NICO
Existia um tipo de voz, como se fosse um bocejo e como se estivesse sempre cantando, que Nico tinha a impressão de já ter ouvido antes e ter se encantado com ela. Mas sempre que tentava se lembrar, perdia a lembrança.
Naquele momento, o espírito no quarto da mãe de Hermes tinha aquela voz.
Nico havia tomado banho antes de Will, agora estava meio deitado e meio sentado na cama do quarto encarando a mulher. Sua ideia era trocar uma palavrinha ou outra com ela antes de Will chegar. Afinal, seria estranho ser encarado por um espírito e nem poder falar com ele.
Estranhamente, ela não era uma senhora. Sua alma era jovem, de vinte e poucos anos, os azuis e brilhantes. O que era meio absurdo, já que as almas costumavam ter a aparência, na terra, de seus corpos pouco antes de morrer, e Hermes falava como se tivesse sido uma perda recente.
— Olá — disse ela, flutuante, em seu bocejo.
— Boa noite — Nico sentou-se de verdade na cama calmamente, sem desgrudar os olhos dela.
Tinha algo estranho em seu rosto.
— Então você realmente pode... — a mulher se interrompeu, negando delicadamente. — Sim, pessoas especiais possuem auras especiais. — bateu em sua própria testa como se tivesse sido uma boba.
Nico a observou com cautela e curiosidade. Deixou que um sorriso suave ficasse em seus lábios e tentou deixa-la confortável. Ela se aproximou dele, flutuando, como uma seda sendo levada pela correnteza. Ao passo que a mulher se aproximava, Nico via que seus olhos eram dançantes, como se possuíssem a própria música e o próprio embalo.
— A propósito, meu nome é Angelina. Pode me chamar de Angie.
— Eu sou Nico, Angie — Nico sorriu e inconscientemente se inclinou a ela.
Angie colocou os pés no chão e caminhou de um lado para o outro, como se guardasse um segredo e quisesse deixar evidente que não o contaria. Havia algo de infantil em seus olhos de moça, algo de velho em seu tom sonolento.
Ela tinha um magnetismo estranho, como se o mundo fosse inclinado em sua direção. E uma familiaridade que deixava Nico desconfortável.
Era como se... Já tivesse visto aqueles traços esculpidos em outro tipo de pedra, em outras circunstancias de tempo, lugar e clima.
— Você gosta de dançar, Nico? — havia algo de suspeito em sua voz.
— Não. Eu odeio dançar.
— É uma pena! — Angelina alisou o queixo. — Não confio em pessoas que odeiam dançar. Como elas poderiam dançar a valsa da vida?
Nico riu.
— Acho que prefiro desenhar essa valsa.
— E cantar ou tocar? A vida também é uma música.
— Não é estranho que uma morta fale tanto da vida? — Nico resmungou irritadiço.
— Ah, então odeia música também? — ela riu.
— Não é que eu odeie — ele falou baixo, olhando diretamente nos olhos dela. — É difícil demais. A minha voz... A forma que eu canto... Nada de bom vem disso. Consequentemente, acabo não conseguindo lidar com música. É como passar um mês sem comer nada e de repente te mostrarem um restaurante que você não pode pagar. Você odeia aquele restaurante, odeia o fato de não poder comer lá.
— É mais como se você amasse tanto que isso te destrói, não é?
Nico abriu a boca para negar, mas então assentiu e sorriu.
— É exatamente isso.
Angie se preparou para continuar falando, mas Nico não a ouviu. Ela não desapareceu nem nada do tipo, mas ele percebeu, de repente, que alguém entrava pela porta do quarto.
— Will? — chamou, surpreso.
Estava de dorso nu, uma toalha na cintura e outra nos ombros. Os cabelos loiros escuros por causa da água, a pele estranhamente branca, os olhos estranhamente claros. E aquele olhar meio que por um fio. Will respondeu com uma pergunta trêmula:
— Com quem você falava?
