Costumavam chama-lo de ot luranaio bae qeme lom kadrio, que em liriynague significa o amante das coisas sempre sombrias. Chacais, assim como Anúbis, apreciavam a poesia, a filosofia e os mistérios da noite sempre negra. Se alimentavam dos pequenos roedores nos cemitérios, e, como, os gatos, eram conhecidos como seres sombrios e melancólicos. Como Anúbis. Mas nenhum deles era como Anúbis. Ele não era um chacal. Nem um humano. Não sabia o que era, nem mesmo o que deveria ser. Para todos, ele era apenas a coisa dos chacais, o estranho e trevoso ser negro amante da morte, e seu arautosobre a terra.
Seth e Néftis lhe ensinaram no Arenger tudo sobre a magia antiga, o poder do ka ativado, rash-nenayum e a língua dos ventos. Descobriu que havia segredos no formato das nuvens e das manchas do leopardo, e descobriu como traduzir o choro dos bebês. O próprio bater de cada coração era um mistério escondido que ele aprendeu a revelar. Aprendeu a história do mundo, o de antes e o de hoje, e pôde ver como os humanos fizeram coisas terríveis uns aos outros. Egoísmo, ganância, insensibilidade e indiferença governavam o mundo anterior, e aparentemente, esta era caminhava para o mesmo destino: as ruínas da própria alma, e as chamas do inferno que o próprio mundo acendeu sobre si. Pela primeira vez teve orgulho de não ser humano.
Entre as nove partes do ser, o ren era o nome. Esta fração da alma não existia em Anúbis. Néftis disse que nomes tem poder, e que quando se descobre o nome secreto de algo ou alguém, se tem poder sobre o mesmo. Cada palavra tinha uma vibração sonoro-espacial capaz de acessar uma dimensão fechada no cosmo, que podia se manifestar no plano material através de emanações de energia mística concentrada através do controle do ka . Era uma arte complicada, e exigia bastante técnica e milênios de treino, mas Anúbis aprendeu muito rápido. Rápido de mais para qualquer criatura, divina ou não. O teste final chegou depois de intermináveis meses de estudo. Deveria ir até as Montanhas Negras, e trazer a mão de um golem. Um específico, Deterfghet, o de mil mortes.
– O guerreiro tem uma dívida de vida comigo. Um serviço que ele não terminou – disse Seth, olhando para uma gigante e vermelha estátua de si mesmo no lado de fora do palácio. Os escorpiões, estavam sempre presentes, observando e escutando em silêncio. – Mate-o. E me traga a sua mão.
uma veia pulsando dourada na testa de Seth. Deuses sangravam ouro.
– Acredito que conheça o caminho para as Montanhas Negras.
– Sim.
– Ótimo. Não leve nenhuma arma. Se o fizer, eu saberei.
Anúbis estava olhando para a estátua dele. Era uma das mais altas do Arenger, talvez do mundo. Era quase uma montanha negra e vermelha. Os olhos eram cruéis, e o bico se estendia como uma foice cruel.
– É linda não é? – Seth comentou. Os olhos pensativos e apesar de estar sempre jovem, pareciam velhos e cansados, com marcas e cicatrizes, como se tivesse sofrido muito. – Um dia eu governarei este mundo, e a minha justiça será a única lei. Eu prometo filho, que você me verá com a coroa de Kemet, e te deixarei a direita de meu trono acima das nuvens.
Anúbis não sabia o que dizer. Seth era mal e tinha sonhos de conquista. Mas para quê envolver Anúbis nisso? Ele o via como um filho tanto assim?
