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História O Reverso é Mágico. - Arriscar a vida?


Escrita por: FellipeAnthony

Capítulo 13 - Arriscar a vida?


Com as mãos no volante e ao lado de sua lagartinha, Angelie se torna uma pessoa totalmente diferente daquela menina vulnerável e apavorada, torna-se alguém capaz de fazer qualquer coisa.

Ao seu lado, Oliver, no banco do passageiro, estava inserto em seus pensamentos mais sombrios, sabia que deveria usar aquele momento para relaxar, mas não conseguia se desvencilhar das preocupações enquanto líder dos Twihunt.

Sayumi, extremamente entediada, e Federico, sem muito assunto, estavam nos bancos traseiros. Os quatro permaneciam em silêncio. Oliver, querendo pensar menos nos próprios problemas, ganhava coragem para quebrar a falta de comunicação:

— Onde pretende nos levar, Angelie? — sorria receptivo. — Aposto que conhece um bom ponto de Paris!

— Hã... Sinceramente? Não faço a menor ideia. — Ela não perdia o foco no caminho que estava tomando. — Mas talvez...

— Ange, pense em um lugar muito bom — Sayumi balançava o ombro da menina, que se irritava com a herdeira dos Kubo.

— Certo, Sayumi. — Angelie dizia de malgrado e suspirava logo em seguida.

Os meninos percebiam sua má vontade com Sayumi.

Seus pensamentos voavam e ela definitivamente não queria conversar com ninguém naquele momento. Não há um canto da capital francesa que ela não conheça. Não se cansava de passar por todas aquelas vielas e ruelas, por cada parte de Paris, afinal, aquele era o seu mundo inteiro: sempre via algo novo ao passar pelo arco do triunfo, sempre uma nova emoção ao transitar pela St. Honoré. Via pessoas diferentes, de culturas diferentes, inerentemente distintas umas das outras, em uma profusão de multiculturalidade e de diversidade. Isso a encantava.

Angelie, secretamente, estava em busca de sempre de expandir o seu mundo, o mundo o qual pertencia e conhecia, querendo criar algo cada vez mais amplo e diverso. O seu sonho mais profundo, e talvez não tão secreto, é tornar maior o seu mundo, que é tão pequenino.

Infelizmente, em que pese possuir esse sonho de desbravar os lugares, ela ainda não possui coragem de enfrentar o seu medo da rejeição e do preconceito. Anos de trauma acumulado a fazem temer profundamente o novo e o inexplorado, apesar do seu sonho tão genuíno de aprender coisas novas e expandir seu próprio conceito de mundo e de realidade.

Existe em seu âmago, infelizmente, uma sensação de que a sua existência é indigna e pecaminosa, sente-se um estorvo para a sua mãe e para a família Lumiliques. Ela não possuía autoestima ou autoconfiança para acreditar na ideia de que era uma companhia agradável e uma pessoa digna de ser prestigiada.

No entanto, sua vontade de viver era enorme, sim, ela anseia um dia melhor a cada dia, porém, para ela, seria muito melhor que ela apenas existisse sem atrapalhar a vida de ninguém, queria viver invisível para não incomodar ninguém mais. Queria se ver livre dos olhares, dos olhares de nojo, de lástima e até mesmo dos olhares ignorantes de sua real natureza, afinal, esses não a conhecem de verdade, apenas veem a casca da Angelie.

Apertando freneticamente um objeto aleatório que havia encontrado ao seu lado, Sayumi externamente estava serena, mas, no íntimo, seus pensamentos estavam agitados e turbulentos: sua vida mudou radicalmente há menos de um dia. Ela desistiu de um medo que a consumiu durante toda sua vida e foi tão fácil, tão simples. Sentia-se como uma estúpida enganada pelos conceitos e temores plantados nela pelos outros. Agora, com Cerfille, espírito de um dos maiores paladinos da história, seu sonho, antes tão distante e impossível, aproximava-se mais, tornando-se possível.

Sayumi não sabia o que fazer, porém, tinha certeza de uma coisa: queria se tornar importante; queria ser reconhecida.

