CAPÍTULO 15 – VELAS
Para falar a verdade, eu não percebi de imediato que o sequestrador estava morto, demorei alguns segundos para processar a imagem dele caindo ao chão dramaticamente, mas, quando o fiz, não hesitei em protestar.
— Kaio, o que você fez? — Perguntei. O garoto olhou para mim com fúria sobre os olhos e, mesmo sob a luz das velas, pude ver que respingos de sangue mancharam seu rosto.
— Eu não te matei. Fique satisfeito por isso. — Ele respondeu.
— Mas… Você não podia ter feito isso. — Rebati, levantando-me da cadeira. — Agora eles vão… Eles vão matar todo mundo que a gente conhece. Eu sei disso porque o sequestrador me disse.
— Besteira. Acha mesmo que eles fariam isso?
O garoto olhou desgostosamente para o corpo caído no chão e chutou a lateral do sequestrador que, de fato, já não respondia mais. Com raiva, Kaio cuspiu sobre o corpo morto e se virou para mim com mais fúria nos olhos. Eu não perguntei por que ele estava parecendo tão irritado, por que ele, mesmo que não tivesse feito, parecia querer me matar.
— Numa vez, quando eu fui com o Yian para o quarto do sequestrador, fui ameaçado. Ele disse que se eu o machucasse, todos os que eu amava sofreriam. — Respondi. — Ele estava nas minhas mãos e eu não o matei porque tive medo e soube pensar no que era melhor.
— Aí está a grande diferença entre nós dois. Você tem medo, eu não.
— Você tem, é claro que tem. Todas as pessoas têm medo de alguma coisa. Kaio… — Respondi. — Você acabou de colocar todos os meus amigos e toda a minha família em perigo.
— Eles vão ficar bem. Não se preocupe. — Disse ele, em tom de deboche.
— Eu não teria tanta certeza.
Antes que eu pudesse me afastar, o garoto veio andando na minha direção com passos largos. O revólver ainda estava na mão dele e eu não podia esperar que houvesse apenas uma bala, que foi usada contra o sequestrador, então supus que minha morte era iminente.
— Escuta aqui. — Disse ele. — Por que você acha que existem os testes? Por que você acha que o maldito sistema precisa escolher um garoto entre os demais? Lembre-se do que o Alan disse… Talvez eles tenham tentado isso até mesmo com Gordon Dale.
— Eu.. Eu não sei. — Respondi.
— Bom, é bem simples na verdade: porque eles querem. Eles querem um garoto forte, que já tenha passado por tudo isso. Eles querem alguém como eu ou como você para tomar a frente. O sequestrador mesmo disse isso. Ele já esteve em nossas posições. Posso ter sido envenenado naquela noite, mas minha memória está intacta e me lembro bem de quando ele falou isso.
— Então… Então você o matou para se tornar um líder? — Perguntei. Kaio deu um sorrisinho nada agradável.
Ele me lembrava um pouco do sequestrador, para ser sincero. O mesmo olhar penetrante, o mesmo sorrisinho pretensioso, a mesma capacidade de destruir a vida de alguém com um revólver. Ele se virou de costas para mim e começou a andar pela sala, passando a mão pela mesa e parecendo analisar os castiçais, as velas e os espelhos.
— Sabe, eu gosto de lembrar de como era quando você não estava aqui. — Disse ele subitamente. — Eu era o líder do grupo de quatro garotos. Matheus, o garoto que estava na casa antes de você entrar, era um cara legal. Ele era divertido, mas pouco corajoso. Nunca queria fazer as coisas que precisavam ser feitas. Eu o matei, sabia? O sequestrador enfiou uma faca nele, mas fui eu que tive que dar o golpe de misericórdia. Os outros não quiseram fazer isso, sabe. É isso que significa ser um líder: fazer coisas necessárias e, muitas vezes, sofrer por elas.
— Kaio, eu sei muito bem como é ser um líder, não se esqueça do que fiz para nos ajudar. — Interrompi, mas ele não pareceu me ouvir.
— Eu sempre fui muito justo. — Disse ele. — Acho que cada pessoa deve pagar por aquilo que fez. Tipo, se você mata alguém sem razão, mesmo que sem intenção, você deve ser morto.
— Fale isso para o Yian.
— Eu o matei porque precisei. — Ele se interrompeu e se virou para mim. — Agora, você matou o meu amigo sem intenção e sem necessidade.