Os cavalos de Seth eram rápidos. Nem todos eram gigantes, havia pôneis médios, mas todos eram formidáveis na força durante a corrida. Os bewkweil eram os grandes de oito patas, e gheq os esguios com pintas de leopardo. Haviam pôneis azulados de crina encaracolada chamados de qnweil. Havia cavalos que eram tão conectados com a natureza que se tornaram parte dela, com flores crescendo na crina e cascos de árvore e folhas formando seu corpo. A diversidade dos cavalos do Deserto era imensa. Alguns cavalos não corriam pelas estepes, mas sim, nadavam nas profundezas dos mares, mais rápido que qualquer animal terrestre. Cavalos alados habitavam as montanhas e planaltos do sul oriental, mas sem dúvida, os mais raros cavalos eram também os mais violentos, ferozes, e indomáveis. Unicórnios. A única vez em que Anúbis vira um unicórnio foi há muitos anos, na infância, quando escrevia poesias na solidão da lua, e lá no extremo sul do horizonte plano e desértico, ele viu uma criatura majestosa, com músculos fortes se movendo no peito quando dava seus lentos passos pesados, com os cascos de ferro. Não era um cavalo. Nem parecido com um cavalo. Era um verdadeiro demônio, mas com a beleza de um anjo. E o coração de um homem. De sua testa projetava-se uma longa foice dourada, afiada e com uma curva elegante. Devia ter quase um metro, e todo o corpo do unicórnio: de seis a côvados de comprimento (cerca de 3 e 4 metros respectivamente). Com um bewkweil fêmea chamada Solt, Anúbis cruzou para o oeste do Vale Desespero e Grutas da Dor. Com paradas para descansar aqui e ali, não para si, mas para Solt descansar. No Alto Deserto a água não era tão doce quanto a de Kemet, mas matava a sede. O caminho não era completamente seguro, nada no Deserto o é, mas ele sabia se proteger caso precisasse. E quem ousaria ameaçar a coisa dos chacais?
Por volta do meio dia, com o sol tão forte que as areias brilhavam, avistou que uma tempestade de areia estava chegando. Uma nuvem de vento e areia, se movendo de vagar e brilhando com os clarões dos raios em seu interior. Uma força como essa seria capaz de matar, e não havia como se proteger dela, então Anúbis encorajou Solt e continuou, indo em direção à tempestade de areia. Os raios nas nuvens pareciam feitos de sol, e uma grande escuridão era o olho da tempestade, que parecia estar viva. Fechou os olhos e cobriu os de Solt. Os ventos arranhando com grãos de areia com a força de um meteoro comprimiam os dois e gritava com trovões do Deserto.
Não foi fácil suportar tudo, mas nenhuma tempestade durava para sempre no Deserto. Podia durar horas, talvez dias, ou até anos. As cortes do Bosque a Lua já lideram com três anos de uma tempestade no Deserto eterna. Mas, mesmo que uma tempestade durasse tanto tempo, e até parecesse ser eterna, nenhuma tempestade durava para sempre. Um dia os relâmpagos e trovões de magia cessariam, junto com os ventos de areia, e tudo voltaria ao que era antes.
Não demorou muitas horas depois para poder avistá-las, as Montanhas Negras. Formações de terra altas e picos gigantes, rios dos oásis internos perfurando os vales dourados entre uma cidade de montanhas negras. Não havia guardas nos gigantescos portais naturais de pedra, e o silêncio e o vazio preenchiam as vilas de casas dentro das paredes das montanhas. Não havia ninguém nas ruas largas, e o palácio no topo da montanha mais larga e mais negra também estava sem seus príncipes. Todo o povo golem estava na arena .
Etambanl, como era chamada na língua dos golens. Significava literalmente círculo de areia. A arena era usada para ritos de passagens entre os meninos, mas principalmente era o maior palco para o esporte das batalhas sem sentido. Realmente era um círculo de areia. Parecia ter mais de duzentos côvados de diâmetro e era cercado por uma estrada circular de blocos de pedra com os símbolos tribais dos golens. Nessa borda da arena haviam dezenas de marfins se estendendo do chão e alcançando quatro metros de altura, apontando para a arena. Entre os marfins, crânios esculpidos em ébano com búzios nas cavidades dos olhos. Gladiadores esperavam no interior de cavernas ao redor, enquanto outros estavam de pé abaixo da sombra dos guarda-sóis ou tendas. A multidão de monstros gritava nos degraus esculpidos nas paredes circulares que davam a volta no vale de Etambanl, enquanto as moças golens cantavam canções de batalha e tocavam instrumentos em uma área abaixo da abertura no topo da montanha, onde o príncipe a princesa, soberanos da etnia e governantes da nação das Montanhas Negras assistiam de camarote. As fêmeas golens eram diferentes dos machos. Mais pálidas e esguias, eram mais baixas e finas, com cabeças menores e com a pele quase completamente coberta com as tatuagens tribais dos golens. Símbolos de flores e linhas se entrelaçando, sempre com as cores branco, preto, rosa e tons de azul claro como o céu do dia e escuro como o céu da noite.
