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História Os Últimos Filhos - Von


Escrita por: Skjald

Capítulo 8 - Von


Fanfic / Fanfiction Os Últimos Filhos - Von


~Kölbjörn


Eu havia voltado para casa.

O agradável ar bucólico que tanto me era familiar não deixava dúvidas de que eu estava de volta à Campo Vestfold. Eu estava de volta ao meu lar. Campo Vestfold era um grande enclave rural ocupado pela Falange Negra, para onde eram levados e treinados os sanguerreais de linhagem nórdica. Haviam dois outros enclaves similares, também administrados pela Falange, sendo eles o Campo Uppsala, na porção sudoeste do estado de Minas Gerais, e o Campo Kattegat, no litoral do Espírito Santo. De qualquer forma, eu não fazia a menor ideia de como havia chegado ali. Confesso que a ideia de ter morrido assustou-me um pouco, principalmente por causa de Helena. Se ainda houvessem caçadores por perto, só os deuses sabem o que poderiam fazer com ela. Caçadores costumam ser particularmente brutais em relação ao exercício dde suas funções. E digo por experiência própria: entre o período que sucedeu a morte de uma pessoa querida e a minha deserção, exerci o cargo com singular crueldade e frieza. O traidor de meu pai que o diga: dei-lhe apenas alguns minutos para que aprendesse a respirar com os pulmões do lado de fora do corpo. Ele não conseguiu, uma pena. O mundo pertence aos que aprendem depressa.

Eu estava recostado sob a copa de uma tília, em uma colina afastada, de onde eu tinha uma privilegiada visão do perímetro do enclave. Os fortes raios de sol incidiam diretamente sobre meu rosto, incomodando-me a visão. Ergui um braço sobre o rosto; um braço magro, agasalhado por um casaco branco com listras negras nas mangas, com uma braçadeira negra que trazia o caduceu de Eir atada logo abaixo do ombro. O uniforme do Corpo Médico da Falange. Assustei-me; meu cabelo estava mais curto, nenhum sinal de pelos faciais, nenhuma grande cicatriz de combate, nenhuma tatuagem. Aliás, havia uma, no peito: Von, a palavra islandesa para esperança. Senti uma estranha sensação ao vê-la, como se eu estivesse me esquecendo de alguma coisa importante.

Eu tinha catorze anos novamente.

Seria um sonho? Uma boa morte que imitava a melhor fase de minha vida? Eu não tinha a resposta, e ninguém poderia me dizê-la. Talvez fosse mesmo um sonho. Cinco anos de minha vida, apenas um sonho. Anos de guerra, anos de morte, anos de fuga. Camila e Helena, meros devaneios. A morte de meu pai, um pesadelo ruim. E ela... Lembrar-me de seu rosto fez com que suaves lágrimas caíssem pelos meus olhos. Eu tinha que encontrá-la. Dizer o quanto lhe amava, colocar tento na língua, não agir feito um idiota. Eu não iria perdê-la novamente por mero capricho. Amarrei meu casaco na cintura e desci a colina, rumo à Campo Vestfold.

Nosso enclave poderia ser descrito como sendo um agradável misto entre um campus de universidade e uma pacata fazenda. Apesar de não possuir muralhas propriamente ditas, o enclave de Campo Vestfold era cercado em toda a extensão de seu perímetro por um espesso muro de tijolos e arames farpados, guarnecidos aqui e ali por uma torre ou uma guarita. Dividia-se em duas seções: uma voltada para atividades cotidianas, com lojas, oficinas, casa de banho e chalés para os campistas, e outra voltada para fins militares, com garagens, estábulos, um arsenal e um pátio de treinamento. Ambas eram cercadas por um fosso abastecido por água de um rio próximo, afluente do São Francisco, e interligadas por um sistema de pontes e túneis. Fiz meu caminho por uma estradinha de terra, passando por plantações e pomares, e cumprimentando campistas agricultores e sentinelas à cavalo. Passei pelo barbacã* desguarnecido e pelo portão principal, displicentemente vigiado por uma dupla de milicianos com seus rifles Kar98k, da Segunda Guerra Mundial. Creio não ter falado sobre as milícias: elas são tropas formadas por não-sanguerreais, ou seja, pessoas normais, e compõem a maior parte do efetivo militar das guildas. Os sanguerreais são mais como uma força de elite, designados apenas para a realização de tarefas específicas; além disso, os sanguerreais preferem - até por questão de tradição - o combate corpo-a-corpo, enquanto os milicianos geralmente combatem com armas de fogo. Claro que o oposto também acontece, e com frequência.

