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História Os Últimos Filhos - Olhos Brancos


Escrita por: Skjald

Capítulo 19 - Olhos Brancos


Fanfic / Fanfiction Os Últimos Filhos - Olhos Brancos


~Leif

O silêncio reinou durante a maior parte da viagem.

Kári dirigia o blindado, enquanto Jaime trazia o jipe. K sentava-se emburrado nos bancos de trás, com sua amiga Camila, enquanto prestava os primeiros socorros à seus adversários à pedido de nosso instrutor, embora fosse muito à seu contragosto. Um fato digno de nota é que Kölbjörn Furia não fez o Juramento de Hipócrates, e tampouco os outros médicos da Falange o fizeram, então, ao vê-lo em serviço, um leigo acreditaria estar diante de uma cena de tortura. Mas verdade é que o Advindo do Inferno é muito mais versado nas artes da cura do que qualquer um desses sedentos por prestígio que estudaram em faculdades de renome; suas mãos são firmes e habilidosas, capazes de realizar os mais arriscados procedimentos com rapidez e total eficácia, ainda que fosse necessário realizá-los em si mesmo. De qualquer forma, ele parecia bastante irritado em ter de salvar a vida de um inimigo, e retardava-se propositalmente em retirar as agulhas do corpo de Andreas. Por outro lado, a ruiva parecia ter genuína dificuldade em sedar Maddog, que tinha em si notável similaridade com uma baleia hiperativa encalhada. K perdeu a paciência e tomou a seringa das mãos de Camila, agressivamente injetando-a no pescoço do ferido.

- Vê se dorme, gordo filho da puta - ele resmungou, enquanto voltava para retirar as agulhas do corpo de Andreas.

Foram estas algumas das poucas palavras proferidas durante o percurso até o hotel. Kári, geralmente sonolento, parecia apressado e chegou a passar por cima de um motociclista como se o mesmo fosse um monte de estrume. Pude ouvir as estrondosas gargalhadas de Jaime, e tive a certeza de que ele fizera questão de igualmente passar por cima do civil - por mais quatro ou cinco vezes. Fiz uma anotação mental para lembrar-me de não deixá-lo ter contato com jogos eletrônicos da série Grand Theft Auto ou similares. Chegamos ao hotel em um tempo relativamente curto, embora o trânsito estivesse uma verdadeira porcaria. Devo mencionar que a parte mais complicada foi o desembarque, ou, pelo menos, o de Maddog. Camila conseguiu carregar Andreas com facilidade, mas os quatro homens foram necessários para erguer o gordo. 'Noite ficara responsável por subir até a portaria e pegar as chaves do quarto. Com o aumento progressivo do grupo, imaginei que logo teríamos que alugar um andar inteiro.

- Meu braço - o gordo gemeu. Observei que os sedativos estavam longe de fazer efeito.

- Sabe como bota gordo pra dormir? - K praguejou - Tiro na cara.

- Dê-lhe mais sedativos - Kári retrucou, parecendo impaciente.

- Não vai rolar.

- Konrad - o instrutor sibilou.

- Xiu. Com essa banha toda, vai precisar de uma dose cavalar, e eu não vou gastar o que tenho para tratar de um cara que tentou me matar à uma hora atrás.

Kári bufou. Com muito esforço, conseguimos chegar até o nosso andar; 'Noite dormitava serenamente na porta do quarto. Eu não a culpei por ter sucumbido ao tédio, mas as pontas de aço de meus coturnos tiveram de despertá-la de qualquer forma. Por muita sorte, o gordo passou "liso" na porta, e acabamos por não perder mais tempo com a entrada. Camila recostou Andreas no sofá, mas concordamos que seria mais prudente deixar Maddog no chão. Agora vinha a segunda parte de nosso Calvário pagão: os suprimentos. Se o deus dos cristãos conseguira a façanha estando semimorto e com uma cruz nas costas, eu imaginei que faríamos um bom trabalho, embora eu tenha que admitir que a preguiça falava mais alto. Fiquei particularmente satisfeito quando fui dispensado da tarefa por Kári, juntamente com K, que caiu exausto ao lado de Andreas. Ele me perguntou se eu conhecia alguma técnica para restituir o braço de Maddog, já que ele estava cansado demais para preparar uma amputação. O gordo gemeu ao ouvir a palavra. Foi Kári quem respondeu:

- O seu caso é mais urgente, caro pupilo. Você está tão instável quanto um reator nuclear, e vai acabar por explodir a qualquer momento. E digo isso no sentido literal.

