente no quarto, outra vez o barulho vindo da janela. Já irritada com a situação, peguei um livro de capa dura da estante e já estava pronta para usá - lo como arma. Se fosse algum gato, ou outro animal, iria ficar assustado e ir embora.
Voltando para sacada com ar determinante, erro o passo e tropeço na barra da saia da camisola. Prestes a ir de encontro ao chão, abro os olhos de fininho e surge um garoto me segurando pelas costas, impedindo a queda. Ele era alto perto de mim. Magro, cabelos ruivos e com um rosto jovial, aparentava ter a minha idade, talvez um pouco mais velho. Tinha jeito de muleque inocente, com um sorriso brincalhão. Fico assustada e dou um pulo, quase caindo novamente.
- Cuidado!! - diz ele com ar preocupado
- Quem é você!? - respondo rapidamente em um tom desesperado.
- Eu sou...
- Deixe quieto! Isso não me interessa! Se bem que...vc tá na minha sacada, então interessa! Mas eu não devia falar com estra...
- Eu me ch...
- Ai Meu Deus! E vc é um garoto! Se meu pai descobre que estou sozinha, de madrugada, com um garoto no meu quarto...
- Se você deixar eu fal...
- E está com roupas sujas! Deve ser um garoto de rua... - ele tampa minha boca com as mãos. Impedindo que minhas palavras saíssem, ele abre a boca pronto para dizer algo, mas eu dou um pisão no seu pé direito, fazendo ele se afastar.
- Eeeei! Tá maluca menina! Por que fez isso!?
Eu me calo diante dele e sinto minha nuca estremecer. Estava com medo do grito ter acordado meus pais, além disso, era um estranho. O que pretendia fazer escondido na sacada do meu quarto?
- Eu não tô maluca! Você que é um folgado! Colocando essas mãos sujas na minha boca. Quem pensa que é!? Você tá na minha casa sabia? - falo firme entre susurros.
- Ah, não me diga! Você não fecha essa matraca nunca? Eu queria falar, mas você não parava. Tava ficando nervoso.
- Nossa se você que é ladrão tava nervoso, imagina eu!
- Eu não sou ladrão!
- O que veio fazer aqui então?
- Bom, eu vim...você...
Ele para de falar enquanto encara atentamente meus olhos. Alguns segundos se passaram sem que eu ou ele falássemos algo. Sequer nos movemos. Quando olhei para o seus olhos, reconheci. Eram os mesmos do menino do sonho. Ele era o garoto que voava. Seus olhos eram castanhos escuros, tão escuros que pareciam duas sementes de erva do sonho e como tal semente, confundiam os sentidos daquele que as consumisse, sendo bem difícil definir se o que encarava era real ou uma ilusão da mente. Olhar em seus olhos era se perder em sonhos onde havia receio, dúvida, encantamento, coragem e ousadia. Tudo isso junto e contínuo.
Eu fico estagnada. Parecia que ele lia a minha alma, pelas estrias da minha íris. Cada segundo que passava, era como se um detalhe profundo fosse tirado de mim e revelado aos olhos dele. Ele me analisava de um jeito novo. Uma mistura de empolgação com curiosidade. Aqueles olhos eram puro mistério.
Ficamos lá, estáticos, olhando um para o outro, como duas pessoas se reencontrando e reconhecendo após anos afastadas.
Ele resolve retomar a fala:
- Me desculpe pelo grito... você estava meio empolgada e não deixou eu apresentar - me. - falou com o sorriso malandro no rosto.
- Desculpe. E como se chama?- falei um pouco envergonhada.
- Peter. Peter Pan.
Diz o garoto ruivo, exibindo seus belos dentes brancos, com um sorriso mais que encantador, e sim, mágico.
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