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História Os Últimos Filhos - Revelações


Escrita por: Skjald

Capítulo 12 - Revelações


Fanfic / Fanfiction Os Últimos Filhos - Revelações


~Leif

São Paulo não é uma cidade das mais bonitas.

A Região Central, então, parece mais uma colônia de sobreviventes pós-apocalíptica: eu não me surpreenderia se visse alguns zumbis perambulando pela rua. A maior parte dos prédios estava extremamente velha e decadente, com janelas quebradas, portas remendadas e pintura descascando. Apesar da precária aparência, a região era uma das poucas que se mantinha iluminada durante as noites, seja por seus postes estilo retrô ou pelos letreiros de neon que anunciavam bares ou cabarés. Havia no centro um tráfego muito maior de veículos e pessoas do que em outras regiões no mesmo horário: isso se devia ao fato de haver uma presença muito maior de policiais na área. A Região Central era quase inteiramente controlada pelo Governo, exceto talvez pelo distrito da Liberdade, território controlado por uma guilda de tradição nipônica chamada Shindo Renmei. Felizmente, passamos pela região sem nenhum tipo de problema. Posso dizer que tivemos muita sorte em não chamar atenção dentro de um veículo blindado cujos aparelhos de som reproduziam Teclado Lindinho 2009 em um volume consideravelmente alto. Suspirei aliviado quando chegamos à divisa entre as regiões Central e Sul: saímos da luz e mergulhamos na escuridão.

- Faça a gentileza de desligar o maldito som, Jaime - resmunguei - Já tive confusão demais por um dia.

- Cê anda muito estressado ultimamente, Leif - Jaime respondeu, calmamente - Tem música de xamã aí no pendrive, se cê quiser, cê...

- É pra desligar, caralho! - Sombra da Noite o repreendeu - O K tá apagado aqui, e eu tô morrendo de dor de cabeça. Já deu com essa merda!

- Caralho, tá bom - Jaime desligou o som e acelerou.

As ruas estavam infinitamente mais escuras e silenciosas agora. Tínhamos que ser cautelosos agora. Nossos faróis só revelariam uma possível armadilha quando fosse tarde demais. Jaime engatilhou uma escopeta e a deixou cuidadosamente apoiada ao lado de seu banco. Ele segurou firme no volante, atento, porém relaxado. Jaime e Sombra da Noite são completamente o oposto um do outro: Jaime é um cara extremamente tranquilo, difícil de irritar e com um péssimo gosto musical; Sombra da Noite é uma garota extremamente marrenta, inflexível e facilmente irritável. E bem, ela tem um gosto musical melhor que o de Jaime. Havia uma grande especulação em torno da possibilidade de os dois manterem um relacionamento, digamos... secreto, mas nenhum dos dois comentava sobre o assunto. A respeito de K, ele se manteve em silêncio durante todo o percurso. Mesmo quando a garota Helena agarrou-se a ele, chorando, na hora da despedida, ele nada mais fez senão dar-lhe um suave beijo na ponta do nariz, com uma expressão vaga em seu rosto. Conhecendo-o bem, posso dizer que ele não fez isso por mal. K odeia despedidas, então ele geralmente as evita. Para amenizar a dor. E pelo que eu vi, ele havia se apegado bastante a ela. Notei que Sombra da Noite olhava Helena de uma forma estranha, mas não disse nada.

Chegamos ao hotel por volta da meia-noite; felizmente, sem nenhum problema a mais. K e 'Noite cochilavam serenamente, lado a lado. Acordei-os: 'Noite desceu do blindado resmungando, e K permaneceu em silêncio, seus passos trôpegos apoiados por Jaime. Tomamos o elevador no estacionamento até o décimo terceiro andar, onde nosso quarto ficava. Eu mal podia esperar para tomar um banho, descansar e, quem sabe, beber um pouco. Pelo visto, K não estava em condições de virar a noite discutindo questões estratégicas, então o melhor a fazer era relaxar. Tínhamos todo o tempo do mundo, num hotel de luxo: nossa hospedagens e nossos gastos estavam todos sendo cobertos pela Falange, e continuariam sendo até que K fosse capturado e/ou morto. Claro, já o tínhamos conosco, mas, obviamente, como aliado. Adentramos sem demora o nosso quarto, o número 1270: era um grande e luxuoso apartamento, com sala de estar, uma suíte e varanda, capaz de acomodar confortavelmente quatro ou cinco pessoas. O quarto contava com quatro camas, sendo uma na sala, uma no corredor entre a escada que levava para o nível de cima e a suíte, e duas na suíte propriamente dita. K chegou e desabou no sofá, bocejando.

- O que é que tem pra beber aí, Leif? - ele perguntou.

- Água, refrigerante, cerveja e algum hidromel** que trouxemos - respondi - Não sei se o consumo de álcool lhe fará bem nesse estado, K.

