NICO
Quinta feira, a semana seguinte ao sábado do ensaio. Jason e Leo repassavam a coreografia de um lado e mais a frente na sala estava Will cantando baixinho, acertando os arranjos com Raphael.
No colo de Nico sentava seu bloco Canson de gramatura 50mg/m²: uma verdadeira coleção de falhas. Menos o espaço no canto inferior direito da folha de cima, onde havia vários rostos pequenos com esboços das expressões de Will cantando e atuando.
Will era irritante? Sim. Tinha um rosto extremamente bonito? Infelizmente. E Nico parava para reparar isso no momento mais inapropriado de todos.
Ele não queria observar essas coisas. Reparar era tudo que menos queria, mas simplesmente não havia como ignorar.
Talvez fosse parte da sua busca constante por inspiração. Ele observava tudo e todos, qualquer mínima luz que aparecesse ele poderia utilizar. Qualquer coisa mesmo poderia ser mãe de uma ideia. Por acaso, ele acabou notando que até que tinham razão sobre a aparência de Will Solace.
— Take my hand — cantou Will alto o suficiente para Nico escutar, baixo o bastante para não atrapalhar o ensaio dos outros. — Take my hole life too.
I can't help falling in love with you
Nico esqueceu-se completamente do que precisava fazer e virou a folha para pegar aquele momento perfeito: o ângulo certo no maxilar, o desenho exato das sobrancelhas.
Mas quando notou o que estava fazendo, simplesmente travou.
Não teve muito tempo para pensar antes de ouvir Tomás ao seu lado:
— Você é gay, Nico?
Nico sobressaltou-se, virando para ele num susto. Tentou detectar alguma pontada de ironia ou deboche, mas não achou nada.
— Que tipo de pergunta é essa?
— Você está encarando Will já tem um tempo, sei lá. Desculpe, não se sinta desconfortável. Eu sou bi, você não precisa esconder esse tipo de coisa de mim. Não tem que esconder de ninguém, na verdade.
Nico suspirou, fechando seu caderno para evitar que Tomás notasse os desenhos obsessivos.
— Acho que não existe ninguém mais gay que eu nesse planeta — Nico deu um meio sorriso.
Tomás se sentiu abençoado.
— Olha, eu acho que por Will Solace até o Papa seria gay.
— Eu não gosto dele, se é isso que está pensando. Ele apenas é... Ele, sabe?
— Eu sei.
Nico sorriu mais e deu de ombros. Sua atenção se desviou para a sua mochila, ele guardava seus materiais. Antes de ir para casa, Nico teria de passar na sala de artes para pegar a tela que Perséfone ficara de avaliar.
— Eu vou indo — anunciou. — Quase todos os professores já foram, vocês deviam ir para casa também. Amanhã é feriado, então até o ensaio de sábado.
— Você não precisa vir, Nico — Catharina andou até ele e disse gentilmente. — Concentre-se em fazer o cenário.
Ele lembrou que se não fosse comparecer ao ensaio sábado, teria que ir para casa. E Nico realmente não queria voltar lá agora.
— Mas...
— Eu sei que não gosta de ficar em casa — ela falou mais baixo. — Mas não vai revolver nada se você ficar se forçando a vir para ter alguma ideia. Isso não vai funcionar.
Nico assentiu e olhou brevemente para Will antes de sair da sala. Se ele tivesse o observado por um segundo a mais, teria visto o olhar do loiro se voltando para ele também.
༒
A sala de artes estava vazia a não ser por Perséfone.
— Com licença, professora.
— Di Angelo, estava apenas aguardando o senhor. Sente-se, querido — ela gesticulou apontando para a cadeira na frente da sua mesa.
Nico fez como indicou.
Sua tela estava apoiada num pequeno cavalete em cima da mesa de Perséfone. As cores eram sombrias, como sempre. Ela tinha um significado inimaginável para ele. Era doloroso e magnífico olhá-la.
— Por que não começa me contando em que pensou para pintá-la?