Franzi as sobrancelhas para ele por um instante até me tocar do que ele estava falando. No pouco tempo em que fiquei na “chefia” no grupo, Alan morreu.
— Eu não tive culpa. — Respondi.
— Cale a boca. — Disse ele. — Alan era um cara bacana, diferente dos outros. Ele tinha uma deficiência, sabia? Ele não era como os outros garotos. Eu já havia visto ele fora daqui, certa vez, na faculdade, mas nunca conversamos. Ele não merecia morrer. E a culpa é toda sua.
Sem avisar previamente, ele avançou contra mim e a única coisa que eu pude fazer foi erguer as mãos. Kaio ergueu o antebraço e o colocou na minha garganta, pressionando com força, enquanto seu rosto permaneceu a centímetros do meu. O olhar dele estava carregado de fúria, e seus dentes, cerrados, quando disse:
— Ele não merecia morrer! Me dê um motivo para não ser justo agora mesmo e vingar a morte do meu amigo.
— Eu não tentei vingar a morte do Yian…
— Mas teria feito se tivesse a chance. Você mesmo me disse. E meu rosto ainda dói da pancada que você me deu há minutos.
— Eu estava com muita raiva. — Respondi. — Você não pode deixar que sua amizade pelo Alan danifique a nossa chance de sair daqui, Kaio. Escute bem. Eu não o matei, a culpa não foi minha, eu não pude evitar. Tentei avisar para vocês não comerem a comida do sequestrador, mas já era tarde demais.
— Ok, eu vou fazer as contas para você, já que parece difícil. — Ele disse, pressionando ainda mais a minha garganta. Eu tossi. — Eu, Yian e Alan fomos envenenados com algo que paralisou todos os nossos sentidos, enquanto você misteriosamente sabia da substância. Quando acordamos, Alan já estava morto e você estava fora da casa. Parece difícil somar um mais um? Você o matou!
— Não, não, não. — Murmurei, mal conseguindo falar. — Por que você acha que eu faria isso? Se eu quisesse matar vocês, por que não matei? Por que somente ele?
— Eu não sei, mas você o matou. Talvez tenha saído para trazer mais pessoas para nos matar, mas obviamente o seu plano não saiu como o esperado. — Kaio rebateu. — Olhe só. Eu vou contar até dez, tempo suficiente para você correr, depois disso vou fazer justiça com as minhas próprias mãos.
Eu não esperei ele falar de novo. Enquanto Kaio abaixava as mãos e direcionava o revólver para baixo, de alguma forma mostrando que não atiraria em mim se eu virasse de costas, eu me virei para o lado e corri. Corri o mais rápido que pude, mais rápido do que corri quando o sequestrador estava me perseguindo. Na verdade, eu não tinha muitas opções, apenas um corredor com algumas portas. Fui rapidamente para o fundo do corredor, onde ficava o alçapão para o porão, mas eu não me esconderia lá em baixo, nem que o próprio demônio estivesse atrás de mim, então tentei uma porta. Estava trancada. Outra, também trancada. A única porta que parecia aberta era a que levava para a “sala branca”, o lugar onde ficava a saída da casa. Obviamente, eu estava concentrado demais para poder contar, e me surpreendi com o grito do Kaio.
— Dez!
Entrei na sala, olhando em volta. Tudo parecia como antes, sem nenhuma mobília ou algo parecido. Corri até a pequena porta que levava à escadaria de saída da casa, mas ela estava trancada (pensei que provavelmente a chave ainda estava escondida nas roupas do sequestrador – Kaio não sabia disso, muito menos da saída). Sem saber o que fazer, voltei ao lado da porta e me escondi atrás dela, enquanto Kaio andava pelo corredor. Eu ouvi os passos dele se distanciando e me espremi contra a parede e a porta para não gritar. Parecia uma cena de um filme, para ser sincero: eu, escondido atrás da porta, esperando a minha morte iminente.
— Onde você está? — Kaio perguntou. — Apareça! Você não pareceu muito desencorajado a me bater quando entrou na sala naquela hora…
Isso é porque na hora você não tinha um revólver, pensei, mas lutei para não responder em voz alta. Tive que controlar a minha respiração quando ele se aproximou da sala branca, parando no batente. Eu não podia fazer o mínimo ruído ou o mínimo movimento, contudo, parecia quase impossível não ser achado.