- Se álcool fizesse bem, se chamaria remédio - ele retrucou - E, caso não se lembre, eu sou médico. Quero hidromel, óbvio. Tem algum horn*** sobrando pra mim?

- Tem um na sua mala. Já levo pra você.

Peguei as garrafas de hidromel no frigobar e servi a todos, cada um com seu horn. K bebeu um longo gole, e começou:

- Acho que todos temos perguntas a fazer, não é? 

- Certamente - respondi - Por onde quer começar?

- Tanto faz - K respondeu, tirando o colete - Desde que deixe qualquer coisa sobre Karolyn ou Werner para o final.

- Eu começo, então - Sombra da Noite já estava deitada, encolhida em seus cobertores - De qual guilda a sua namoradinha faz parte, K?

Ele a olhou, confuso.

- Que namorada? A Camila? Ela é protegida da Shindo Renmei.

- Nem sei quem é essa - 'Noite deu de ombros - Estou falando da branquinha, a Helena.

- Ficou louca, 'Noite? - ele respondeu, surpreso - Ela não é...

- Ah, pelos deuses, K! - 'Noite esbravejou - Como cê não percebeu? Foi graças a assinatura dela que eu pude rastrear a sua. Devo admitir, foi difícil até pra mim. As duas são bem sutis, sabe...

- ...sutil? - K interrompeu - Como? Qual a cor da aura? Qual a afinidade?

- Sutil como... não sei, um passarinho ou uma borboleta, talvez. Aura provavelmente azul, afinidade... Liberação deYang.

K estava completamente perplexo, e ao mesmo tempo, maravilhado. Verdade seja dita, eu também estava.

- Céus! Eu nunca pensei que fosse dela, eu pensei que fosse o... professor de matemática. Tinha algo de diferente naquele cara, eu tenho certeza!

- Caio Brunner? - perguntei, e ele assentiu - Eu não sei o que é aquilo. Não está vivo nem morto, não é homem nem vaettir. Não é desse lado nem do outro, mas é poderoso. Ele foi capaz de quebrar meu Selamento sem qualquer esforço.

- Você o conheceu? - K me perguntou.

- Perdemos o rastro de Volkwin Schenk e Wenno von Rohrbach - eu expliquei - 'Noite rastreou as últimas coordenadas em que estiveram a partir de suas assinaturas de energia, o que me levou até à escola onde você se escondia. Os policiais haviam estabelecido um perímetro de segurança na área. Ninguém entrava ou saía. Mas lá estava Brunner, recostado em uma viatura. Matei os guardas e me aproximei, sentindo uma energia neutra sufocante. Tentei selá-lo, mas foi inútil. Felizmente, ele não se ofendeu e me concedeu as informações que julgou serem úteis. E então, sumiu.

K ficou em silêncio, por alguns momentos. Despiu-se da farda, revelando uma mancha vermelha na sua blusa branca: o ferimento estava aberto. Ele tirou a blusa, em silêncio, e pediu que eu lhe trouxesse o kit médico. Ele limpou o ferimento com algodão e álcool e começou a costurar de novo, estranhamente calmo. Efeito do estimulante, era o que supunha. Ofereci ajuda, mas ele recusou. Ele não havia perdido os dons de médico: o ferimento foi re-costurado com extrema habilidade, talvez melhor do que antes. Ele colocou uma gaze por cima e bebeu mais um gole de hidromel.

- Leif - ele perguntou, a voz meio embargada pela dor - Como foi que Helena não se assustou com você?

Tirei do meu bolso um pequeno envelope, o mesmo que eu havia mostrado a garota, e passei para K.

- Fotos.

K pegou o envelope e analisou seu conteúdo cuidadosamente.

- Hmm... Essa aqui é de quando completamos o exame preparatório, essa aqui foi no torneio Anno Domini, essa aqui foi no último Festival do Nono Ano em Campo Vestfold, e essa aqui... - ele engoliu em seco - Na Tailândia? Cê mostrou isso pra ela?

- Fora de contexto, é uma foto normal de um grupo amigos - eu sorri. 

Essa foto foi tirada durante as férias que passamos na Tailândia; eu, K, Jaime e Johann Furia, o primo de K, deitados de conchinha numa cama de um bordel de quinta categoria, caindo de bêbados. E nós tínhamos uns catorze ou quinze na época. Foram as melhores férias da minha vida, e as últimas em que K esteve feliz. Como estava comprometido, K não se deitou com nenhuma mulher, mas nem por isso deixou de aprontar as suas: tirou sarro das prostitutas, quebrou as coisas e deu uma granada de mão para algumas crianças de rua. Claro que nós não ficamos atrás: Jaime roubou um ônibus e o "estacionou" dentro do bordel, eu fiquei de tocaia em uma janela atirando a esmo com um rifle de assalto, e o louco Johann Jormungandr fodia três prostitutas de uma vez enquanto virava uma garrafa de whisky e atirava para o alto com uma pistola, essas coisas de adolescentes. Ah, bons tempos que não voltam.