— Eu queria incomodar. Arte é isso também, não é? Te deixar desconfortável, tirar seu sono de noite. Me utilizei das tecnicas do realismo para isso, tentei deixar o mais bizarro possível. O conceito de uma boneca que é um violino pode ser bonito, engraçado ou inquietante, e eu escolhi inquietar.
Nico falava com propriedade. Explicou um pouco mais sobre suas tecnicas e sobre como ele achava a imagem impactante. Ele estava orgulhoso do que tinha feito.
Perséfone o encarava com condescendência. Ela possuía traços fortes, o maxilar bem marcado e o nariz fino, combinando com sua pele morena e seus grandes olhos, o que deixava tudo um pouquinho mais condescendente. Suspirou e analisou a arte por ela mesma:
— Olha, Nico, não tenho nada a criticar quanto a sua técnica. Está impecável. Mas esse conceito não lhe parece meio... doentio? Digo, como professora de artes eu não posso julgar a arte como bela ou feia, então fico numa posição meio difícil. Mas essa tela me deixa muito preocupada com você. Está passando por algum problema familiar?
A vontade dele foi de soltar uma gargalhada de escárnio.
Suprimiu muito o riso e enfim falou com ironia:
— O que pareceria saudável pra você? Pintar cachorrinhos sorridentes correndo por um campo de flores?
A professora sorriu largo.
— Pintar flores seria uma ótima ideia!
Nico revirou os olhos, ele queria vomitar. Levantou-se, pegou sua mochila e sua tela, e saiu.
Seus passos eram de uma fúria fria. O peito subia e descia descompassadamente. Raiva, raiva, raiva.
Acha que eu tenho algum problema familiar? Anjo, você não sabe nem um décimo dos meus problemas.
Preocupada comigo? Preocupe-se com o nosso encontro no inferno daqui alguns anos.
A sua existência é uma falta de educação, professora.
༒
A viagem demorou. Finalmente e infelizmente estava em casa.
Não era bem uma casa casa, mas uma triste e mórbida mansão. Nico não gostava disso. Não entrara na Olympus por dinheiro, já que fora indicado por Percy e Apolo, mas aquela mansão de estilo gótico gritava “eu paguei a minha entrada na melhor escola de artes dos Estados Unidos”.
— Tem certeza que é esse o lugar? — o taxista perguntou antes de Nico descer
— É a casa do meu pai. Está tudo bem.
O homem o encarou como se suspeitasse que o garoto fosse um fantasma. Assim que encostou a porta, o taxista acelerou desenfreadamente, o que fez Nico suspirar e revirar os olhos (talvez fosse a milésima vez no dia).
Nico andou pela calçada cinza até chegar ao portão enferrujado e um tanto torto da entrada. A relva tomava conta de quase todo o chão, de forma que apenas uma trilha de cimento dava para ser vista no meio daquilo tudo. As árvores eram altas, e, se estivesse de dia, Nico tinha quase certeza de que pouquíssima luz do sol passaria por entre as folhas enormes.
Ele se sentia na floresta amazônica, só que amarela, por conta do outono. Os muros e as paredes da mansão já eram cobertas por galhos fininhos levando folhas que se enroscavam no concreto como dedinhos agarrando-se a alguma coisa. No encontro das paredes com o chão, tufos de mato saiam.
Nico ouvia a voz daquele lugar. Mas, o mais estranho, é que mesmo que com aquelas plantas todas, tudo parecia morto. O barulho de uma coruja ao fundo não era tão sonoro quanto o era no campus. O ruído das cigarras lhe parecia baixo, como se elas tivessem medo de cantar alto demais. Os grilos, normalmente ensurdecedores, mal eram perceptíveis. E havia aquele zunido constante, ele podia escutar. Se prestasse muita atenção, o zunido se transformava em sussurro, e o sussurro nas vozes. Ah, aquelas vozes. Pedidos de socorro, canções de ninar, delírios, choros, risos. As vozes daqueles que por ali vagavam.
Engraçado, não? A casa do garoto que ouvia os mortos fora construída em cima de um cemitério.