Sempre foi uma pessoa particularmente fascinada pela atenção que recebia das pessoas: os olhares de ódio, de nojo, de pena, de encantamento e de desprezo. Com o tempo, aprendeu a manipular tudo isso, tornando-se boa em extrair das pessoas as exatas emoções e sentimentos pretendidos por ela. Uma característica que, dependendo da sua finalidade e da sua utilização, tornava-se um defeito fatal ou uma qualidade crucial.

Calculista, Sayumi era, em toda verdade, uma garota sombria, se olhar de um ângulo, e genial, se olhar de outro. A dissimulação de inocência e de gentileza que implantou em seu personagem se fez útil, para ela sobreviver em um mundo onde paladinos omnimagi ainda são tratados com repúdio, pudor e preconceito.

Dessa maneira, é mais fácil manipular as pessoas que se convencem com a sua aparente inocência e benignidade. Com o tempo, Sayumi começou a achar as pessoas patéticas, em vários sentidos. No entanto, esse personagem que ela adotou ao longo dos anos, como um mecanismo de defesa, definitivamente a impediria de alcançar um dos seus grandes sonhos: ser reconhecida. Como ela seria reconhecida, se precisava que todos a subjugassem? Nem ela sabia, é verdade.

A aura pacífica que ela estava transmitindo mudava, ela mordia o lábio inferior e apertava o objeto ainda mais. Seus pensamentos transitavam entre a revolta e o inconformismo. Raiva. Raiva de si, que desperdiçou o próprio potencial temendo sua infinita capacidade de se tornar relevante e poderosa.

Em determinado momento, ela se esqueceu de esconder o que estava pensando, contorcia o nariz e mordia um dos lábios. Cada vez que pensava mais na situação, mais se sentia aborrecida. Pelo retrovisor central, Angelie percebia e se controlava para não dizer nada. “Até que gosto quando ela sai do personagem”, pensava.

Ao olhar para Oliver, ela notava que ele se encostava no vidro da janela do carro, pensativo, os olhos focados no caminho, compenetrados; enquanto Federico possuía um ar mais sonolento, porém com os olhos abertos, na direção de Oliver, que estava à sua frente.

Sayumi perdia sua linha dissimulada de pensamento e destinava a sua atenção para Federico, que estava tão quieto, o que é incomum. Percebia que ele mantinha o olhar nos cabelos negros de Oliver e estendia a mão para acariciá-los. Pensou, logo, “Federico ainda não se resolveu com esse assunto? Como pode ser tão covarde?”. Levantava uma das sobrancelhas e mantinha um sorriso cínico, onde aparecia uma de suas covinhas:

— Federico?

Ele se assustava, prestando atenção agora em Sayumi. Com os olhos, ela percorreu Federico até Oliver, de um jeito sugestivo, fazendo com que ele interrompesse o movimento no cabelo do Twihunt, que quase dormia no carinho do amigo. Federico tentava se consertar com um sorriso, visivelmente constrangido, e em silêncio questionava à menina, com um gesto sutil, ao passo que Sayumi respondia:

— Nada demais. Só queria saber se estava tudo bem.

— Ah, só isso, Sayumi? Sim, está tudo bem. Não se preocupe. — Ele se consertava, um pouco avermelhado. Quando fica com vergonha, o nariz de Federico fica mais avermelhado do que as bochechas e ele mal diz coisa com coisa. — Por que a pergunta?

— Ah, é porque você estava tão quieto... — Ela olhava para frente — E parece que o Oliver também... Estavam na mesma posição! — sorria. — Estavam incrivelmente fofos!

— Fofos? Sério? Nós dois... — Federico perdia ainda mais as estribeiras. — Então...

“Idiota”, pensou Sayumi. Mantinha um sorriso cínico. Queria dar um empurrão em Federico, ajudá-lo de alguma maneira. Pensou rapidamente em um meio de arquitetar uma situação em que ele estivesse pressionado a ser aberto com Oliver sobre como se sente, então segurou a mão do amigo e disse:

— Sim, estavam fofos, estavam uma gracinha juntos. Não é legal ficar fofo com outro menino, Federico? Vocês são dois meninos e ficam fofos juntos, não acha? — ela poderia ser falsa ainda com seu jeitinho fofo? Talvez sim.

— Qual o problema de serem meninos, duas-caras? — Angelie não perdera um segundo da conversa.