Continuamos a discussão, atualizando K sobre o deplorável estado da Falange, os ataques blitzkrieg do governo, os últimos conflitos e fatos relevantes e irrelevantes sobre os campistas de Campo Vestfold, e ele nos contou sobre como viveu durante esse tempo todo, sua péssima experiência em um projeto do governo e a sua tentativa frustrada de levar uma vida normal em São Paulo. Ele também nos contou de um certo sonho que teve enquanto estava sob efeito de sedativos, um sonho vívido que começou com um dia normal em Campo Vestfold e terminou com a morte de Lully e pistas simbólicas ao seu respeito. Ele fez-me uma pergunta particularmente capciosa:

- Leif - seu tom de voz indicava irritação - Você acha que há alguma chance da maldita vadia ter matado Lully?

Por vadia, ele queria dizer Karolyn. Essa garota sempre foi uma completa imbecil. O único motivo de K ter se relacionado com ela era o fato de ela ser uma maldita gostosa. Ele havia encontrado no sexo irresponsável uma válvula de escape para suas dores.

- Há uma chance para tudo - eu respondi - Infelizmente, não há como termos certeza de nada. Caso contrário, você sabe que eu a teria matado.

Ele assentiu. Lully, a companheira de K, era uma das campistas mais querida em Campo Vestfold: extrovertida, prestativa, sempre alegre, com seu jeitinho tomboy****, nunca distante de seus cães. Se eu soubesse que um pedaço de merda como Karolyn - com o perdão da ofensa aos pedaços de merda do mundo - planejava fazer qualquer mal à Lully, eu teria providenciado sua execução sem demora.

- Bom, já estamos quase no final - Jaime começou - Tenho uma notícia que irá te animar um pouco: Karolyn foi banida do Vestfold, quando descobrimos que ela havia denunciado você ao governo. O papaizinho dela, que ocorre ser o chupador de bolas número um de Werner, ficou ofendidíssimo quando descobriu e foi reclamar com seu querido patrão, mas nem mesmo aquele verme quis trazer a garota de volta. 

- Karolyn é uma vagabunda pé no saco - 'Noite comentou - Além de insuportável, ainda faz propaganda enganosa. Não vi nada demais quando ela tirou a roupa e se enfiou no meio das minhas cobertas.

K abriu um sorrisinho, confirmando. 'Noite é bissexual, como a maioria dos sanguerreais. Opção sexual, etnia, corte de cabelo ou gosto musical nunca foi um problema para aqueles como nós: todos ali eram igualmente peculiares, igualmente esquisitos, igualmente sofridos, igualmente desconexos da sociedade dita normal. Todos nós, independente de nossa origem ou alianças, estamos no mesmo barco. Mas não toleramos escória do nível de Karolyn Strauss.

- Já que estamos chegando no final, vamos falar de Werner - eu comecei - Permita-me falar de forma direta e franca, K. Somos irmãos: mesmo que não estejamos unidos pelo sangue, estamos pela nossa amizade. O que diz respeito a sua família, diz respeito a mim, e também o contrário. Veja bem, desde a morte de seu pai e sua consequente deserção, Vestfold tem estado descontente com Werner. O campo está atualmente sob a direção de um conselho deliberativo: como o Oráculo está muito velho, eu, na condição de seu aprendiz, atuo como seu porta-voz na Althing*****. Ouça o que eu digo, K: você tem direito ao posto de Hárjarl que outrora fora ocupado por seu pai. Se vier conosco e reivindicá-lo, podemos fomentar uma rebelião contra Werner. Você é a única chance que temos para salvar a Falange Negra de uma completa decadência.

K ficou em silêncio por um tempo, pensativo.

- Porque eu, Leif? - ele respondeu, pegando a garrafa de hidromel - Temos meu tio Walther, irmão de meu pai, e meu primo Johann. Qualquer um dos dois pode fazer isso.

- Herr Walther pediu afastamento, e Johann foi requisitado para a Guarda de Honra - respirei fundo, e continuei - Werner planeja tomar sua mãe como esposa, K. Se os dois tiverem um filho, ele será o próximo Hárjarl de Campo Vestfold. E nós não poderemos recusar.

K ficou completamente pálido. Sua mão direita apertava com força a garrafa de hidromel.

- Não...

- ... foi ele quem ordenou a morte de seu pai, K - suspirei.

Cacos de vidro voaram para todos os lados.

 


Notas Finais


** Hidromel: bebida fermentada a base de água e mel.
*** Horn: tipo de recipiente feito de chifre, usado geralmente como copo.
**** Tomboy: garota que tem características e comportamentos considerados típicos de um menino.
***** Althing: Um tipo de assembléia nórdica, que era realizada com a presença de todos os homens livres.


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