Primeiro, tentou achar as chaves na sua mochila, mas não obteve sucesso. Talvez tivesse as esquecido. Depois, tentou abrir aquela porta dupla enorme, mas também não conseguiu. Olhou para os lados, tentando achar uma maneira de entrar sem ter que falar com Hades. Uma janela aberta, nem que fosse no segundo andar. Nada. Então ele teria que dar a volta e ver se tinha a sorte de alguma passagem aos fundos estar destrancada? E o que fazia com a preguiça?
Por fim, decidiu se utilizar da aldrava e bater na madeira escura, uma vez que a porra da campainha não funcionava.
O que pareceu ser um longo tempo depois, a porta se abriu. Atrás dela, a figura alta e pálida de seu pai, a expressão rija, aqueles olhos frios, as pálpebras avermelhadas. Ele usava um sweater verde de manga comprida, calças de um moletom preto. Seus pés estavam descalços, apesar do chão de mármore com certeza estar congelando.
Nico nem precisava perguntar para saber; durante o feriado e o final de semana, Hades dispensara os funcionários da mansão. O mordomo, a faxineira e o segurança, provavelmente só não a cozinheira, já que a família di Angelo era especialmente ruim com comida.
— Nico — Hades sorriu. Era um ato tão sombrio que não chegava aos seus olhos. — Voltou para casa para o feriado? Não esperava por isso. Seja bem vindo.
O homem abriu os braços para receber o filho com um abraço. Nico se arrastou até ele, murmurando algumas palavras fúteis. Abraçou-o rapida e friamente e seguiu para dentro da casa.
— Hazel está?
— Ela foi para a casa de uma amiga, volta sábado de manhã.
— Tudo bem.
Não era como se ele não gostasse de seu pai, os seus jeitos eram apenas muito iguais. Quando sua mãe estava viva, ela era uma espécie de intermediária entre os dois, mas agora não havia nada. Dois polos negativos tentando, de alguma forma, se aproximar sem um positivo no meio.
— Como foi sua semana? — Hades perguntou indo atrás dele.
— Olha, pai, obrigada por se preocupar, mas hoje eu tive que ficar escutando as críticas da professora de artes até tarde e eu gostaria de só ir para o meu quarto descansar. Está bem?
Hades levantou o indicador abrindo a boca e a fechando, como se desistisse do que quer que fosse falar. Antes de Nico subir as escadas, o mais velho falou baixo e duro:
— E os medicamentos?
Nico suspirou.
— Estou me livrando do pra ansiedade, porque ele me dá insônia. E você sabe que não vou tomar antidepressivos. Nem antialucinógenos.
— Nico, o psiquiatra...
Ele tentou ignorar, simplesmente guardar a fúria dentro de si e ir para o quarto. Mas não deu. Coisa demais num dia só. O garoto voltou-se com raiva.
— Eu sei o que o psiquiatra disse, está ok?! Sei que meus quadros são perturbadores, sei que ver espíritos não é nada natural e sei ainda mais tem algo de muito errado comigo. — Pensou em parar por ali, deu uma pausa. Mas as palavras simplesmente jorraram: — Então por que você não desiste? Por que você insiste nessa ilusão, pai? Eu não vou melhorar. Você nunca vai ver sua esposa e filha novamente, não importa o quão devoto seja à igreja. Está tudo no passado! Sinto muito se não sou o filho ideal, como Bianca era. Sinto muito se eu não fui motivo o suficiente pra mamãe continuar viva. Mas remédios não vão nos ajudar nisso.
Nico respirou fundo e controlou o seu tom. Por fim, olhou firmemente nos olhos de Hades e afirmou:
— Deus não está do nosso lado.
E então, ele subiu as escadas.
༒
Hades engoliu em seco. Tentou ignorar tudo que Nico dissera, mas era difícil. O cheiro horrível daquelas palavras ainda estava no ar, o sabor delas queimava a sua garganta e seus olhos. Elas eram duras, cruéis.
Ele só queria o melhor para o seu filho.
