Sangue escorrendo do meu nariz, pessoas me olhando, e uma maldita sensação de deja vu. Odeio, com todas as minhas forças, quando isso acontece. Sinto-me como se tivesse sido largado na rua, no chão, no lixo. Porém na verdade eu estou largado no chão da escola, no pátio especificamente, e minhas mãos estão suando e minha barriga dói.
- Baekhyun? Você tá legal, cara? – Chanyeol, um colega de classe, aproxima-se, abaixando-se ao meu lado, no chão, e franze o cenho ao me analisar. Talvez ele saiba, afinal, ele é conhecido por mexer com espiritismo, e ele sempre está por perto quando algo acontece comigo. Mas ele nunca me ajudou realmente, apenas com palavras talvez.
Muitas pessoas achariam isso legal, ver o que a maioria não vê, saber o que vai acontecer, enxergar uma realidade além. Não, não é legal. Não é gratificante e não é divertido, principalmente quando não se sabe controlar e quando não tem alguém para lhe ajudar. Eu não tenho ninguém, nem a merda do meu melhor amigo, Luhan, me ajuda, ele sequer me olha mais.
Nunca entendi muito bem o que eu sou, ou o que eu tenho. Não é como se eu fosse um super-herói, que irá salvar a humanidade, ou um profeta que sabe o dia que o mundo irá acabar. É apenas a ansiedade, o medo, as noites sem conseguir dormir, os acontecimentos estranhos, e os constantes deja vus. Às vezes não consigo sequer me olhar no espelho. Tenho medo pois nunca soube controlar isso, e sempre acontece quando eu menos espero, como agora.
Olham-me como se eu fosse um animal abandonado, ou um doente largado na rua, um pobre coitado. Mas, porra, eu não sou! E não ficarei mais um segundo nesse lugar. Talvez eu aprenda a controlar um dia. Um dia. Luhan não me ajudaria de qualquer forma. Ele era acolhedor, maduro, confiável, amigo, mas não o suficiente.
Farei o que sempre faço quando isso acontece: escondo-me.
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Como um sonho que se repete sempre; o fogo, a janela, o cheiro de canela e uma mão no meu ombro. Porque esse sonho - ou talvez eu deva usar um termo melhor: pesadelo - parece tão real? O sangue realmente está escorrendo do meu nariz e manchando minha roupa, que provavelmente estarei lavando mais tarde. E as pessoas realmente percebem que há algo de errado comigo, mas ninguém diz o quê ou o porquê, ninguém nem sequer pergunta como eu estou me sentindo. Ninguém se importa. Eu me sinto perdido. O mundo conspira contra mim, esse mundo. Meu mundo é outro.
Pouco me importa as perguntas do diretor, ou se vai doer se a enfermeira pingar algumas gotas de água oxigenada no meu nariz. Ele não está ferido, não há nada de errado com ele. Eu não briguei com ninguém, e não estou com câncer ou algo do tipo. As pessoas têm sérios problemas em julgar as pessoas. Isso, elas mesmas. E eu também sou uma pessoa.
Meus pesadelos costumam vir nas quartas-feiras, assim como o suor e a sufocação. Eu sempre acho que vou morrer. Mas a voz do meu próprio pesadelo parece me salvar, e eu acordo para uma realidade paralela.
Como feixes de luz, uma sala vazia e uma cadeira onde eu devo me sentar. Sento-me e espero algo acontecer, mas nada acontece, porém, uma mão toca o meu ombro e eu percebo que talvez aquilo não seja mais realidade. Acordo. Meus sonhos são quase sempre assim, a não ser, claro, que eu sonhe com o nada. Com o clarão ou com a escuridão.
Agora é terça-feira e a luz do sol acabara de me acordar. Levanto-me do chão frio e dos lençóis bagunçados ao meu redor e fecho a janela, jogando um pouco da minha raiva em meus movimentos ao fazê-lo. A energia do meu medo e da minha raiva fora transferida com sucesso para a madeira, os tecidos e a porta. Não tem ninguém em casa. Quando estou sozinho em casa tudo fica mais silencioso, como um vão, e eu fico mais tenso, em alerta para qualquer barulho fora do comum. Eu sempre estive só, na verdade, mas ao mesmo tempo não. É complicado, não é algo que deva ser explicado com palavras.