Não era muito do feitio de Angelie falar com alguém naquele tom específico.

— Duas-caras? — Oliver saía dos seus pensamentos por um segundo.

— Ange... — ela forçava ainda mais sua maneira gentil de falar — Não há nenhum problema, você me interpretou mal. Não me amaldiçoe por isso! — Sayumi ia para frente e parava no ouvido de Angelie. — Meio-humana!

Freou o carro abruptamente. As mãos de Angelie começaram a tremer. Os outros três se assustaram, pasmos com a situação. Sayumi foi jogada no banco novamente, com força. O carro quase bateu. Recompondo-se, Angelie voltava para o volante, na tentativa de se acalmar, enquanto percebia uma piscadinha tortuosa de Sayumi pelo retrovisor central. Uma piscadinha que dizia, “melhor você calar a boca, por favor!”.

A situação seguiu com um profundo silêncio, enquanto o susto do momento ia embora. Federico, ainda assustado, voltava ao seu lugar. Ficava em posição reta no banco, um pouco desconfortável e pensativo.

Oliver voltava para sua posição e ainda se mantinha com a cabeça encostada no vidro. O Gigabbia ainda via os cabelos negros e lisos do amigo e isso o fazia mal. Logo, percebia a menina ao seu lado. Sayumi era doce e gentil. A menina perfeita. Fitara seus finos lábios e seus olhos amendoados. Ela é linda. Repetia isso muitas vezes. Por um tempo, pensou que gostasse dela, romanticamente, mas, nesses quatro anos, aprendeu algo sobre si mesmo que o fez perceber, na verdade, que Sayumi não era a sua “resposta”, pois não passou de uma “interrogação”.

Eles ainda não chegaram ao destino e Angelie já havia se decidido onde os levaria. Oliver, repentinamente, virava-se para Federico, dizendo:

— Continue!

Fazia certo esforço para conseguir falar com o menino atrás dele cara-a-cara, colocando os joelhos sobre o banco, jogando o corpo para frente de uma forma desconfortável. Batia a cabeça no teto do carro, fazendo uma expressão atrapalhada. Ele esbanjava um olhar pidão, inflando as bochechas e parecendo uma criança. Balbuciava um silencioso “por favor”, com um olhar galhofeiro. Federico, diante daquilo, ficava confuso, sem entender muito claramente a situação, então corava e dizia nervoso:

— Não! Folgado!

— Está bem — ele se desanimava —, não precisa ser grosso...

As duas não poderiam segurar o riso. Oliver se virava para frente e se sentava normalmente no banco, mas agora estava ereto, voltando a se concentrar no caminho. Apreciava as construções da capital francesa. Federico emburrava-se quieto. Segurava-se para não fazer nem dizer algo desconfortável. Estava muito confuso. Ele era uma pessoa muito confusa, sua confusão era tanta que nem ele entende completamente seus sentimentos.

— Você realmente tentou forçar uma saída do armário do seu amigo ou estava com ciúmes dos dois? — Cerfille dizia na mente de Sayumi.

A menina deixava o espírito sem resposta. Ela realmente acredita que os seus dois amigos a abandonam para si fecharem na própria amizade restrita deles. Os dois meninos são os únicos amigos dela, as únicas pessoas que ela se importa. Mas, de pouco a pouco, ela se via longe deles e incapaz de alcançá-los. Queria ficar para sempre ao lado dos dois, mas sentia que eles se distanciavam, iam a locais os quais ela não conseguia acompanhar.

Queria também ser reconhecida, ter poder, ser capaz, para que ela também consiga acompanhá-los. Com uma personalidade dissimulada, pouco pura, totalmente contrária ao que demonstra, Sayumi, mesmo assim, possuía sonhos comuns e pretensões até mesmo bobas para quem julga todos como patéticos.

Atravessando o rio Sena, e adentrando um pouco nas belas ruas de Paris, eles chegam à bela Avenue Victor Hugo, uma outra avenida parisiense ao norte da cidade, também bela, e cheia de variadas conveniências. Muitas pessoas. Mais pessoas. Muitos turistas. Incontáveis deles. É incontestável, Paris é uma belíssima cidade, cheia de pessoas diferentes, falando línguas diferentes e se comportando de maneiras diferentes.

