História O Segundo Anjo (Crônicas de Antuerpéria) - Parte 2 O maior pecado do anjo contra Deus

Parte 2 O maior pecado do anjo contra Deus

Deixou a casa do velho Zinn pelos fundos.

Olhou vagamente para si mesmo, a blusa com o detalhe trançado de couro que vestia estava manchada com o sangue de Jang.

Não havia ninguém por perto e deixou que suas asas transparecessem fugidias por suas costas enquanto exalava um longo e melancólico suspiro.

Olhou para o céu antes de por os próprios pés dentro das sandálias para caminharem, o espaço azul agora tomado pelas nuvens cumulonimbus.

Até mesmo as nuvens pareciam insatisfeitas, relutantes e crescentes como paredões.

O vento soprando em seu cabelo à deriva de suas costas.

Um pouco mais a frente, seu olhar pousou numa única árvore que havia naquele cenário.

Uma árvore nua de folhas, com diversos galhos retorcidos e do ângulo que estava, via por trás daquela galhagem ressequida o aglomerado de nuvens.

"Eu sou como essa árvore. Fui jogado nesse mundo inóspito feito semente e involuntariamente criei raízes aqui, meu pensar e sentir são como estes galhos que apontam confusamente para várias direções. Eu apenas existo neste mundo e espero à mercê dele... E toda vez que tento mudar meu destino, termino por deixar tudo muito pior... Sou uma fralde de anjo e não pertenço a lugar algum."

Quando deu por si estava bem perto daquela árvore, a frente de seu corpo encostou-se nela, suas mãos se espalmaram com cuidado no tronco sentindo as cascas, alguns espinhos sutis. Uma de suas orelhas também estava recostada ali, pensou que estava ouvindo a tristeza da árvore, mas era na verdade o pulsar de seu próprio coração.

Não estava só.

Percebeu isso assim que a cabeça da salamandra se enfiou entre as mechas de seu cabelo azul, era Yang que estava em seu ombro e nem tinha notado, nem sentido ela subir por seu corpo.

__Yang... Se você está aqui...

Shou acariciou a cabecinha da salamandra e se virou.

Avistou Etzel parado a cerca de três passos da onde estava, antes andara tão mergulhado em sua tristeza que nem percebera sua aproximação.

O mago e o anjo trocaram olhares com alguma seriedade solene no gesto ditada pelo silêncio de suas vozes.

Com a vento entre eles a valsar invisível e contudo impossível de ignorar.

O cabelo púrpura e revolto de Etzel cobria-lhe ligeiramente o rosto e Shou deu um passo significativo em sua direção, tocando devagar a tez do mago numa carícia frágil.

O toque do anjo fez com que seus rostos se aproximassem com seus olhares numa simbiose absoluta, conduzida pelo desejo mútuo de se sentirem mais uma vez.

Etzel sentia a respiração de Shou na pele de seu rosto, seu olhar esquadrinhava a cada segundo mais afoito a face suave, o queixo bem delineado, a curva gentil de seu pescoço. Foi tomado por um impulso tão intenso, que Etzel o segurou pela blusa e seus lábios se encaixaram com doses semelhantes de saudade e loucura.

Shou sentiu suas asas irem de encontro ao tronco daquele árvore nua, abraçava Etzel com tanta força que seus dedos doiam, as juntas avermelhadas pela convicção alucinada de tê-lo ao seu lado outra vez.

__Etzel... Senti tanto sua falta...__ Shou admitiu num sussurro, quando seus lábios ainda trocavam discretas carícias.

__E me diz isso com tanta tristeza na voz...__ Etzel observou, portando um sorrisinho.__ Acho que não vou mais te por de castigo por ter me deixado, Shou.

__Etzel... O que houve com seu olho?...

Havia uma curiosidade em Shou que não deixava de pender ao infantil, quando sua mão erguia-lhe de leve a franja purpúrea comprida e se deparava com o tapa-olho no lugar da vista esquerda.

__Ah... Depois te conto, não é importante.__ Etzel disse ainda prendendo seu sorriso macio no rosto.__ Vim te buscar... Seu lugar é comigo, na Aldeia de Hanja ou seja onde for.

__Não posso deixar Ceres, Etzel.

Querendo ou não, um tocava o outro... As carícias tornavam o reencontro a cada instante mais real.

__Não? Pois, aqueles aldeões estão assustados... Sabia? Pelo o que eu ouvi, primeiro apareceu um lobo, depois um anjo que pousou com um rapaz ferido no meio do povoado e adivinha a reação deles quando viram o mago chegar...__ Etzel revirou o olho direito a rir.__ É só eu tirar o olho de você que se mete em encrenca, seu anjinho tolo.

__Se fosse tão simples...__ Shou suspirou, suas mãos envolvendo amorosas os ombros de Etzel.__ Não posso deixar Jang.

__Ei! Quem é esse tal de Jang?

O nome de Jang separou instantaneamente seus corpos, embora continuassem próximos.

Etzel mirou-se de soslaio em Shou, não sabia bem porque, mas tinha a forte sensação que isso envolvia o rapaz ruivo portador da espada naquela oiteira.

__Não adianta dizer quem é Jang... A história toda é muito mais longa do que esse detalhe, Etzel.

__Tenho tempo de sobra.__ Etzel replicou, a decisão em sua voz tinha a sombra da ironia.__ Conta pra mim.

Por onde começar? Seu coração estava pesado de culpa, pessoas tinham morrido por sua causa.

Havia mentido, caído em tentação, havia desistido de sua missão e até mesmo de Etzel quando pensara que nunca mais estariam juntos.

E tinha falhado em proteger Jang.

Chegou novamente o mais perto que podia dele, tocando-lhe com doçura as beiras da face e o sentimento mais forte que pairava em Shou era como Etzel lhe era precioso.

Sendo o mais inacreditável de tudo o fato de que precisara de apenas seis dias para desenvolver tamanho apego.

Em que outra realidade amar alguém assim seria possível?

Jamais havia sentido tamanho amor por alguém que não fosse Deus.