Anúbis se sentou no chão perto das arquibancadas, ao lado dos guardas que não estavam no portão. Solt esperava do lado de fora. Anúbis não deveria demorar para encontrar o golem que Seth queria morto. Começou a limpar a mente e olhar para as multidões nas arquibancadas tão altas quanto às montanhas. Sondando uma por uma, procurando os olhos. Não os da face, mas aqueles que as pessoas guardam logo atrás do leve véu quase transparente que é o semblante. Personalidades, mentes, consciências emersas e submersas, nomes. Muitos nomes no interior, mas nenhum deles era Deterfghet, o de mil mortes. Até que ouviu o chamado acompanhado pelos tambores.
– TtoromonDeterfghet! TtoromonDeterfghet! TtoromonDeterfghet!
O de mil mortes. O guerreiro que morreu mil vezes e continuou vivo, lutando. Mas ele trapaceou o deus da inveja há alguns anos, e agora a justiça de Seth, isto é, vingança, chegou.
Seria bem mais fácil agora. Os gladiadores batiam lanças no chão e afiavam as espadas. Eram guerreiros com o dobro do tamanho de Deterfghet na maioria. Só tinha que esperar que alguém o derrotasse para poder mata-lo quando estivesse se recuperando.
Mas o fim não chegou tão rápido quanto Anúbis pensou, pois ele venceu a primeira luta com certa facilidade. Mas o oponente não era muito forte, na segunda chegou um golem das montanhas do leste que era muito maior que Deterfghet. Mas o de mil mortes venceu novamente. Golens de areia, pedra, gelo. Não importava. Ele era invencível e nada podia mata-lo.
A noite chegou e os marfins começaram a irradiar um brilho pálido que iluminava a arena. A areia absorvia o sangue verde dos golens e os derrotados deixavam suas armas com o vencedor. Deterfghet tinha uma pilha de escudos, lanças e espadas em sua caverna, e ainda não parecia cansado. Novos oponentes viam e todos voltavam a beira da morte. Ele era invencível.
Não podia invadir a arena e matar o herói. O povo golem era unido e prezavam pelos seus costumes. Não haveria honra nisso. Mas talvez até estivesse certo. Invadir a arena e derrotar Deterfghet justamente em uma batalha golem. Seth ficaria satisfeito de qualquer forma. Contanto que não morresse. Anúbis tinha que derrotar o golem.
Ele se deleitava com os gritos da plateia e caminhavam leonicamente, como se a arena fosse sua. Lhe lembrou Seth. Ele estava virada recebendo aplausos do príncipe e se curvando quando Anúbis correu até lá e tentou atravessar, mas foi impedido por uma barreira invisível entre os marfins e crânios. Uma luz pulsou em volta da arena revelando uma forma abobadada que a cobria. Deterfghet viu Anúbis e começou a rir e a plateia o acompanhou.
Após alguns minutos de risadas, ele se virou para o príncipe, que acenou com a cabeça. Então Deterfghet se aproximou de Anúbis e girou o crânio de ébano diante dele, desligando a barreira. Depois a religou e Anúbis estava preso com um monstro cuja pele era mais dura que as montanhas, e que nenhum golem não importa o quão forte fosse jamais derrotou. Não tinha mais volta.
Tomaram distância e se cumprimentaram.
– Deterfghet, o de mil mortes.
– Anúbis.
Pode ouvir alguma tensão entre o povo.