Uma cidade cheia de marcos da antiguidade, contudo abarcando uma moderna infinidade no que diz respeito à sua diversidade. Humanos são curiosos, sem dúvidas. São tão diversos e, ao mesmo tempo, tão iguais. Costumes diferentes e línguas diferentes, mas uma só cidade consegue atrair pessoas de todas as partes do mundo e todos saem dali com algumas impressões aqui e ali, porém, indiscutivelmente, todos voltam aos seus determinados países com a mesma forma de pensar: “Paris é linda! Um pouco frustrante, porém linda!”

E, dentre todas as línguas e culturas, uma única cidade pode encantar e apagar essa lacuna cultural que existe entre os humanos. Sem dúvidas, humanos são curiosos e a sociedade criada por eles é mais peculiar ainda.

O cheiro incômodo desaparecia aos poucos e as pessoas pareciam menos agitadas. A temperatura estava agradável, nem tão quente nem tão fria. A atmosfera era de deslumbre por parte de todos. Angelie estacionava o carro e sinalizava para os três descerem. Logo abria um sorriso e estendia os braços à frente de uma parede branca:

— Aqui estamos... Fiquem honrados em conhecer o maravilhoso Inverse Doux Café! — Ela ria vendo a expressão de insatisfação deles.

— Ange, então, nós já comemos e...

— E na sua frente não há nada! — Oliver dizia rápido com um olhar debochado.

Eles voltavam ao carro, enquanto ela batia duas vezes no chão e construía códigos primordiais que decodificassem o encanto presente ali. Notando aquilo, eles se lembravam de algo crucial: tudo é possível no mundo reverso. Por exemplo, eles poderiam estar em um café do mundo reverso no meio de uma das principais avenidas de Paris.

— O que querem? — A garçonete perguntava e eles já estavam em uma mesa, sentados e mal perceberam isso.

— O cardápio? — Federico perguntava meio desconfortável, sem entender o que acabou de acontecer.

— Não tem... — Angelie sorria e colocava os seus óculos escuros em cima da cabeça.

— Como vamos pedir a comida, idio... — Sayumi percebia os olhares de confusão dos dois meninos, reconstituía-se e mudava seu jeito. — Ange. Como vamos pedir?

— Apenas peça...

Oliver tomava a frente:

— Eu quero um yakisoba com uma esfirra, também bacon, ovos e um suco de... Um suco de beterraba.

Espanto. Eles olharam Oliver com uma expressão mais confusa ainda e a garçonete anotava tranquilamente.

Da cozinha, uma mulher gritava alto:

— Angelie, minha querida, como você está? — Ela aparecia na presença deles no mesmo instante e abria muito a boca para falar. — Minha linda, fofa, doce, gordinha, gostosa, apetitosa, saborosa. Eu já disse que estou salivando? — Apertava as bochechas da menina.

— Conheçam Madame Gourmet... Sim, esse é literalmente o nome dela.

— Gigantes Devoradores? Deveríamos estar com medo? — Oliver cutucava Angelie com um sorriso intrigante.

— Nem um pouco! Abri este estabelecimento com o intuito de servir — ela falava alto e com expressividade — e talvez engordá-los até que fiquem no ponto e saborosos, apetitosos, gostosos... — Ela apertava as bochechas de Angelie com seus dedos em forma de salsicha. — Eu já disse que estou salivando?

— Não se preocupem, Madame Gourmet não possui autorização para comer...

— Acho que conheço a sua história... — Oliver olhava a mulher gigante bem na sua frente e percebia suas orelhas pontudas e seus chifres escondidos pelo cabelo. — Há vinte anos, uma Gigante Glutona contraiu um vírus carregado de energia negra e começou a devorar as pessoas descontroladamente... Vorazmente...

— O líder da família Lumiliques da época decidiu que, já que fiz sem intenção, poderia continuar viva, porém sem qualquer permissão de colocar algo na boca. — Madame Gourmet dizia triste.

— Como você está viva sem comer? — Federico prestava muita atenção na história.

— Digamos que comer para gigantes glutões é mais um hábito do que uma necessidade. Eles conseguem tirar energia do sol como se fossem plantas. — Angelie dizia sorrindo.