- Eu sei, fessor.

- Sabe? Então porque estava se exibindo como uma puta durante a luta? - Kári cuspiu - Você está fraco, Konrad. Fraco, bem fraco.

K soltou uma risada.

- Ei, Andreas - ele cutucou o sanguerreal ferido ao seu lado - Diz aê, eu tô fraco? Hã? Hein? Hein?

O sanguerreal não respondeu. Ele deu de ombros. Kári andou até ele e agachou-se a sua frente.

- Não banque o Léo Stronda. Você estava parecendo um novato tentando executar técnicas de alto nível. Uma vergonha.

K irritou-se, e encarou o instrutor.

- Você se deu ao trabalho de vir até aqui apenas para me criticar?

Kári balançou a cabeça.

- Você deve seu treinamento à mim, garoto. Vim pra ajudar. Ou pelo menos, instruir Leif a fazê-lo.

- Infusão de Orgônio para fins de estabilização - eu comentei - Era o que eu e 'Noite pretendíamos fazer. Parece que foi uma viagem perdida, professor, se seu objetivo era nos informar sobre isso.

- Na verdade, eu vim para ver como estavam se saindo - Kári respondeu - Vocês demoraram demais. Werner acha que estão mortos. Ontem mesmo, ele despachou um novo grupo de caçadores do Campo Kattegat.

- Então seria bom que fizessem essa porra rápido - disse 'Noite, enquanto adentrava o quarto com uma dúzia de sacolas - Suas medições estão trágicas, K.

- Ótimo - K revirou os olhos.

Camila e Jaime entraram a seguir, com mais sacolas e caixas, que foram desorganizadamente empilhadas num canto da sala. Percebi que teríamos que requisitar mais um frigobar. Três não eram o suficiente.

- Ei - Andreas resmungou - Tenham a bondade. Meu companheiro precisa de um médico. Urgente.

Andreas não estava muito melhor do que Maddog, mas mesmo assim, dispensou cuidados para si em favor do companheiro. Ao menos ele era leal.

- Temos um caso mais urgente, cão - 'Noite rosnou - K é mais útil vivo do que vocês.

- Muito obrigado, irmãzinha - K respondeu, com um sorriso ironicamente doce no rosto - Ah, por acaso se lembra de quando lhe ensinei a fazer uma amputação?

O gordo gemeu.

- Não sei, tem que testar ali - a sensora respondeu.

O gordo gemeu de novo.

- Precisamos de 'Noite para fazer as medições com o Sensor - Kári observou - A amputação pode esperar.

O gordo não sabia se devia gemer ou não.

- Então, por quê nos pediu para poupá-los, se os trouxemos para agonizar e morrer? - Camila perguntou a Kári - Deixe que eu mesma faço.

- Tem uma apresentação de slides sobre isso no meu notebook - K comentou - Tá logado já no Drive, tudo bonitinho. Só dar uma olhada lá.

- Carece não - Camila sacou seu sabre Karabela - Jaime, dá uma força aqui.

Com muito esforço, Jaime conseguiu deitar o gordo e forçá-lo a manter uma posição de crucificação. Camila trouxe um liquinho e um fogareiro, no qual ela esquentou a lâmina de seu sabre. Pelo desenrolar dos eventos, eu tive a certeza de que ela tinha visto isso em algum seriado de televisão. Jaime segurou o pescoço e o braço carbonizado de Maddog, enquanto Camila forçou a lâmina pela parte contrária do gume, de modo a fazer um corte lento, porém - teoricamente - preciso. Uma manada de elefantes não teria urrado tão alto quanto Maddog, embora eu achasse que ele não estivesse sentindo dor alguma, devido ao estado deplorável de seu braço. Se quer saber como estava, imagine uma massa de carne e gordura derretida, torcida e endurecida, pontilhada com fragmentos de metal. O pouco que restara de sangue - se é que era realmente sangue - era uma pasta grossa negra, fedorenta e viscosa. Camila teve imediata ânsia de vômito.