Do lado de dentro, tudo era exatamente como me lembrava: campistas correndo, realizando suas tarefas diárias, brincando e flertando, os milicianos sofrendo com o treinamento de flexões, oficiais à cavalo fiscalizando as atividades e o burburinho melodioso vindo das casas dos xamãs.

E, é claro, o estrondoso latido de um Mastim do Inferno.

Eu não me assustava com o bicho, e muito menos com o latido, já que estava habituado com ambos. A enormidade atendia pelo nome de Garm e tinha o tamanho de uma van blindada, e consumia uma quantidade assustadora de comida. Bem, eu estava com saudade do bichão. Deduzi pela intensidade e direção de seu latido que ele deveria estar no pátio de treinamento, ajudando em um exercício de combate à criaturas peculiares. Acredite, isso é extremamente necessário. Corri pelas ruas de Campo Vestfold, trombando em campistas, derrubando algumas coisas e assustando um cavalo e o oficial que o montava. Atravessei a ponte correndo, até o pátio de treinamento, que ficava na seção militar. Tal como eu imaginava, era um exercício simulado. Os campistas tentavam se defender do cão formando uma parede de escudos, mas um latido era suficiente para derrubá-los. Novatos, pelo visto. E foi então que eu a vi. Meus joelhos tremeram, e lágrimas rolaram pelo meu rosto. Sentada no dorso do grande Mastim, guiando-o, estava uma garota loirinha e magricela, com sardas no rosto e óculos de proteção ao melhor estilo steampunk. Usava uma camiseta preta, calça militar e coturnos, e ria dos campistas que corriam assustados, atirando suas armas ao chão. Seu sorriso era tal como a luz do sol: quente e acolhedor.

Seu nome era Lully. 

Garm farejou-me, e correu em minha direção, com Lully ainda sobre seu dorso, pulando sobre mim e me lambendo com uma gigantesca língua áspera e molhada. Caindo no chão, não pude me desvencilhar do afeto do enorme cão. Não acho que possa descrever qual é a sensação de estar sendo pisoteado e lambido por um cão gigante: Garm era brando comigo, principalmente por causa de Lully, mas mesmo assim era como se eu estivesse sendo esmagado por um rolo compressor. Veja bem, Mastins do Inferno - ou Cão-Jötunn de Muspelheim, que é a denominação correta - possuem uma constituição física que lhe permite até mesmo enfrentar seus donos Jötunn (gigantes da tradição nórdica), da mesma forma que um cão adulto de grande porte pode enfrentar um humano. E nossa enormidade chamada Garm nem ao menos era adulto ainda: eu estimava que ele era equivalente em idade a um cão convencional de oito meses. 

- Garm, sai de cima dele - Lully ordenou, esforçando-se para não rir.

Garm obedeceu prontamente, sentando e abanando o rabo - o que fez o chão tremer levemente - enquanto Lully descia de seu dorso. Ela me ajudou a levantar com certa dificuldade, já que ela é meio magrinha e não muito forte. Ela quase não se aguentava de tanto rir da minha deplorável situação, então eu comecei a me chacoalhar, o que fez com que as espessas gotas de saliva de Garm respingassem em Lully. Ela protestou, com um sorriso.