— Para uma punição dessa maneira... Quantas pessoas você comeu? — Sayumi não fingia ser fofa e tinha uma aura sombria rondando-a.

Mantendo um olhar fixo e até mesmo salivante em Sayumi, Madame Gourmet aparentemente dizia com espontaneidade:

— Duzentos e vinte e seis pessoas... Oitenta humanos e o resto foram muitas outras espécies...

— Repulsivo. — A herdeira dos Kubo sussurrava a ponto de apenas Oliver escutá-la.

— Arrepende-se? — Federico não possuía medo perto da gigante.

— Não. Definitivamente, não! Minha raça é tratada como lixo por toda a sociedade reversa. Somos feitos de peças trocáveis para uso pessoal de vocês, Paladinos. — Ela mostrava mais os dentes afiados. — Sabe como contraí esse vírus? — Madame Gourmet mantinha um olhar extremamente intimidador. — Fui levada para Tenebris e os demônios faziam experiências com o meu corpo aplicando toxinas carregadas por energia negra, trevas... Querendo saber como funciona o organismo de um Gigante Glutão... E como um sistema orgânico complexo como o nosso reagiria a diferentes formas de “tratamento”.

Não estavam exatamente surpresos, afinal, é uma história comum. Muitas criaturas e inumanos são tratados como indivíduos incipientes de direitos por anjos, demônios e até mesmo por paladinos, sendo negados a eles os seus direitos mais basilares, como se não fossem dignos o suficiente para usufruírem dos direitos à vida, à liberdade, à autonomia e à preservação de sua dignidade.

Gigantes Glutões, por exemplo, estão à beira da extinção e, mesmo assim, ainda são tratados como utensílios trocáveis em mercados negros. Tudo pelo seu raro e complexo organismo. Até mesmo o direito de possuírem um nome é negado, em que todos são tratados como Gourmet, já que na década de trinta, quando essa raça ainda vivia em uma escravatura, eles serviam a restaurantes e muitas vezes eram bichinhos de estimação de críticos gastronômicos. Na década de setenta, eles adquiriram a liberdade e foram reconhecidos pelo Conselho Paladino como parte integrante da sociedade reversa, porém pouca coisa mudou desde então.

 A garçonete vinha com o yakisoba, a esfirra, o bacon com ovos e o púrpuro suco de beterraba. Colocava em cima da mesa e a Kubo e o Gigabbia ficavam extasiados.

— Impressionante! Aqui tem uma gama de cardápio bem ampla, não é, Madame Gourmet?

— Ah, isso? Todas as comidas são feitas de doce-inverso. Não se preocupem...

— Doce-inverso? O que é isso? — Federico mordia a esfirra, enquanto Sayumi olhava com cara de nojo para as comidas, afastando-as com a mão.

— Quer mesmo saber, Federico? — ela retirava a esfirra da mão dele e dizia ao pé do ouvido. — Digamos que sejam excrementos de unicórnio...

Não há dúvidas. O popularmente conhecido como doce-inverso nada mais é do que dejetos do animal mais puro conhecido: o unicórnio. Facilmente moldável à magia, o doce-inverso pode ser convertido em qualquer coisa comestível já criada, como se fosse uma massa de modelar transmutável e comestível.

O alquimista espanhol Rufino Crespo observou o quão moldável à magia os excrementos de unicórnio são e, vendo alguns artigos de uns colegas biólogos na época, ele notou que o sistema digestivo dos animais é basicamente um purificador instantâneo, de forma que o bolo fecal, no fim das contas, apresenta-se como uma massa sem gosto, sem cor e transmutável. E, assim, ele constatou e apresentou ao mundo pela primeira vez o chamado doce-inverso.

Tudo é possível no mundo reverso. Não há impossibilidades. Sempre há uma saída e uma solução muitas vezes simples. Essa é a essência da sociedade reversa, que é reversa, inversa, mágica, impossível aos olhos comuns e sem impossibilidades para quem a conhece.

Federico engoliu o pedaço de esfirra que estava mastigando e pôde sentir algumas náuseas momentâneas pelo choque da informação. Tentava lembrar a todo instante: “isso é comida, comida de verdade, tem gosto de comida, foi transmutado em comida, é comida”. Mas logo percebia que repetir isso e tentar acreditar nisso não o ajudavam completamente: ainda era meio nojento. Precisava se acostumar.

