História O Segundo Anjo (Crônicas de Antuerpéria) - Parte 2 Réquiem para Zessiel

Parte 2  Réquiem para Zessiel

__Por quê?...

A voz de Shou primeiro saiu baixa e inconformada.

__Por que dois seres diferentes não podem se gostar?... Qual o problema de um mago e uma fada se amarem?... Se o amor verdadeiro é tão raro em Antuerpéria, um amor como esse devia ser motivo de alegria...

E conforme as palavras saíam ganhavam mais ímpeto, não conseguia conter as lágrimas embora seu rosto se quer se franzisse.

__Ora essa...__ Zessiel sorriu de leve, a limpar-lhe o filete de lágrima com o auxílio de seu indicador.__ Alguém que toma a dor de outro ser também é raro em Antuerpéria... O que faz de você alguém muito especial.

Shou se voltou para a beira da fonte ainda calado e reflexivo, tocando as pedras quentes banhadas pelo sol, ouvindo o som tranquilo da água jorrando na fonte.

Não podia afirmar em voz alta que ele mesmo tinha fugido da pessoa que gostava e por mais que lhe doesse, não conseguia se desviar de seu propósito.

Zessiel tornou a se apossar calmamente do livro e notou a página demarcada pelo pergaminho dobrado, abriu na página em questão e leu com a devida atenção.

__Então... Sabe as coordenadas para o mundo onde deseja abrir o portal, Shou?

__Sei sim...__ O anjo permanecia meditativo.__ Mas, ainda que eu consiga executar alguma magia... Acho que não posso fazê-lo sem ter o algorab em meu corpo.

__Espera...__ Zessiel estreitou seu olhar esperto sobre Shou.__ Etzel sabe que está aqui?

__Eu não podia me despedir de Etzel...__ Shou confessou preferindo encarar a água límpida a se ondular.__ Nunca teria deixado que eu partisse.

__Tem certeza do que quer? Se for embora... Será adeus em definitivo.

A voz do mago sacerdote soou mais grave, queria mesmo lucidar Shou das consequências de sua decisão.

Ainda que não compreendesse as nuances, os detalhes da aparente relação que Shou tinha com Etzel.

__Por favor, Zess... Você é o único com quem posso contar.

Fechou o livro, um pouco de poeira se ergueu das páginas que produziram um som abafado. Não desviou seu olhar de Shou que ainda teimava em encarar a água que escapava da bica de bambu.

__Confia mesmo em alguém que você está vendo pela primeira vez na vida, Shou? Você não é realmente uma criatura desse mundo.

__Etzel disse que não era para confiar em ninguém... Mas, quando eu estava sozinho e desprotegido Etzel me acolheu, quando precisei de alguém que me guiasse Dawn me trouxe ao Tabernáculo... Não vejo porque não confiaria no amado da fada que me ajudou.

Era um mistério para Zessiel.

Esse jovem trajando vestes de magos, de longos cabelos azuis, de feições tão inocentes tinha o poder de despertar o lado bom dos seres com quem se encontrava.

Zessiel não sentia seu coração eternecido e tocado há tempos, raramente recebia outros magos no Tabernáculo, de modo que sua lida não poderia ser mais solitária, muitas vezes amarga.

Contudo, ainda que soubessse pouco ou quase nada sobre Shou, entendia as razões de Etzel para nunca deixá-lo partir.

Quando no fundo também compreendia que Finis Tempore não era de fato o lugar de Shou e que alguns seres simplesmente não tinham um lado bom a ser despertado.

__Convenceu-me, Shou... Conte comigo.

                                                                     **********

Naquela tarde, comeram pão de amarilis e Zessiel tocou sua cítara por um tempo apenas para Shou.

Era deveras raro ter alguma platéia, um ouvinte tão cativo.

Como as nuvens estavam muito densas e escuras e o vento mais bravio do que o previsto, Zessiel sugeriu realizarem o feitiço para abertura do portal antes do temporal chegar.

Ou dessa forma somente poderiam fazê-lo no dia seguinte.

Como Sacerdote do Tabernáculo, Zessiel conjurou o feitiço após desenhar as cordenadas dadas por Shou dentro de uma mandala no chão.

Havia um conjunto de palavras místicas que evocavam o portal, o faziam se abrir.

Contudo, Shou só poderia passar por ele quando estivesse totalmente aberto e uma luz dourada emanasse de seu interior.

A mandala por baixo dos pés de Shou se iluminou intensamente e seu coração se debateu no peito quando aos poucos o portal começou a se manifestar numa pequena fenda crescente.

As palavras melodiosas de Zessiel preenchiam o ar em movimento.

Seu peito de anjo arfafa a sentir o cheiro de chuva, clarões se precipitavam no céu.

A voz de Zessiel penetrava em seus sentidos de tal modo que criava uma expectativa sufocante.

Rapidamente o portal foi crescendo, a chuva começava lentamente a desabar em grossos pingos.

No entanto, quando o próprio Zessiel percebeu uma sombra temível se movendo como em flashes em sua direção era tarde demais.

Shou somente percebeu que havia algo errado no instante em que a voz de Zessiel cessou, havia sido bruscamente interrompida e nesse momento o portal entrou em colapso.

__Zess?... ZESSIEL!...

Gritou o nome do mago, virou-se e não o viu de imediato em seu campo de visão. Sem mesmo pensar, Shou tentou abandonar a mandala onde seus pés pisavam e sem mais, sem que pudesse evitar e ainda que tivesse tentado evocar e voar com suas asas, foi sugado pelo portal corrompido e aberto pela metade.

Shou jamais havia colocado tamanha força nas asas para tentar escapar e a última coisa que viu antes de ser tragado pelo portal foi um ser de asas cinzentas atacando Zessiel caído no chão.

Um raio caiu sobre a mandala, todo Tabernáculo estremeceu.

O portal se fechou em forma de espiral, não restava nada.

A vida abandonava o corpo de Zessiel.

Sua alma prestes a ser devorada.