Eu deveria trancar as portas? Não acho muito amigável ficar em uma casa onde todas as portas e janelas estão abertas. A casa é imensa, e ainda tem um porão e mais a garagem e o quintal, a jornada de trancar porta por porta é cansativa, contudo pode substituir uma caminhada de meia hora mais ou menos pelo parque, o que eu pretendia fazer, se meus pais não tivessem saído sem avisar, em uma terça feira! Com certeza algo vai acontecer hoje, ou talvez seja apenas mais um de meus delírios já que passei noite passada consumindo açúcares industrializados e jogando videogames como se eu fosse lunático, eu fazia isso melhor quando eu era um pirralho.
Usando apenas moletom cinza com um par de meias vermelhas e não tendo tomado um café da manhã descente, começo pelo andar de cima. Não entendo o motivo de meus pais gostarem de morar em uma casa tão grande como essa se somos apenas nós, pelo menos de humanos. Se eles me sabem eu não sei, mas eu faria qualquer coisa para não continuar a viver nesse lugar. É bizarro, sinistro, mórbido, e todos os sinônimos destas palavras.
Quando a primeira gota de suor começa a escorrer pela minha testa, eu retiro a chave da tranca da porta do último quarto que faltava. Agora estão todas trancadas. Meu celular toca. Algo me assusta e eu saio correndo. Inconsciente.
[...]
Onde eu moro não tem nada de especial. Não tem o barulho que as famílias normalmente têm, não tem risos ou lágrimas, é apenas um vazio. Eu não entendo o porquê de eu ainda permanecer nesse lugar. Era tudo tão monótono e cansativo, como se a cada ano que passasse parecesse estar ficando cada vez mais igual. Como se não fosse existir alguma singularidade naquela cidade para contar história.
Mas talvez algo singular existisse, mas não explicitamente. Yixing, um cara chinês que conheci há tão pouco tempo, mas que já tive tanto contato, as vezes acho que talvez ele seja como eu. Ele parece sentir bem o ambiente onde está. Ele, segurando uma bíblia revestida em uma bolsa de couro preta, eu a chamo de o livro negro, e não sei bem o porquê, talvez por eu ser tão comum ao ponto de chamar as coisas de nomes diferentes do que a maioria das pessoas costumam chamar, mas que acabam chamando de um nome igual mesmo pensando ser um nome diferente e que ninguém pensaria nisso antes.
Ele usava uma roupa social completamente preta, com um traço branco bem no meio da gola, a cor escura da roupa dava destaque a pouca pele que aprecia. Diferente da maioria dos chineses ele não era amarelo e sim branco, um branco fantasmagórico e misterioso, mas seus cabelos e olhos eram negros. Parecia concentrado em pensar algo, apoiando o queixo em uma das mãos e a outra segurando o livro negro em cima da mesa de madeira do bar onde estávamos.
O conheci depois de um delírio, igualmente a esse, onde estou em lugar e logo depois estou em outro, sem ter ideia de como aconteceu. Eu estava com a mesma roupa, e ele também, assim como a expressão, e sentado no mesmo lugar.
Tudo havia sido meio rápido, me sentei no outro lado da mesa de bar em que ele estava, e sorri discretamente, demostrando interesse no livro negro que ele segurava. E ele me olhou, mas pareceu não me notar logo de primeira. Proferiu um "pois não?" em um tom culto e suave, deixando uma primeira impressão de ser uma pessoa calma e educada. Eu me senti confortável, como normalmente não acontece quando conheço alguém há tão pouco tempo. Eu normalmente me sinto inseguro e com a sensação de que vou ser jogado no chão e pisoteado. Mas ele meio que me abraçou, sem ao menos me tocar. E eu me senti acolhido pelos olhos negros dele.
- Por que você acredita em Deus? – indaguei. Confesso que não sabia muito bem o que perguntar, mas logo minha curiosidade tomou-me de conta e quis saber de sua resposta.
Pensou, pensou, pensou, até que finalmente me respondeu.
- Porque ele é o que me leva a pensar duas vezes antes de fazer algo. – Ele encarava o canto da mesa, havia apenas um copo na mesma - Como uma força, algo que está dentro de mim, mas que eu não consigo ver. Algo que pode me controlar e ao mesmo tempo não. Como se eu conversasse com ele internamente, mesmo sem vê-lo, eu sinto que ele me escuta. - Palavra por palavra, ditas como se ele estivesse tentando ler os próprios pensamentos, parecia mais pensar para si mesmo do que responder a mim. Talvez eu já esperasse uma resposta dessas.
- Normalmente uma pessoa responderia: Por que Ele é o nosso salvador, por que Ele é minha força, ou por que Ele ama a todos nós igualmente. – Precisei tossir – Por que Ele morreu por nós...