Por que você não desiste?
— Porque eu sou seu pai — sussurrou.
Fazia dois anos e alguns meses que Bianca e Maria se foram. Estava sendo difícil desde então. Nico era tão apegado à irmã quanto ele à Maria, eram afeições diferentes, claro. Seu filho sempre tivera uma tendência ao sombrio, mas a mãe sabia exatamente como lidar com isso, assim como soubera lidar com ele mesmo. Hades entendia Nico. Ah, e como entendia. Talvez só os seus anos de maturidade a mais e sua menor quantidade de hormônios o impedisse de gritar de volta.
Respirou fundo e massageou as têmporas, ouvindo um assobio da porta da cozinha.
Apolo, em toda sua magnificência jovial, uma peça errada naquela mansão velha, apoiado no batente da cozinha de piso xadrez. Ele tinha um copo de água na mão.
— Nico é sempre assim?
— Sempre que o assunto “remédios” entra em campo ele perde um pouco o controle — respondeu Hades, aparentando muito mais cansado do que pretendia. — Mas, normalmente, ele fala metade dessas coisas ou não fala nada.
— Todo fim de semana?
— Às vezes nós não nos vemos nos fins de semana. Ele nem sempre quer, e eu nem sempre posso. Nico diz que tem ensaios e coisas a fazer, mas eu sei que ele moraria no campus se pudesse — deu de ombros. — Não é algo com o qual eu possa lidar, de toda forma.
— Sobre Nico... — Apolo começou. — Bem, você sabe, ele é um aluno mediano. Não tem notas baixas o suficiente para ficar de recuperação, mas também não é como se ganhasse destaque. Perséfone veio falar comigo. Ela acha que ele sequer tenta. A arte dele é bem diferente, ela diz que é preocupante — enquanto falava, se direcionou ao sofá e sentou, indicando para Hades fazer o mesmo. — Não entendo as notas baixas. Em questão de talento, ele não é nem um pouco mediano.
— Acho que as coisas sublimes são, com frequência, também as menos compreendidas.
Apolo assentiu vagarosamente, raciocinando. Hades sorriu com melancolia.
Suavemente o silêncio foi invadido por algumas notas quebradiças, como se estivessem com vergonha de serem ouvidas. Mas a música foi ganhando intensidade e forma, uma melodia reconhecível. Essa era clássica: Take Me To Church — Hozier.
A voz de quem a cantava era mais jovial, aguda e suave. Masculina ainda, mas não como a original. E o jeito... Era completamente diferente. Quase como uma nova música; tinha tanta dor na forma como ela era cantada que um arrepio subiu pelo corpo de Apolo, seus pelos todos ficaram eriçados, a pele bronzeada cheia de bolinhas.
O sentimento daquela música era completamente único. Era como se escutasse Spring de Vivaldi pela primeira vez, ou como se, de repente, uma nova cor inimaginável surgisse no mundo. Uma cor que ninguém antes havia visto, algo que ninguém poderia imaginar existir.
Era lindo. Lindo mesmo.
— Nunca ouvi essa versão — comentou o loiro, passando as mãos pelos braços arrepiados, parecia menos atônito do que realmente estava. — Depois pergunte a Nico de quem é.
— É dele.
— Como?
— Nico que está tocando. E cantando.
— Desculpe, isso é sério? — levantou as sobrancelhas, incrédulo.
— Sim, essa em específico deve ser mais uma piada — riu sem humor algum e cantarolou junto da voz de Nico: “Amen, amen” essa parte principalmente, sabe?
Ele nunca ouvira Nico cantar? Não era por isso que ele estava na Olympus?
— Nico não cursa música na Olympus Academy? — Hades indagou, franzindo o cenho.
Apolo negou.
— Artes plásticas e letras. Não sabe o que o seu próprio filho cursa, Hades? Isso não é meio...?
— Como pode ver — interrompeu-o — eu e meu filho não somos muito próximos.
Apolo sorriu de forma compreensiva e, mais uma vez, assentiu devagar.
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