Ambos estavam sem armas. Colocaram uma mão na areia e andaram em círculo. A areia que Anúbis tocava se tornava negra. Quando percebeu isso, o golem deu um soco com força contra Anúbis, que se desviou mas o chão tremeu. Era assim que deveria ser. A cada golpe do golem amedrontado com a magia de Anúbis, ele se esquivaria, saltando sobre ele e rodando pela arena. Uma hora depois, ele estava cansado. Mas continou. Mais uma hora, e Anúbis pode gastar toda a energia dele. Deterfghet caiu de joelhos sem fôlego. Pousou em sua cabeça.
– O que é você?
– Justiça de Seth.
Segurou o Ankh com a mão esquerda, beijou os dedos, e tocou na testa do golem, que morreu. Caiu como árvore e se desfez por completo se tornando areia, deixando para trás apenas um amuleto de Ankh que estava escondido. Era igual ao de Anúbis, mas branco. O guardou.
– Eu te avisei irmão! – gritou um golem se levantando no meio da arquibancada. Tinha longas folhas verdes na cabeça – Te avisei que Seth não esqueceria. O deus-demônio mandou seu chacal dos mortos para nos destruir!
“É ele mesmo?”, “Então é verdade?”, “Ele existe?”, “A coisa de Seth está aqui?”
– Prendam o instrumento de Seth!! – gritou a princesa e os guardas correram para prendê-lo. Anúbis girou um crânio e tentou fugir, mas todos os golens estavam vindo em sua direção. Levavam jaulas de pedra, semelhantes a toucas, para prendê-lo. Olhou em volta em busca de uma saída segura, mas não havia e estava cercado. Seguravam as jaulas, pirâmides arredondadas sem fundo. De repente, serpentes subiram do chão, centenas, e cobriram Anúbis se enrolando sobre o mesmo até que ele desapareceu.
Quando as serpentes o soltaram, ele estava muito longe a leste das montanhas negras. Solt estava ali também. Parecendo feliz em vê-lo.
– Meresenger?... – assistiu as serpentes se afundando na areia. – Obrigado.
Atravessou areias infinitas até encontrar uma pequena cidade de humanos. Era mau protegida. Não pelo povo ser pobre, mas por ser pacífico. Não encontrou nenhuma arma ou guerreiros. Eram apenas pastores morando em choupanas simples, mas havia um pequeno palácio de tijolos de adobe. Eram amigáveis e civilizados, e adoravam os animais de estimação. Um homem baixo e volumoso chamado Aqap o guiou pela cidade, mostrando a beleza natural do oásis que ficava no centro da cidade. Crianças brincavam nas piscinas enquanto eram lavadas pelas mães. Os cães latiam com alegria e uma luz profunda iluminava o semblante de todos os moradores da cidade. Aqap conduziu Anúbis e Solt mais a frente, até o pátio de um pequeno templo onde havia uma estátua, a estrutura mais alta da cidade. Esculpida em um único bloco de pedra com mais de quarenta côvados, toda decorada com ouro vindo da Rainha de Marfim. Osíris. O deus rei de toda a Kemet. Filho de Nut e Geb, o Céu e a Terra. O rosto dele se tornou negro encobrindo o sol. A coroa do reino esculpida na pedra e was em sua mão. Louvavam o rei e cantavam hinos sobre como ele reina soberano e derrotará Seth, o que matou o céu.
Mas não era a beleza da estátua que impressionou Anúbis. Não era a adoração a Osíris que fez os moradores da cidadezinha fugirem em desespero enquanto todas as casas eram destruídas. Não foi Osíris quem estava lançando raios de magia e um terremoto, acompanhado de um incêndio sempre vivo que podia queimar tudo. Não Osíris quem estava destruindo a estátua e matando um povo. Era Seth.
Anúbis foi protegido por uma bolha, semelhante a barreira de proteção na arena dos golens. Viu Aqap morrer com o toque de um raio em sua frente, completamente imponente, tanto o homem quanto o chacal.
Depois que a poeira baixou e a bolha também, Seth, ainda flutuando no céu como tempestade, acalmou os olhos violentos e se voltou ao menino.
– Passou no teste. Muito bem, filho.
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