- E você? Acredita em Deus? - Agora, em uma caminhada lenta pelas ruas urbanas, ele me perguntava, quebrando o silêncio do vento bagunçado.
- Eu acredito que há uma força entre os dois mundos. Como céu e inferno, mas nenhum dos dois sendo algo bom ou ruim. – Procurei nas ruas algum lugar conhecido, enquanto pensada no que falar – Talvez o bem e o mal estejam sempre em harmonia... Nas pessoas e no mundo. Em tudo. Mas realmente respondendo sua pergunta, eu sou daqueles que só acredita no que vê. Arrogante da minha parte, não? Há tantas coisas por aí que não podemos ver, mas que acontecem. Eu posso ver... – Não quis terminar a frase, apenas deixei o vento levá-la. Mas Yixing não.
- O que você pode ver? – Talvez fosse o primeiro momento ali que ele realmente me olhasse nos olhos, sem parecer vagar pelas ruas. Ele com certeza deve saber, pois ele é igual à mim, ele também pode ver, posso sentir isso na energia que o corpo dele me trás, há alguém tentando lhe dizer algo. Talvez seja eu.
- Um mundo, Yixing! Eu vejo um mundo além desse! – Praticamente gritei, de braços abertos, causando espasmos no meu subconsciente. A primeira gota de chuva caíra bem na ponta do meu nariz e eu estava me sentindo feliz com aquele momento. Mas apenas naquele pequeno momento.
Ele me entendeu. Não houve necessidade de palavras, eu sei disso.
- É difícil de acreditar que nossa amizade tenha acontecido tão de repente, mas já possuímos uma confiança tão grande. – Eu disse.
- Não somos muito diferentes... – Ele me olhava com outro olhar, seus olhos já não eram tão negros, eu podia enxergar as nuvens vagando.
- Você é incrível, Baekhyun. – E seus olhos já não são tão negros quanto a chuva quando ele se aproximou, me olhando firme nos olhos, pela primeira vez eu não estava anestesiado com aquela sensação. Tudo acontecia tão rapidamente, tão lentamente. Era uma antítese. Ele não me conhecia e eu não conhecia ele. Ele me conhecia e eu conhecia ele. Ele me beijou e eu beijei ele. E a chuva nos abraçou.
“ Não devemos nos importar com o que os outros pensam. ’’ – Ele disse, sem usar palavras.
“É algo que está bem ao seu lado mas você não pode ver. “ – A voz disse.
[...]
Como eu?... Talvez eu previsse que acordaria deitado no meio de uma praça, quase congelando e usando apenas moletom, o que eu costumo usar para dormir. Na verdade, estou com a mesma roupa que acordei. Não há muitas pessoas por aqui, o céu está nublado e meu estômago arde de fome. Há quanto tempo estou fora de casa?
O céu cinza, o cheiro de canela... A pessoa com quem sonho, mas que nunca vejo o rosto. Sinto que algo conhecido está próximo. O que eu sempre vejo na escuridão, que me maneja uma força sobrenatural, eu deveria seguir essa minha intuição?
Algo me chama, eu sei que sim, então eu deveria atender, não? Talvez não. Ou talvez sim. Sim. Algo está por perto, mas... Eu ainda não conheço onde estou e não consigo raciocinar muito bem, como se eu estivesse sobre pressão, como se eu fosse um CD arranhado.
- Eu estou mal e você acha que está bem, mas na verdade nenhum de nós dois estamos bem e você age como se estivéssemos e ficamos bem com isso... – Aquela voz. Ouço aquela voz bem atrás de mim e, quando percebo, não estou mais na praça. Eu conheço essa voz, tenho quase certeza, se eu pudesse ver ser rosto...
- Yixing? – Pergunto, mas na verdade eu estava afirmando, eu sabia que era ele. Vejo o reflexo de sua silhueta com a luz fraca do local. Só pelo seu cheiro, seu ritmo de andar, seu jeito de respirar, seu jeito de fungar o nariz com as costas das mãos. Eu não precisava olhar para saber que era ele. Seu jeito é tão único e diferente que posso dizer que é ele, Yixing, o próprio. Cada pedaço de seu corpo, sem tirar nem cor.
Estamos em lugar conhecido, pelo cheiro talvez estejamos na escola, mas.... Porque na escola?
- Yixing? – Chamo mais uma vez. – O que você está fazendo? – Eu não conseguia enxergar suas intenções tampouco o que fazia atrás da cortina hospitalar. Isso! Estamos na enfermaria da escola, e as janelas estão fechadas e provavelmente a porta também. Percebo que estou deitado em uma maca assim que meu corpo deixa de estar dormente, levanto-me com dificuldade e vou até ele, que parecia atordoado.