— Interessante. — Disse Kaio, entrando na sala e olhando diretamente para a porta de saída da casa. — Eu não sabia que aqui ficava…
Ataquei antes que ele percebesse. Empurrei a porta com toda a força, que bateu nas costas dele e o garoto caiu de joelhos.
— Droga. — Praguejou ele, colocando a mão na nuca. Para minha infelicidade, percebi que ele ainda segurava o revólver.
O meu plano era fazer o mesmo que fiz com o sequestrador, ou seja, nocauteá-lo e fugir, mas, de alguma forma, mesmo que eu tenha usado toda a minha força, Kaio permaneceu parado no chão como se quase nada tivesse acontecido. Contudo, já que não podia brigar com ele, aproveitei o momento para sair correndo novamente.
Ele foi mais rápido. Quando eu estava no meio do corredor, senti uma mão segurando o meu tornozelo e de repente caí. O impacto retirou o ar dos meus pulmões e eu lutei para respirar enquanto virava para encará-lo. Kaio estava sobre mim, com a arma apontada para o meu rosto, os dentes cerrados e os olhos fixos nos meus.
— Quer saber — ele começou a falar —, eu perguntei ao Alan o que você tinha de especial, mas nunca precisei da resposta. Eu sei. Você é diferente porque é idiota, acha que pode me derrotar, correndo e se escondendo, mas não pode.
— Me deixe em paz! — Gritei, enquanto ele colocava uma mão no meu pescoço. Como não tínhamos os apoios da parede e como ele estava sobre mim, senti todo o seu peso sobre a minha garganta. Engasguei.
— Não adianta gritar. Na verdade, isso só me deixa mais irritado. — Disse ele. — Se você ficar bem quietinho, talvez eu te mate de uma forma rápida e quase indolor. Note o “quase”.
Ele colocou o cano da arma entre as minhas sobrancelhas. Eu olhei para seu rosto repleto de fúria e notei que aquele era o momento perfeito para quebrar sua armadura. Franzi o cenho e perguntei:
— O que aconteceu com você?
Ele estreitou os olhos.
— Cale a boca!
— O que… — Engasguei novamente. — O que aconteceu com você? Por que você está fazendo isso? Por que não podemos simplesmente sair da casa? Por favor, Kaio, pare com essa bobagem.
Ele retirou a mão da minha garganta e por um instante eu tive a esperança de que tinha conseguido convencê-lo, mas não foi bem isso. Ele se apoiou no chão, com as mãos ao redor da minha cabeça, e senti seu corpo sendo pressionado contra mim, mas não foi nada agradável.
— Eles nunca vão parar de nos perseguir. — Ele cochichou lentamente, pausando a cada palavra. Subitamente, quando os olhos dele desfocaram, percebi que o que eu estava fazendo era inútil. Ele estava quebrado, e não havia concerto.
— Kaio, por favor. — Respondi, tentando ganhar tempo.
Ele apertou as mãos no chão e de repente me mirou com uma espécie de dor.
— Eu amava uma pessoa. — Disse ele subitamente. — Eu tinha uma namorada. Ela… Ela não sabe que eu estou aqui. Eu a amo. Eu quero voltar para ela, mas, se eu fizer isso, a deixarei em perigo. Entende agora, Oliver? Eu sempre fui o líder e um líder precisa fazer sacrifícios.
— Você não precisa ser o líder. Pode voltar a ficar com a sua namorada.
— Eu não posso.
— Pode, sim. Eu te asseguro que ambos ficarão em segurança, nem que eu tenha que fazer outro trato com o Montmore.
De repente, como se eu tivesse recitado uma invocação ao Diabo, Kaio olhou para mim com puro terror nos olhos. Ele voltou a colocar as mãos em mim, mas, desta vez, foi em cima do meu peito. O revólver continuava a balançar na sua mão direita.
— O quê? Você fez um trato? — Disse ele, com raiva.
— Sim. Eu troquei a minha liberdade pela segurança do meu vizinho e da amiga dele, que agora sabem da verdade. — Respondi. — Viu só, Kaio, não são só os líderes que fazem sacrifícios.
— Não, não, não. Eu não acredito em você. — Ele rebateu. — Você fez um trato para se tornar um novo fornecedor. E eu não vou deixar você tomar o meu lugar!