APOLO
Ar. Ele precisava de ar.
— Hazel, você fica bem se eu te deixar sozinha? — perguntou com o tom cheio de pânico. — Você promete que vai ficar bem?
A menina o olhou com pesar.
— Eu estaria mentindo, Apolo. Desculpe.
Acalme-se, acalme-se. O seu ponto forte é ser sempre firme, decidido e calmo. Não abra mão disso agora.
— Você teria algum problema em ficar com a minha mãe? — tentou de novo.
— Acho que tudo bem. Se quiser eu posso... Falar com meu pai.
— Não, não vai funcionar. Você precisa ficar longe de lá. Pegue sua mochila, sim? Você não vai para a escola amanhã. Que tal passar um final de semana no interior?
Apolo tentou soar animado, mas era quase patético.
Hazel assentiu, indo para o quarto.
Apolo pegou o bilhete e acabou o umedecendo um pouco a folha com o suor da palma de sua mão. Leu mais uma vez as palavras escritas nele e empalideceu, o suor frio escorreu de sua testa. O que diria para Hades? Pensando logicamente, ser direto parecia a melhor opção. Mas o problema com Hazel tinha, literalmente, acabado de acontecer. Ainda por cima, Apolo não havia esquecido o desmaio de Nico no dia anterior. E agora, ele e Will sumiam de repente.
Se ele mesmo se sentia em pânico, imaginava como Hades, todo quebradiço e perdido, lidaria com isso. Deus, só queria protegê-lo.
Depois de uma viagem longa demais até uma cidade vizinha, explicou rapidamente a situação para a sua mãe, Hera. Ela aceitou a menina com felicidade, gostava de companhia. Depois disso, dirigiu acima dos limites de velocidade até a mansão de Hades. Em 30 minutos, passou pelos portões ainda numa velocidade duvidosa, porém a pé. Deixou o carro do lado de fora, pois não havia tempo de manobrar e coloca-lo para dentro. Tropeçou na raiz de uma árvore que invadia a trilha até a casa, e por isso teve de pôr as mãos no chão para não cair de cara. Limpou-as no casaco e avançou para a enorme e sombria porta de madeira.
Encarou a aldrava, nunca tão assustadora como naquela noite, e se utilizou dela para bater na porta.
Quem atendeu foi Salon.
— Preciso falar com Hades imediatamente.
— A senhorita Hazel está...? — por um momento, o olhar do mordomo foi preocupado. Mas então ele se recompôs, inexpressivo, prestativo. — Vou chama-lo agora mesmo, senhor Solace. Aguarde na sala de estar, por gentileza.
Apolo sentou se tremendo por inteiro. Ele começava a sentir outra coisa, outro tipo de desespero. Ele queria ver o rosto de Hades.
Por Deus, ele precisava de Hades.
— Apolo? — o homem descia as escadas vestindo apenas um roupão preto. — Está tudo bem?
Mesmo naquela loucura, naquela indecisão e naquele pânico, ele se culpou por não conseguir parar de perceber o quanto a sua beleza exótica se destacava naquele ar sombrio, naquele roupão escuro, naquela noite assustadora de quinta feira. Ele não pôde deixar de notar os lábios vermelhos e a pele morna de quem acaba de sair de um banho quente, não conseguiu não ter vontade de abraça-lo e contar tudo aos sussurros, de forma tranquilizante e compassada.
Apolo queria ter coragem de fazer isso. Não, coragem ele tinha. Ele queria ter a certeza de que não estragaria tudo se o fizesse.
Sacudiu a cabeça, colocando os pensamentos em ordem. Ele levantou-se de sopetão e andou rápido até Hades enquanto falava e gesticulava:
— Eles simplesmente sumiram. Deixaram seus celulares em casa e tudo mais, Hazel disse que quando chegou em casa eles já não estavam mais lá. Will deixou um bilhete, mas não sei se é confiável, quer dizer, de acordo com ele, eles voltam dentro de dois dias, mas o que eles estão pensando? É, claro que não vai fiar tudo bem, eu confio que nada de mal vai acontecer porque o Will não é tão irresponsável assim, até onde sei, mas ainda assim... Ainda assim!