- Você é malvado, K - ela riu, pulando no meu pescoço e me beijando, enérgica como sempre.

- E você é muito nojenta - eu provoquei, erguendo-a no ar - Seu cachorro me deixou todo babado, e você aqui me beijando.

- Ei, casal - uma voz familiar gritou, com um tom monótono - Os veteranos chegaram, então parem com essa melação e mostrem a esses novatos como é que se faz!

Kári Larsson, meu comandante, estava encostado na parede do Arsenal, jogando uma faca para o alto e partindo borboletas e mariposas ao meio. Seus cabelos loiros estavam presos em um coque, seus olhos verdes ocultos atrás de óculos escuros, assim como suas feições, atrás de uma máscara de caçador. Sua farda estava desabotoada até o peito, exibindo seus vários colares de ouro e prata, e sua gravata vermelha pendia frouxa de seu colarinho. Na metade inferior, ele usava calças militares e um coturno de cano longo. Kári era uma harmônica mistura entre um viking, um agiota e um gótico. Eu não precisava nem ver seu rosto para saber que ele estava com sono; a verdade é que ele sempre estava. Ainda assim, Kári era uma das pessoas que eu jamais ousaria desafiar. Ele havia sido aluno do meu pai, o melhor deles. Era também o mais preguiçoso: matava com as mãos nuas para não se dar ao esforço de sacar uma arma.

Bem, toda guilda tem seus cânceres, e os veteranos mencionados por Kari eram alguns deles: May Ross, uma garota infantil que pode ser resumida em muita beleza e zero cérebro, apesar de bastante amigável e carinhosa; Marie-Brunhild von Kämpfer, uma branquela azeda que tinha plenas convicções de ser uma valquíria e o ser vivo mais inteligente do universo; Ärn von Hohenlohe, que sofria de depressão e não tinha o menor ânimo para nada; Gunnar Wolff, um cara que vivia de animes e insistia em andar com a porra de uma katana híbrida para todo lado (embora isso tecnicamente fosse contra as regras), e finalmente, a dissimulada Karolyn Strauss, a garota-problema, rebelde de cabelos azuis, marrenta e subversiva, que adorava fazer propaganda de si mesma e exaltar suas qualidades de dama, apesar de ser a figura mais digna de pena dentro da Falange. Ela detestava metade da guilda, e metade da guilda a detestava. A outra metade queria sua cabeça.

- Fazer uma demonstração decente com esses caras vai ser quase impossível - sussurrei no ouvido de Lully.

Minha modesta equipe se armou adequadamente para enfrentar o cão gigante. Eu escolhi um colete leve e uma espada sem corte, e Lully optou por uma lança e um pequeno broquel, o que me fez imaginar que ela tentaria cutucar minha bunda com aquilo, caso a oportunidade surgisse. Basicamente, o macete é nunca ficar de frente para o cão, uma vez que é é quase impossível desviar caso ele tente um ataque frontal direto, e também pelo fato de que seu latido gera uma espécie de vórtice sonoro que pode te arremessar a alguns metros de distância, além de te deixar momentaneamente surdo. Não vou me dar ao trabalho de narrar a luta: o único momento que merece ser citado foi quando Lully atingiu Karolyn no peito com sua lança. A dama de cabelo azul se irritou prontamente e tentou arremessar uma bola de fogo em Lully, mas Garm se ergueu sobre os quartos traseiros e absorveu o impacto com facilidade, devido a sua imunidade ao elemento. Feito isso, Karolyn deixou o pátio nervosíssima, pisando forte e atirando seus equipamentos ao chão. Kári irritou-se com a atitude da garota e encerrou o treinamento. Minha equipe despediu-se de mim e de Lully, May abraçando-nos calorosamente, após guardarmos os equipamentos. Eu e Lully fomos para nosso chalé, ocupado pelos membros do Grupamento Cinco. Dividíamos o quarto com nosso parceiro, Leif, que era um excêntrico e leal aprendiz de xamã. Como ele não estava, aproveitamos o momento a sós para algumas, digamos, saliências. Fato relevante: a Falange não foi fundada por Rick Riordan, então se acha que os nossos casais agem da mesma forma que os casais do Acampamento Meio-Sangue, você está redondamente enganado. Verdade é que "casal" era o termo utilizado para quem realmente estava casado; para os namorados, usávamos o termo "amante". Mas não pense que isso significa que as coisas aqui são bagunçadas. A maior parte dos campistas escolhiam um "amante" fixo depois de algumas experiências e acabam oficializando a união depois de alguns anos. Continuando, tirei minha camisa babada e suada, e a atirei em uma pilha de roupa suja. A tatuagem no meu peito ainda estava lá.