Ataquei novamente. Tentei o mesmo golpe que dei sobre o sequestrador no dia que fugi da casa, mas Kaio percebeu e desviou a minha joelhada das genitais dele. Em vez do golpe acertar sua área íntima, acertou a coxa. Ele caiu para o lado, sem largar a arma e ainda agarrado ao meu antebraço. Eu tentei me levantar, mas ele era muito forte, então, chutei seu braço diversas vezes. Finalmente me vi livre de suas mãos e retornei a correr.
Corri o mais rápido que pude. Repentinamente, ouvi um disparo do revólver. Esperei sentir a dor, mas ela não veio. Ele errou.
Entrei na sala do jantar outra vez, e estranhamente tudo lá parecia morbidamente parado, com um ar de morte. Sem ter o que fazer, virei-me para trás e fechei a porta dupla do salão (não sabia porque não tinha pensado em fazer isso na sala branca). Eu não estava com a chave, obviamente, então recorri a um castiçal do armário ao lado para trancar a porta, colocando-o em ambas as maçanetas. Não demorou muito para ouvir as pragas do Kaio, do outro lado da porta, enquanto ele tentava abrir a porta. Ouvi um disparo também, que atingiu a fechadura, mas foi inútil, pois eu não havia exatamente trancado a porta.
Decidi olhar para trás pela primeira vez. Quase que imediatamente, vi que aquela sala não tinha saída além de uma única porta, agora bloqueada, e então comecei a me desesperar. Se Kaio entrasse, com certeza seria a minha morte. Agarrei um dos castiçais da mesa e, com a vela acesa, iluminei o local. O corpo do sequestrador ainda estava lá, sobre uma poça nojenta de sangue. Eu evitei olhar para ele, mas foi quase impossível. Em vez disso, olhei para a mesa e procurei por qualquer coisa que pudesse servir de proteção ou de arma: havia algumas facas, mas elas não seriam páreas para um revólver, então descartei a ideia; também havia panelas e pratos, mas duvidei que elas me impediriam de ser baleado. Sem pensar duas vezes, abaixei-me e procurei no corpo do sequestrador pela chave da saída. Estava no bolso da camisa.
Contudo, havia mais coisas que eu podia usar. Não sei como explicar isso, mas posso dizer que foi um tanto quanto surreal. Não sei se foi por alguma inspiração divina ou por causa de outra coisa, mas subitamente entrei no mesmo estado que sempre ficava a momentos antes de atuar. Foi como se uma névoa ou uma cortina negra se formasse ao redor, como se nada mais tivesse importância. Exceto por mim, Kaio, aquela garrafa de vinho e as velas. Não controlei mais meu corpo, deixei a minha intuição tomar conta de tudo. Passei as mãos pela mesa de madeira, notando que tudo parecia especialmente inflamável. Peguei a garrafa de vinho, bati com força sobre a mesa e a quebrei, jogando todo o seu conteúdo (que era bastante, pois estava quase cheia) sobre a madeira. Agarrei uma vela do armário de pratos ao lado e a escondi atrás de mim.
Foi nesse momento que Kaio conseguiu entrar.
— Espere. Espere. — Eu disse rapidamente, quando ele apontou a arma para mim. Olhei para a mesa e notei que todo o vinho ainda estava sobre a mesa, e, com uma pitada de esperança, vi que a maioria dos móveis também era de madeira. — Espere.
— Eu não quero esperar. — Disse Kaio.
— Não, não, não. — Interrompi apressadamente novamente, rezando para que ele não percebesse o plano. A minha intuição gritava. — E se… E se você não me matar? E se eu continuar vivo, mas não sair dessa casa?
Kaio estreitou os olhos e começou a andar na minha direção. Eu também me movi, indo lentamente, passo por passo, pelo outro lado da sala – porque aquele plano não daria certo se eu ficasse no lado errado da mesa.
— Como assim? — Perguntou ele.
— Pense bem. — Respondi. — Não seria bom ter um garoto que já foi sequestrado? Digo, quando outros garotos chegarem, eu posso ser útil de alguma forma. Eu posso… Eu posso convencê-los a realizar os testes. Eu posso ser útil para você.
— Isso não me soa bem. — Ele rebateu. Meu coração disparou, pois ele parecia muito desconfiado. — Como você seria útil?