— Apolo, eu não entendi nada.
— Will e Nico desapareceram, deixaram os celulares desligados em casa — falou com mais calma e fungou, entregando o pedaço de papel amassado, sujo de terra e úmido. Só então notou que seu nariz estava congestionado e que sua garganta doía. — Deixaram apenas isso para nos avisar.
Hades o encarou por um momento significativo e então pegou o papel de sua mão, quase o rasgando. Seus olhos percorreram rápidos pela mensagem, arregalando-se mais a cada palavra lida.
— Eles fogem no meio do inverno para um lugar que nem sabem qual é e deixam um bilhetinho dizendo que vão ficar bem e que voltarão em dois dias?! Isso só pode ser brincadeira. Vamos atrás deles... Agora!
Apolo abriu a boca para responder algo, mas seu celular tocou nesse instante. Sem nem olhar no visor, completamente clemente para que fosse uma ligação de Will ou Nico, atendeu:
— Alô? — sentia a pressão de Hades o olhando com expectativa.
A voz que soou do outro lado foi a que menos esperava ouvir.
— Apolo, aqui é Hermes. Não nos falamos há alguns meses...
WILL
Sempre fica aquele clima estranho quando você entra no quarto e o seu princípio de namorado está falando sozinho como se realmente houvesse alguém ali.
— Com quem você falava?
Will tinha acabado de sair do banho. Estava mais pálido que o normal, porque a água não era tão quente ali, e ainda mais pálido pela conversa que tinha ouvido. Primeiro, do lado de fora do quarto, pensou que Nico e Hermes estavam conversando, mas então viu o lenhador sentado no sofá e escutou Nico dizer “Angelina”. Um calafrio subiu por sua espinha.
Mas Nico não achou que mentir seria necessário.
— Com um espírito — sua expressão era confusa, como se algo estivesse tremendamente errado.
— Muito engraçado, di Angelo — Will fechou a porta e tirou a toalha que estava nos seus ombros, uma ainda permanecia na sua cintura. — É sério. Você trouxe seu celular?
Nico negou e se arrastou na cama, ficando mais próximo de Will, que estava parado perto da poltrona onde estavam os seus pertences.
— Estou falando sério, Will — Nico deu uma risada amarelada e coçou a nuca num ato de nervosismo. — Eu e Hazel, nós... Podemos ver esse tipo de coisa.
Will o encarou.
Não o olhou apenas por olhar, apenas o seu rosto e o amontoado de carne que ele era. Mas o olhou, sua visão atravessou tudo e penetrou em sua alma, revirou o seu interior buscando alguma coisa, procurando uma mentira. Will deixou seu olhar ir tão fundo que Nico não pôde desviar até que sua visão começasse a ficar esbranquiçada pela falta de estímulo neuronal.
— Você tem esquizofrenia? — soltou a pergunta, por fim, como se estivesse algo entre o impaciente e o raivoso.
Nico o olhou ofendido. Ele desviou o olhar para o lado, como se houvesse alguém ali, antes de exclamar:
— Que porra, Will...!
— Me responda — Will falou entredentes. Havia alguma dor perdida nas suas palavras — Você tem esquizofrenia?
— Não, eu não tenho — sua voz foi fraca. — Obrigado por sempre acreditar nas minhas palavras, Solace.
Will virou o rosto para a janela com um olhar indecifrável. Ele respirou fundo e fechou os olhos, enfim a raiva se dissipava e a calma voltava a relaxar a sua face angelical. Confiava em Nico, mas não queria acreditar. Porque se acreditasse, significava que ela estava ali. Suas pálpebras tremeram quando ele voltou a falar:
— Angelina era o nome da minha mãe.
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