- Péssima idéia - ela afirmou.

- Torstein morreu foi disso aí* - K respondeu, confirmando minhas suspeitas sobre o seriado.

- Onde vamos enfiar essa porra de braço? - Jaime perguntou, antes de correr à janela e vomitar.

- Sei lá, bota num saco e deixa na esquina - Kári sugeriu - O caminhão do lixo passa e pega.

O tempo que não perdemos para entrar com Maddog, nós perdemos para limpar a bagunça. Tivemos que dar um jeito de desinfetar o ambiente, dar um destino ao braço decepado do Gordo e enfaixar a ferida. Ao menos, K se compadeceu e ajudou com os socorros, retirando com uma faca os restos de pele carbonizada e aplicando um cataplasma para ajudar a recuperação. Aproveitamos ainda para dar um banho em Andreas - que acabou por também sofrer um pouco - e deixá-lo deitado no quarto de cima. Só então, começamos os preparativos para a Infusão de Orgônio em K. Preferimos efetuar o procedimento no patamar inferior do quarto devido à amplitude do espaço, o que nos permitiria recuar a uma distância segura, caso o fluxo de energia de K se tornasse alto demais. Noite concordou relutantemente em ceder sua cama para o propósito. Fechamos e selamos todas as portas e janelas, e desligamos todas as luzes e aparelhos eletrônicos no local. Percorri toda a extensão do quarto por duas vezes, para checar se não havia nenhum tipo de espírito ou entidade que pudesse prejudicar o andamento do procedimento. Só então pude acender e posicionar as velas ao redor da cama, e me preparar física e mentalmente. Era necessário que K se despisse completamente; ele o fez com total naturalidade. Dei-lhe um pouco de extrato de beladona, para que ele dormisse.

- Se eu acordar com o cu doendo, juro que mato todos vocês - ele brincou, antes de cair no sono.

Iniciei o procedimento, assistido por Kári e 'Noite; Camila e Jaime observavam mais distantes, e Maddog jazia inerte do outro lado da sala. Parcamente explicando, uma Infusão de Orgônio é uma espécie de cirurgia realizada nos sete chakras do corpo humano; é necessário que estes sejam individualmente atenuados, remodelados e reativados, de forma que os diferentes tipos de energia possam ser distribuídos de forma uniforme e harmônica ao corpo inteiro, por meio do sistema endócrino e de canais etéricos específicos. É um procedimento extremamente delicado e minucioso, que deve ser realizado com total precisão; os chakras são pontos de intersecção com vários planos e através destes, o corpo etérico se manifesta mais intensamente no corpo físico. Em termos visuais, são descritos como sendo vórtices que giram em alta velocidade. O cessar destes movimentos gera a inibição do fluxo de energia, e consequentemente, senilidade ou doenças irreversíveis. A vida de K estava em minhas mãos, e o menor erro cometido traria consequências gravíssimas para ele. Os dois primeiros chakras foram fáceis de estabilizar. O procedimento complicou-se quando avancei ao terceiro estágio, o chakra do plexo solar, cujo elemento é o fogo, com o qual K tinha afinidade natural. Comecei a suar, e após alguns momentos de tensão, avancei para o quarto estágio, o chakra cardíaco, que requeria ainda mais cuidado. Notei que o corpo de K fumegava, e temi que ele estivesse queimando por dentro. Felizmente, não era nada de mais. Quando cheguei ao sétimo estágio, o chakra coroa, minhas roupas estavam completamente empapadas de suor. Parecia mais quente a cada momento. Mesmo sem olhar para trás, pude vislumbrar mentalmente as veias dilatadas ao redor dos olhos nervosos de 'Noite e a tensão crescente de Kári e os outros. Faltava pouco agora, só mais um pouco. Eu tinha que conseguir. Eu não cheguei a mencionar para ninguém que eu nunca havia feito isso antes. Eu estava indo bem para um principiante, mas a vida do meu melhor amigo era importante demais para que eu confiasse apenas na sorte. Era necessário que eu pusesse em jogo todas as minhas habilidades e conhecimentos. Foram os mais longos e excruciantes momentos da minha vida. Então, finalmente, eu terminei.