- Amei sua tatuagem, querido - Lully disse - Fico feliz que tenha me deixado fazê-la em você.

Algo estava muito errado sobre essa tatuagem, mas eu não sabia o quê. Quando Lully tirou a blusa e o sutiã, pude ver que ela tinha uma tatuagem idêntica, entre seus pequenos seios. Ainda de pé, começamos a nos beijar, suados e cansados do treino. Ela pediu para que eu fechasse os olhos e beijou minhas pálpebras, equilibrando-se nas pontas dos pés. Esse era uma forma especial e única de Lully para demonstrar seu carinho e afeto por mim. Algo que sempre achei bastante fofo. Desde o dia em que nos conhecemos, temos estado constantemente presentes na vida um do outro. Nos beijamos e eu empurrei-a para cama. No momento em que eu me preparei para tirar a calça de Lully, minha visão enturveceu e tudo ficou escuro.

Quando recobrei os sentidos, soltei um urro gutural.

Terra, plantas, floresta. Um cheiro horrível de carne queimada.

Lully estava deitada no chão, mais de noventa por cento do corpo queimado. Apenas o rosto intacto. Ela sussurava meu nome, dolorosa e repetidamente. Não, de novo não.

Não.

NÃO.

Arranquei tufos de meu cabelo com as mãos, lágrimas descendo sem parar do meu rosto.

A risada de uma vadia ecoou. Karolyn em pé, ao lado do corpo de Lully, gargalhando. Da primeira vez, ela tinha chorado.

Tufos de cabelo com pele em minhas mãos, Karolyn sem pele no inferno, gargalhando e chorando. Leif me abraçava, chorando baixinho.

Lully suspirou.

Cadela do inferno.

Foi ela.

Karolyn.

A Filha da Fênix.

****************************************

Acordei numa cama de hospital, meu corpo doendo horrores. Lágrimas escorriam pelos meus olhos. Lully. Por quê? Por quê logo ela? Uma garota simples, bondosa e amigável, morta de uma forma tão horrível. Karolyn Strauss. Eu tinha que me manter vivo, apesar dos ferimentos graves que sofri. Tinha algumas contas para acertar. Mas eu tinha que me recuperar primeiro. Deitado numa cama, internado, tudo que eu poderia era encher minha cabeça com sentimentos de ódio.

Notei que Camila estava ali do meu lado, distraidamente falando com alguém no telefone. De volta a São Paulo, dor e sofrimento. Essa é a vida de K. Pelo menos, eu tinha uma companhia agradável, e um corpo de adulto de novo. Braços e pernas musculosos, peitoral desenvolvido, barba... e tatuagens. Todas lá: Háti e Skoll, perseguindo o Sol e a Lua, em meus braços; o Futhark Antigo em meu pescoço. Corvos, nos antebraços. Runas nas pernas e nos pulsos. E a palavra Von, em meu peito.

Ah, espera aí.

Foi então que eu me lembrei.

Von.

Eu nunca havia feito nenhuma tatuagem como aquela.
 


Notas Finais


* Barbacã: muro avançado, construído entre a muralha e o fosso, para proteger os pontos estratégicos de uma fortificação.


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