Sayumi, por sua vez, mal tocou nas comidas e Oliver tomava o suco de beterraba. Angelie provocava a Kubo:

— Não irá comer nada, duas-caras? — dava uma piscadinha para Sayumi, que a encarou sem transparecer o incômodo. — Opa.

— Não, já havíamos comido no café da manhã e estou satisfeita... — ela sorria gentilmente, fechando os olhos.

— Minha querida Angelie, voltarei ao trabalho, está bem? — Madame Gourmet dizia sem mais delongas e Angelie concordava com a cabeça. — Até mais.

Madame ia rápida direto à cozinha. Uma menina baixinha passava por ela e ia na direção dos quatro com uma risadinha peculiar. Ela se achegou neles e disse com um tom divertido:

— Oi.

Eles olhavam para ela desorientados, sem saber o que falar. Usava uma boina e tinha um lenço de bolinhas amarrado ao pescoço. Com o cabelo até o maxilar em um tom alaranjado, ruivo, sardas e um nariz um pouco mais escuro que o resto do rosto, ela mostrava as pequenas presas que tinha:

— Ah, que chato... — contava apontando para eles: — Um, dois, três e quatro. Todos são integrantes de uma das dezessete famílias? Nossa, que raro...

Cerfille alertava Sayumi:

— Menina, estou sentindo energia espiritual.

— Pensei que estava ficando louca — sussurrava mantendo o olhar na menina.

Movia a mão com lentidão e dizia:

— Você tem algo interessante no pescoço... — apontava para Federico. — Diga-me, o que tem nesse medalhão?

Federico agarrou a ponta do cordão que estava por dentro da camisa e se manteve calado. Sayumi se segurava para não fazer nada. Na mão da menina, aparecia o cordão que estava no pescoço dele, fazendo que ela falasse em um tom sarcástico, enquanto balançava o medalhão, como um prêmio:

— Que feio... Escondendo de mim, logo de mim? Não faça isso novamente, está me entendendo?

— Devolva! — rugia, não acreditando no que via. — Isso não é seu!

— Não se pode ter um dos nove artefatos que possuem o poder de aniquilar uma das tormentas da sociedade consigo, sabia? Isso é perigoso.

— Tormentas da sociedade? Artefatos? — Oliver dizia ao amigo que tremia ao seu lado — Federico, esse colar é o mesmo de quando... — tinha uma forte dor de cabeça — o mesmo de quando éramos pequenos e...

— Sim, o mesmo de quando... — sua cabeça também ruía e seu desespero aumentava. — Você sabe! Ele quase te matou, Oliver... Eu preciso daquilo para... para... — não conseguia aguentar a dor. — Ai! Ai! — gritava alto. — Para te proteger!

A menininha ganhava um rabo e orelhas de raposa, sua pele ficava mais aveludada e rapidamente ela desaparecia.

— Esse menino tinha um dos nove artefatos? — Cerfille se estarrecera e Sayumi continuava sem entender muita coisa.

As mãos de Federico não paravam de tremer, a dor de cabeça passava. Oliver também se estabilizara:

— Precisamos encontrá-la e pegar aquilo de volta!

— É claro! — disse Federico, tentando se acalmar. — O que faremos?

— Farão nada! — Sayumi tentava não transparecer nada que fuja do que eles conheciam dela. — Quer dizer, ela foi para o mundo dos espíritos, não há como ir para lá...

— Como você sabe?

Ela não diria que agora é uma Paladina Sagrada e que possuía um espírito poderosíssimo dentro dela.

— Ela é uma kitsune, pode transitar entre esse mundo e o mundo dos espíritos livremente...

— Vamos pegar uma Cosmonave, então — Federico tentava parecer otimista.

— Não dá! — Eles se surpreendiam pela precisão dos fatos que Sayumi apresentava. — O mundo dos espíritos é um lugar onde apenas espíritos podem transitar. Não é apenas um lugar diferente, é uma realidade diferente. Até mesmo kitsunes se desgastam quando estão lá... não podemos fazer nada!