— Não sei, não sei. Mas me lembro de quando cheguei aqui. Graças à confiança que vocês me deram, fui convencido a não lutar contra o sequestrador. Eu posso dar essa confiança aos novos garotos que chegarem. — Respondi, falando nada com nada apenas para ganhar tempo. De repente, notei que ambos estávamos nos lados certos: eu estava na frente da porta, pronto para sair, e ele, do outro lado da sala, a metros de distância.
Ele abaixou o revólver.
— Faz sentido. — Disse ele. — Tudo bem, eu não vou mais matá-lo. — Disse ele. — Mas, espere, você…
Ele levantou o revólver novamente, mas eu já havia agido. Com um pouco de força joguei o castiçal em cima da mesa, que, por causa do vinho, inflamou como um galho seco. Saí da sala rapidamente, antes que ele pudesse atirar, e fechei a porta dupla, segurando-a firmemente. Não demorou muito para a fumaça e o cheiro de brasa invadirem o corredor e eu tive que ser forte quando ele tentou abrir a porta. Escutei o barulho de fogo.
— Oliver, o que é isso?! — Gritou ele. — Por que você fez isso?!
Eu não respondi, estava concentrado demais em segurar a porta. Meu coração disparou quando ele começou a gritar. Eu estou queimando, eu estou queimando. Por favor, Oliver, me ajude. Eu não ajudei. Fiquei segurando a porta enquanto os ruídos foram se tornando cada vez mais altos: os gritos dele e o crepitar da madeira seca. Fiquei imaginando qual era a idade daquela mobília e por que ela inflamou tão rápido.
Esperei alguns segundos para abrir a porta novamente. A visão não foi nada agradável. Tive de me afastar um pouco por causa do calor e a fumaça sufocante, vendo labaredas que subiam do chão ao teto, do carpete ao lustre. Todos os armários ardiam, todo o papel de parede. A mesa estalava por causa das chamas. Era uma visão do próprio inferno. Uma nuvem negra subiu pelo corredor e eu comecei a tossir. Procurei por Kaio no meio das chamas, mas não o achei e supus que ele já havia sucumbido no meio dos escombros.
Então corri. Embora tudo estivesse horrivelmente escurecido pela fumaça, aquele foi o momento que eu realmente respirei profundamente. Senti todo o peso da casa deixando os meus ombros e corri até a sala branca. Fiz o mesmo processo da outra vez, abri a porta rapidamente e desci as escadas com cuidado para não cair. A fumaça me seguiu, mas não foi muito longe. Com força, praticamente arrombei a porta da casa e, de repente…
Eu estava livre.
Eu estava realmente livre.
Longe de tudo e de todos que poderiam me causar mal. Aquela rua não parecia muito agradável da outra vez que estive ali, mas, naquele momento, aquele parecia ser o lugar mais pacífico do mundo. Saí praticamente correndo até atingir a calçada do outro lado da rua e olhei para trás. Para a minha surpresa, toda a casa estava em chamas, não só uma sala, mas todas as paredes e inclusive o telhado. Os meus medos queimaram naquelas chamas. Fiquei imaginando se as paredes também eram de madeira, se eu nunca tinha percebido isso ou se era intencional que eu não percebesse.
Tudo estava pegando fogo, e até mesmo um pedaço do gramado. De repente, por causa das chamas, obviamente, a casa inteira sucumbiu. O barulho dos destroços não foi comparado à minha satisfação do momento: tudo veio ao chão, cada viga, cada centímetro, cada telha. Uma nuvem de fumaça, fagulhas e poeira se levantou, mas não me atingiu. Era como se nada pudesse me atingir naquele momento.
Exceto uma coisa.
Fiquei olhando para os destroços por um tempo e primeiramente achei que era uma miragem causada pelo calor das chamas, mas não era. Os escombros estavam se movendo, estavam de fato se movendo. Uma telha caiu, uma viga saiu do lugar e de repente algo emergiu do fogo.
— O-oliver. — Kaio murmurou, vindo na minha direção. O corpo inteiro dele estava em chamas.
Eu não pude conter o meu espanto naquele momento e a única coisa que fiz foi andar para trás, contudo tropecei no meio-fio e caí, assustado. Não havia como ele sobreviver àquilo, a um incêndio e um desabamento. Era para ele estar morto…
— Vá embora! — Gritei, suspeitando que minha voz tinha saído alta demais. Ele não parou.