O corpo de K irrompeu em chamas.

'Noite desabou no chão, desmaiada. Camila soltou um urro gutural, e foi amparada por Jaime, que começou a chorar. Kári pisou com força no chão e puxou os cabelos. Eu não consegui sequer esboçar uma reação: estava mergulhado no mais profundo sentimento de desespero. Mais tarde, eu notaria que as chamas não haviam causado nenhum estrago. K levantou-se, e veio em minha direção. Pude sentir o intenso calor das chamas em minha pele, mas não cheguei a sentir a dor. K parou seu rosto de fogo à centímetros do meu, e abriu a boca, em um grito silencioso.

E então, as chamas se apagaram.

De pé, a minha frente, estava o velho K, sem quaisquer sinais de queimadura no corpo. O corpo estava mole, como se ele estivesse dormindo em pé. Com muito esforço, dei um passo para trás. Ele parecia essencialmente o mesmo: os longos cabelos penteados em uma franja lateral, a barba bem aparada, todas as tatuagens em seus devidos lugares, incluindo a estranha Von, em seu peito, a qual eu não conhecia a origen. Ele não se mexia. Seu corpo estava mole e descaído, como se estivesse dormindo em pé. E então, ele abriu os olhos. 

Até onde eu me lembrava, eles eram completamente negros.

Não havia sinal de sua íris; apenas as pequenas pupilas podiam ser vistas em meio à branquidão da esclera. Por uma fração de segundo, imaginei que ele havia ficado cego por conta de alguma falha durante o processo, mas me recordei de algo que havia lido sobre olhos brancos. Há muitos séculos, esse típo de herança sanguínea ocular não se manifestava em alguém da linhagem de Odin. Confesso que eu o invejei: ele poderia ver além, muito além de nós. O poder dos olhos concede grandes vantagens a um sanguerreal, tanto no meio físico quanto no espiritual. Então ele piscou por algumas vezes, e seus olhos voltaram à pigmentação normal. Não é algo permanente; assim como as diferentes liberações, as técnicas oculares devem ser treinadas e aprimoradas. Mesmo assim, eu podia sentir a extensão de seus novos poderes. Tal como a Fênix, ele renascera das chamas, ainda mais forte. Caí sentado no chão; exausto, porém, aliviado. Camila correu até seus braços, e Jaime dividia-se em prestar ajuda à 'Noite e cumprimentar seu velho amigo. Maddog ainda estava inconsciente em seu canto, alheio ao espetáculo sobrenatural que acabara de ocorrer por ali. K parecia igualmente perdido, embora consciente.

- Que foi, gente? - ele disse, enquanto acariciava os cabelos da ruiva - Até parece que vocês me viram pegar fogo.

Jaime repreendeu-o com o olhar. Coisa rara.

- E agora, fessor? - K dirigiu-se ao instrutor - Já posso me exibir como uma puta?

Eu soube que Kári havia sorrido por trás da máscara que mantinha seu rosto constantemente oculto. Ele parecia cômico com sua trança parcialmente desfeita.

- Agora você pode brilhar, filho de Ulrich - ele deu um tapinha nos ombros de seu aluno - Ainda falta muito para você se exibir como uma puta.

K soltou uma sonora gargalhada, e beijou a fronte de Camila, que agarrava-se ao seu peito. 

- Agora vista uma roupa - Kári continuou - Falta de respeito com a moça. Ridículo.

Até Camila permitiu-se abrir um sorrisinho. O velho K estava de volta, mais poderoso do que nunca. Mas, se uma parte de minha alma estava feliz por ele, a outra parte enchia-se de temor e apreensão.

O veho K estava de volta, e trazia consigo o início de uma guerra.


Notas Finais


*Referência ao seriado Vikings.


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