— Podemos sim! Já que não podem ficar tanto tempo, uma hora ou outra, ela terá de voltar ao mundo real! — Oliver estava convicto.

Os quatro se decidiram. Saíam dali rapidamente, enquanto Madame Gourmet gritava da cozinha:

— Não vão pagar?

— Ah, sim, Madame... — Angelie tirava do bolso várias notas e botava em cima da mesa. — Isso paga?

Ela tinha um sorriso sabichão no rosto:

— Sim, oh, se paga...

Angelie se conformava e seguia os outros três, que já haviam saído do estabelecimento. Eles estavam parados, esperando-a. Federico estava perdido em desespero e Oliver, aflito. Pelo temperamento dos dois, Sayumi entendia que se tratava de algo muito sério.

— O que faremos? — Angelie perguntava sem entender a situação.

— Por enquanto, vou espalhar um encanto rastreador por toda Paris. Isso demorará um tempo... — ele pensava consigo, olhando a herdeira dos Kubo. — Seria mais rápido e eficaz com espiritomagia, mas não temos ninguém aqui que utilize. Bom, eu sei fazer algumas coisas, mas não algo desse nível.

Ao escutar isso, Sayumi se sente mal, por incrível que pareça.

— Como tem certeza se ela sairá do Mundo Espiritual? — Angelie não queria ser pessimista, mas tinha de dizer o que estava pensando.

— É a única pista que temos — interrompia Federico.

— Vamos a um ponto bem centralizado — Sayumi olhava sério aos dois, abandonando um pouco aquela forma de falar —, ajudarei você com o encanto.

— Recomenda algum lugar, Angelie? — Oliver perguntava a ela, entendendo a expressão de Sayumi.

— Pode ser um pouco clichê, mas a Torre Eiffel é um núcleo mágico tremendo! E está localizada em um bom ponto de Paris.

Eles acataram. Não diziam mais nada e, durante o caminho, apenas se concentravam no que teriam de fazer. Angelie dirigia com velocidade, acionando as funcionalidades do velho Petit Chenille. Iam por todos os ângulos em uma velocidade extrema. Oliver já formulava alguns códigos primordiais e os conjurava em pequenos encantos durante o caminho. Federico possuía um olhar sério e inabalável, ele nunca se esqueceria daquele dia e nunca se esquecerá.

O acontecimento que não pode ser mencionado. Aquilo marcou a vida dele e a de Oliver para sempre. Naquele mesmo canto de antes, nos assentos traseiros, Sayumi tentava decidir se falaria toda a verdade e diria que é uma Paladina Sagrada e que poderia ir ao Mundo Espiritual ou se deixava o plano de Oliver seguir até ver no que daria.

Isso botaria sua vida em risco, mas, pelo menos, ajudaria seus dois amigos pelo menos uma vez.

Não sabia o que faria e tentava decidir no caminho, mas, em menos de três minutos, já estavam debaixo da torre de Paris. Muitas pessoas se aglomeravam ali, como formigas. Sayumi estava sob pressão e sua língua se enrolava dentro da boca. Seria mais fácil e rápido se ela falasse toda a verdade para eles e fosse ao Mundo Espiritual, arriscando a sua vida.

Para qualquer Paladino Sagrado, a situação seria a mesma. Ir ao plano dos espíritos significa arriscar sua energia vital ancorando-a no mundo real. Contudo, qualquer coisa pode abalar essa estrutura e o paladino sagrado pode morrer no processo. O desgaste mágico é outro aspecto preocupante, tendo em vista que se materializar no Mundo dos Espíritos requer grande quantidade de espiritomagia.

Imediatamente, qualquer partícula mágica que entra no plano dos espíritos se torna espiritomagia, mas as partículas mágicas que escapam do mundo real para o mundo espiritual são mínimas. Ou seja, se não existir espiritomagia o suficiente para um paladino se materializar no mundo dos espíritos, a ligação de energia vital, de sua própria vida, seria perdida, culminando na morte do usuário de espiritomagia.

Enfim, a chance de um paladino morrer nesse procedimento é muito alta.

Sabendo de tudo isso, Sayumi tinha reflexões e teria de pensar rápido. Diria a verdade ou não diria? Arriscaria sua vida por eles ou não?



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