O garoto continuou a vir na minha direção, com as mãos levantadas, parecendo um morto-vivo. Eu não consegui desviar quando as mãos dele seguraram os meus punhos. Consegui me levantar e empurrá-lo, mas as chamas queimaram os meus braços. E, também, as chamas queimaram a vida dele. Sem aviso prévio, Kaio caiu ao chão e fagulhas subiram. Ele estava morto.
Olhei em volta, esfregando os pulsos por causa da dor, e não pude ver nada além de escuridão. Embora tudo tivesse acabado, eu ainda não estava exatamente bem. Estava okay.
***
— Para ser sincero, Sr. Colton, esse foi o depoimento mais longo e mais surpreendente que esse departamento de polícia já recebeu. Não temos palavras para descrever como sentimos muito pelas suas perdas e seu sacrifício, contudo podemos dar respostas. Acha que tem alguma pergunta, alguma dúvida que queira perguntar a nós?
Sim, sim. Eu tenho. Eu gostaria de saber como fui parar no hospital, porque a última coisa de que me lembro antes de acordar em uma cama, é de uma escuridão se aproximando e a casa pegando fogo.
— Bom, essa pergunta é fácil de responder. Você foi achado por moradores locais e atendido por paramédicos minutos após o seu desmaio. As pessoas que ouviram o desabamento da casa o ajudaram. O protocolo do hospital insistiu para que esperássemos para resolver essa questão, pois disseram que você tinha inalado muita fumaça e precisava de cuidados delicados. Além disso, as queimaduras nos seus pulsos também não pareciam legais.
…
— Se o senhor já terminou o seu relato, devo pedir para que olhe para essa câmera. Olhe para ela, diga o seu nome, a sua idade e faça um pequeno resumo de toda a história contada aqui.
Meu nome é Oliver Colton. Eu tenho dezenove anos, faço vinte no próximo mês. Sou estrangeiro e vim para os Estados Unidos esperando iniciar uma carreira de ator. Fui sequestrado durante uma festa dos meus amigos e me levaram para uma casa que, até dias atrás, eu não sabia onde ficava. Fiquei preso com outros três garotos, obrigado a cumprir qualquer desejo do sequestrador, descobri sobre o Sistema. O sequestrador nos torturou, nos manipulou e ameaçou matar os meus amigos e até mesmo a minha família se eu não obedecesse. Eu e os outros garotos tentamos ser fortes, mas as coisas saíram do controle. Eu me apaixonei por um deles. Por minha causa, um dos garotos morreu; fugi por isso mas tive que voltar para garantir a segurança do meu vizinho e da amiga dele. Quando voltei, o garoto que eu amava foi morto na minha frente e, logo depois, o outro garoto remanescente assassinou o sequestrador. Não tive escolha. Causei um incêndio para poder fugir e matei o garoto rebelde. Ele estava completamente fora de si e eu tentaria salvá-lo, se pudesse. Meu nome é Oliver Colton, e eu sobrevivi ao Sistema.
— Ótimo. Muito obrigado, Sr. Colton. Agradecemos muitíssimo a sua importância para esse processo de investigação e esperamos atualizá-lo com as melhores notícias em breve. Gostaria de fazer mais alguma observação? Ainda posso anotar isso…
Sim, anote. Escreva que eu não quero isso para ninguém, escreva que não quero que isso ocorra nem para o meu pior inimigo, nem que eu fosse a pessoa mais terrível do mundo. Quem tem poder, dinheiro e segurança conseguiria resolver tal situação por pagamento – poderia pagar o sequestrador ou até mesmo o Montmore. Mas aí fica o questionamento. E quem não tem? E quem não tem dinheiro ou poder suficiente para salvar a própria pele? E se mais garotos como eu estão sendo abusados da mesma forma agora mesmo? Eu não quero que isso ocorra com mais ninguém. Alguma coisa deve ser feita.
— Estamos trabalhando com a máxima força sobre esse caso, Sr. Colton, e o seu depoimento ajudará muito. Não se preocupe. Não deixaremos que mais alguém sofra nas mãos do Sistema.
…
— Mas, agora eu tenho uma pergunta. Já que você está são e salvo e supostamente os seus amigos também, considerando que já tem todas as informações necessárias sobre Londres, Montmore, o Sistema e os fornecedores… O que vai fazer? Como vai levar a sua vida daqui em diante? O que você vai fazer quando sair daqui?
Eu já disse que não quero que isso ocorra para mais ninguém, então é simples. Eu vou destruir o Sistema.
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