- Não! – Ele grita – Não podemos ficar neste lugar nem mais um segundo!
- Por que está dizendo isso, Yixing? – Percebo as lagrimas em sua bochecha e o corte sangrando no canto da boca – O que aconteceu? – Seguro seu rosto com cuidado para não machucar. Ele é tão leve, tão surreal. Podia o sentir esvaindo-se do meu toque. – Mas o que você tem? – Eu já não estava tão calmo.
- Eu sabia... Desde o primeiro momento em que te vi, eu sabia que você era igual a eles... – Eu não estava entendendo.
- Como assim? – Pergunto atônito.
- Sua clarividência, porra! – Gritou – Por que nunca me disse sobre isso?
- Eu achei que você soubesse... – Desisto de acalma-lo e sento-me em um banco de madeira ao lado da porta, aguardando mais palavras virem.
- Você nunca me disse com palavras... – Choramingou, encolhendo-se nos próprios braços. Se ele também esse dom, por que ele não usou disso para me ler? Ele saberia com certeza.
- Não podemos deixar isso acontecer... - Estava uma mistura de choro e raiva, e que queria chorar junto pelo medo que eu conseguia enxergar em sua alma, não conseguia entende-lo. Mas eu precisava ser forte, por ele, pelo menos uma vez eu não vou fugir - É loucura demais aceitar que eu converso e vejo fantasmas, é menos ingênuo acreditar que na verdade eu sofra de algum problema mental, como esquizofrênica, por exemplo. Você não pode ser real. - A ultima frase me fez ter um choque, como um tiro na cabeça. Eu não sou real? Ora, eu não sou real... E se... E se eu não for? E se eu for apenas um fantasma, ou uma fantasia inventada por Yixing?
Não! Eu sou real.
- Eu sou real – Tento lhe segurar novamente – Olhe pra mim, olhe nos meus olhos – Sussurro – Yixing?
Ele se foi.
(...)
É algo que está bem ao seu lado mas você não pode ver...
Mas eu podia ver...
Ah, sim, todas aquelas pessoas...
Olhando-me...
Minha cabeça dói e meu corpo treme, todos estão em pé e eu largado no chão, como sempre. Ajeito-me e percebo meu nariz sangrando, alguém se aproxima e me pergunta algo, mas eu não presto muita atenção, apenas levanto-me e corro...
Estou caindo novamente, mas não há quem posso me segurar dessa vez. Você sente seu corpo dormente, seus olhos arderem e algo sussurrar palavras indecifráveis em seu ouvido. Você corre, sem ao menos enxergar o caminho com olhos, apenas com a alma, e corre o mais rápido que pode para o lugar que você sente que talvez seja o mais seguro. Você corre para a sua própria morte...
- Você acredita em Deus, não é? – Pergunta.
- Eu acredito nas forças. – Respondo quase que involuntariamente. Estava quente e escuro, um escuro alaranjado. Havia uma lareira à minha frente, e estou sentado em um confortável sofá. Posso ver pela janela a neve caindo lá fora, e sentir o cheiro refrescante de chá.
Chá de canela.
Uma mão toca meu ombro...
- Quer um pouco de chá? – Uma xicara no pires, a roupa escura e a pele clara, o livro negro na bancada. Era ele esse tempo todo. Esse tempo todo era ele quem me chamava. Como pude ser tão burro? Estava tão obvio.
Minha camisa ainda está manchada de sangue, mas já não estou tão tonto. Faço que não com a cabeça e vou em direção ao banheiro, como se eu já soubesse o caminho. Um flashback passa por minha cabeça, e lembro-me de tudo o que aconteceu naquela terça-feira cinzenta assim que me olho no espelho. Estou usando um par de moletons cinza e meias vermelhas, o cheiro de canela ainda é forte, assim como o sangue escorrendo de meu nariz. Talvez eu devesse perguntar a Yixing o que está acontecendo, mas algo me diz que nem mesmo ele saberá responder. O que é estranho já que ele consegue enxergar tudo com mais clareza do que eu, mas eu não me importo de verdade. Eu sei que tudo o que acontece tem um proposito, por que a minha vida toda, e todos os meus sonhos, sempre foram assim. Tudo sempre esteve acontecendo bem ao meu lado, mas eu nunca quis ver, pois eu escolhi que fosse assim. Nunca fui bom com o dom que tenho o que é meio irônico já que é um dom. Eu nunca tive o dom de saber controlar as coisas, embora eu as previsse.
Eu devia ter previsto a morte de Yixing.
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